Evocação de um escritor português só
abordado eventualmente nas aulas de literatura, de passagem pelas referências
genéricas a uma época literária, que outros valores mais altos exemplificavam em
leituras específicas. Agradeço a lembrança a FERNANDO TORRES MOREIRA, com a sua
análise informativa, sobre um ser expatriado, de que a Internet revelou também alguns dados.
Filinto Elísio: pátria, saudade
e língua
Empurrado para fora da pátria,
escrever na língua materna foi a ferramenta que Filinto Elísio encontrou para
materializar o país que o viu nascer. Defender a língua materna era defender a
pátria.
FERNANDO TORRES MOREIRA
Professor Catedrático de Cultura Portuguesa, Universidade de Trás-os-Montes e
Alto Douro
OBSERVADOR, 10
out. 2024, 00:132
Filinto
Elísio, aliás, Francisco Manuel do Nascimento, conheceu
em vida a glória literária mercê de um extenso rol de publicações, nas quais a
sua vasta formação e erudição clássicas, a sua admiração por Horácio e pelos
poetas portugueses de Quinhentos ressaltam de forma evidente. Cumulativamente,
a sua obra, por méritos linguísticos indiscutíveis, foi também uma espécie de
cartilha por onde se aprendia a bem falar e escrever português.
Filinto Elísio já quase não é lido, mas, por ter produzido uma obra muito significativamente orientada para a
defesa da língua, guindou o país a parâmetros elevados e interessou figuras
como Lamartine ou Ferdinand Denis para o conhecimento da cultura, literatura e
língua portuguesas. O seu
afastamento compulsivo de Portugal, a recusa em tornar-se num assimilado
cultural e uma postura mental que sempre rejeitou o exílio e teimosamente
“vivia” no seu país, fizeram com que Francisco Manuel, pela língua que tanto
amou, se tornasse um dos mais representativos corifeus da saudade portuguesa.
Face ao aggiornamento que actualmente a Europa conhece e à mundialização que os
meios tecnológicos permitem, a luta deste poeta surge coberta
de uma nova actualidade: a importância da língua e cultura na afirmação de um
país.
Gravura de Filinto Elísio, aliás,
Francisco Manuel do Nascimento.
Os clássicos greco-latinos e
os escritores de Quinhentos – Camões, Barros, Ferreira, Lucena, etc. – foram
por ele investidos como fiéis depositários da pureza da língua portuguesa, cujo
prevalecimento como emblema nacional, após a sua emancipação e sobrevivência ao
reinado dos Filipes, se encontrava ameaçado por uma nova vaga: o ciclo
da francesia. Acusado pelos críticos contemporâneos de usar nos seus
textos “drogas de antigualha”, após o afastamento de Portugal, que seria
definitivo, o poeta cristalizou a sua luta de forma perene em prol de uma
língua pura, sem mácula de qualquer bastardia.
Cabe aqui fazer um reparo: o que começou
por ser uma atitude de simples defesa da língua assumiu uma expressão mais lata
com a saída da pátria-mãe: à
pureza do falar português, Filinto associou a saudade da própria língua, que
ouvia falar cada vez mais raramente e da qual circunstâncias do destino lhe
foram retirando os suportes escritos de sua propriedade, e também a saudade de
um país, de uma pátria, tomada metonimicamente como língua.
Num processo que encontra paralelismo em Camões, que aliás o próprio não
enjeita, Filinto viveu e sentiu, no exílio, uma confusão de Babel e ansiava
reiteradamente por uma Sião – pátria e língua – vivida nos seus primeiros 44
anos de vida. A luta pela verdadeira língua portuguesa
consumou-se por um “verdadeiro furor vernáculo”,
como afirmou Carlos Olavo, e a sua vivência em terra estranha, de uma pátria
saudosa, vai ser expressão desse paraíso de heróis e bem-aventurados, a Elísia da qual tomou o nome.
No exílio, o autor elegeu como
forma de compensar a ausência física do solo pátrio a recordação e consequente
registo escrito da lembrança do português genuíno ouvido na sua infância às
gentes do povo. Simultaneamente, usa
esta recordação como arma de arremesso contra os francesismos invasores de uma
língua que, em tempos, conquistou o mundo. Se lhe faltavam palavras, lá estavam
os clássicos latinos ou os escritores de Quinhentos nos quais encontrava,
respetivamente, quer o vocábulo necessário, quer o reavivar de termos e
expressões entretanto caídas em desuso. Não se infira daqui que
Filinto entendia a língua como algo imutável; ao contrário, já que a criação de
termos novos também fazia parte da sua estratégia de defesa da língua;
simplesmente o latim era o laboratório de onde surgiam os neologismos e, numa
impossibilidade erudita, usava como elemento norteador a autoridade linguística
do povo. Era mais uma forma de enriquecer a língua que, como os outros, lhe
trazia vitalidade e prestígio.
O poeta, desterrado da pátria,
sente-lhe a ausência, porque cada vez mais raramente a língua portuguesa lhe
soa aos ouvidos e os contactos com portugueses se vão tornando menos frequentes
– o exílio tornava-se demasiado longo, apesar de, como afirmou Almeida Garrett,
estar lá “com os olhos postos na pátria” … As muitas traduções que fez talvez
fossem (para além das óbvias necessidades de ordem económica) uma forma de
presentificar essa língua, de a “ouvir falar”, de a ler, escrevendo-a. Nunca,
como se apontou, Francisco Manuel perdera de vista, no exílio, a terra onde
nascera e onde sempre quis viver. O entusiasmo, quase religioso, com que se
entregou à restauração e enriquecimento da língua portuguesa indicia a
omnipresença da pátria, as saudades que o dilaceravam e as, cada vez menos
ténues, esperanças de regresso. A paixão de Filinto pela língua materna
confundia-se com o seu amor por Portugal e a luta movida contra os galicismos
(“estrangeirismos desnecessários e absurdos”, segundo Lopes de Mendonça) é
prova definitiva disso.
Capa de um dos muitos livros de
Filinto Elísio
Mas de que pátria tinha Filinto
saudades? Que pátria lhe merecia labor em prol da língua? Conta Carlos Olavo
que, no exílio, o espírito de Filinto se entranhara com os problemas da
liberdade. Os acontecimentos por si vividos em França alimentaram-lhe a ilusão
de ver transpostos para a sua pátria os bons princípios da Revolução, com a
liberdade à cabeça. Filinto desejava “Ver na Pátria, que maus hoje assoberbam /
Com ignorante orgulho / Suceder a Justiça à Tirania”. Saudades da pátria sim, mas de uma pátria onde pudesse viver em
liberdade, deleite de que apenas pôde gozar em terra estranha. Por isso, o
discurso de Filinto surge recheado de termos que remetem, incontornavelmente,
para um ambiente de liberdade, e será o uso deste vocabulário que fará dele um
denunciador constante do fanatismo, da opressão, da tirania em que o país
vivia. A sua poesia será veículo de denúncia dessa Elísia ultrajada para a
qual, politicamente, propunha novos rumos.
Os
quase quarenta e um anos de exílio vividos por Francisco Manuel do Nascimento,
na sua maioria em situação de miséria, fome e humilhação, foram também um
período temporal de expressão de uma saudade da pátria manifestada, em
especial, por uma luta contínua em prol da língua portuguesa, à qual a ausência
de meios, longe de afrouxar, antes estimulou a coragem de um lutador que merece
encómios pela exemplar lusitanidade de todo o conjunto da sua obra literária,
traduções incluídas. Escrever foi para Filinto, nos tempos de maior
dificuldade, um lenitivo, uma forma de sustento, um processo de exteriorização
da saudade. Empurrado para fora da pátria, escrever na língua materna foi a
ferramenta que encontrou para materializar o país que o viu nascer em tudo o
que ele representava. Defender a língua materna das marcas de bastardia era
defender a pátria: “Amor da
Pátria, e desejos de que se não escureça inteiramente a glória, que nos
granjearam entre as nações estranhas os bons Autores do nosso bom século
literário, e não outro algum motivo, me incitaram a destruir (se me é possível)
com as armas do ridículo, a seita do francesismo, que tanto desonra a clássica
linguagem portuguesa. (…) amantes do bom Camões (…) derrotai-me esse exército
ingrato, que se rebela contra a Pátria, e contra os que com as suas doutas penas
a ilustraram”.
Se Fernando Pessoa pôde dizer “a minha pátria é a língua
portuguesa”, Francisco Manuel do Nascimento, mais de um século antes, fez da
língua uma pátria sempre desejada, porque expressão viva de uma saudade. Talvez
melhor que ninguém Filinto tenha vivido a pátria (e na pátria) pelo uso da
língua nacional.
[Os artigos da série Portugal 900 Anos
são uma colaboração semanal da Sociedade Histórica da Independência Nacional.]
PORTUGAL 900 ANOS HISTÓRIA CULTURA
João Floriano: Filinto Elísio apresenta quanto a
mim, o condicionalismo da época em que viveu. Comparado com Bocage, o
Elmano Sadino, Filinto tem uma vida muito longa e muito mais cosmopolita
do que Bocage que andou sempre entre Setúbal onde nasceu e Lisboa onde morreu
aos 40 anos. Filinto nasce em 1734 e morre em 1819 (tive de
verificar no google). O estilo de Filinto é o neoclássico, o de Bocage está
muito próximo do romantismo. Este texto presta uma justa e oportuna
homenagem a um escritor e poeta que está praticamente esquecido. Vivemos numa
época em que a ideia de pátria e identidade linguística são atacadas
recorrentemente como indícios de nacionalismos perigosos.
José Lopes: Para além da vaga referência a "mais de
um século" antes de Pessoa, não nos podia ter esclarecido melhor sobre
quando viveu o Sr. Filinto? A elementar estrangeirada regrazinha dos
"5Ws", Sr.Professor. No caso, o "quando".
NOTAS DA INTERNET:
vida e obra
Filinto
Elísio, foi um poeta, e tradutor, português do Neoclassicismo. O seu verdadeiro
nome é Francisco Manuel do Nascimento, e foi sacerdote.
1734-12-21
Lisboa
1819-02-25
Paris
Filinto
Elísio, foi
este o nome arcádico pelo qual ficou conhecido o poeta Francisco Manuel do
Nascimento, que nasceu em Lisboa e faleceu em Paris, após uma ausência da
Pátria de quase quatro décadas.
Em Paris, em 1798, seriam publicados “Os Versos” de Filinto Elísio e, de 1817 a 1819, as
suas “Obras Completas” (11 vols.), reeditadas em Lisboa, de 1834 a 1840.
Filinto representa, na nossa produção literária, a manutenção das
grandes orientações neoclássicas, aqui e além tocadas pela emoção pré-romântica
(traços que o soneto seguinte traduz, em vocabulário e
expressão de sentimentos)
Manteve um diálogo intelectual e poético com a futura Marquesa de
Alorna, por quem tinha uma admiração extraordinária, a quem deu o nome arcádico
de Alcipe que ela depois usou. Grande devoto de Horácio cultivou os géneros da tradição clássica,
deixando-nos sonetos, madrigais, epigramas, contos, epístolas, sátiras, odes
(sobretudo odes).
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