sexta-feira, 4 de outubro de 2024

O livro da nossa evocação

 

“O RETORNO”, de DULCE MARIA CARDOSO, um livro de “encher as medidas”, na reconstituição do que foi tudo aquilo - connosco, igualmente - não de Angola, onde fiou mais fino, em ódios e violências, mas de Moçambique, também do retorno em avalanche, os maridos e os pais empurrando a família, ficando eles lá atrás, a tratar, em alguns casos,  dos trastes possíveis a enviar, em função de um recomeço possível, no espaço imposto, no terror desse, agora devolvido.

Trata-se de um narrador jovem, de escrita mais ou menos corrida, à medida das suas lembranças, sobre a estada inicial por cá – num dos hotéis da linha de Cascais – as evocações do lá de mistura com as descrições do cá, a lembrança do pai, empurrado pela sua própria arma, nas mãos de um dos pretos senhores dos novos destinos, espécie de leitmotiv na narrativa evocativa, onde a cadelita de que eram donos e que corre atrás do carro que os leva ao aeroporto, até desistir, é igualmente motivo repetido das agonias que se adivinham no rapazinho narrador, embora sem reflexões de angústia, que essa fica apenas em nós marcada, como imagem de um desastre que foi pura catástrofe jamais apagada das lembranças dos que a viveram, amantes do seu país desfeito - pese embora a ausência de crítica, nem sequer subentendida na voz do narrador, apesar da referência, em evocação de adolescente, às vozes coléricas dos comensais do hotel, contra os responsáveis principais desse acontecimento do retorno.

Um livro em que as evocações do rapazinho narrador se sucedem, em espaços onde nos fixámos também – a zona do Estoril/Cascais – e de que lembro essas tais avalanches de gente ultramarina inicialmente recolhida nos hotéis da zona – como foi o seu caso, juntamente com a irmã e a mãe, forçados ao seu quarto do hotel, como casa provisória, naturalmente repudiada, como espaço inusitado.

Uma história bem real, o narrador interveniente, contando o seu aqui e agora entrecruzado com as evocações do seu passado angolano, e simultaneamente a tal lembrança do retorno, o pai sempre presente, em retomas de amor e angústia que se lhe sente, os espaços no hotel a abarrotar dos tais retornados, tempos infinitos de um viver de ruído e mágoas, as raivas contra os responsáveis da tragédia, entrecruzando-se nas falas surgidas aqui e ali, numa narrativa de simplicidades próprias de um narrador jovem, que se apoia nas lições dos pais, (como sucedia dantes, em que a educação constava das leis), e nas expectativas do pai, no seu retorno inesperado e decisivo para um recomeço em novas esperanças de felicidade.

Uma breve passagem, que nos dá conta, afinal, do significado da tal escrita corrida, posta num jovem narrador, de sofrimento íntimo, mau grado a pretensa simplicidade narrativa, e que explode como um grito de alegria, no resumo que faz da breve história vivida no seu final feliz, com o retorno do pai, que julgara morto:

“Ninguém volta da morte, mas o pai está à porta do nosso quarto. Um saco de viagem preto na mão, uma boina cinzenta e um casaco aos quadrados. Não consigo acreditar que é o pai, o pai que os pretos levaram com as mãos amarradas atrás das costas, o pai que não chegou até ao dia da independência, o pai que eu tive de julgar morto. Ninguém volta da morte e bate à porta da família de madrugada, ninguém volta da morte com uma boina, uma camisa aos quadrados e um saco preto na mão, o pai está morto e vai desaparecer quando eu acordar. Por mais que abra os olhos e os esfregue o pai continua à minha frente, quase igual ao pai de lá…..»

Nenhum comentário: