“O RETORNO”, de DULCE MARIA CARDOSO, um livro
de “encher as medidas”, na reconstituição
do que foi tudo aquilo - connosco, igualmente - não de Angola, onde fiou mais
fino, em ódios e violências, mas de Moçambique, também do retorno em avalanche,
os maridos e os pais empurrando a família, ficando eles lá atrás, a tratar, em
alguns casos, dos trastes possíveis a
enviar, em função de um recomeço possível, no espaço imposto, no terror desse,
agora devolvido.
Trata-se de um narrador jovem, de
escrita mais ou menos corrida, à medida das suas lembranças, sobre a estada inicial
por cá – num dos hotéis da linha de Cascais – as evocações do lá de mistura com
as descrições do cá, a lembrança do pai, empurrado pela sua própria arma, nas
mãos de um dos pretos senhores dos novos destinos, espécie de leitmotiv na
narrativa evocativa, onde a cadelita de que eram donos e que corre atrás do
carro que os leva ao aeroporto, até desistir, é igualmente motivo repetido das
agonias que se adivinham no rapazinho narrador, embora sem reflexões de
angústia, que essa fica apenas em nós marcada, como imagem de um desastre que
foi pura catástrofe jamais apagada das lembranças dos que a viveram, amantes do
seu país desfeito - pese embora a ausência de crítica, nem sequer subentendida na
voz do narrador, apesar da referência, em evocação de adolescente, às vozes
coléricas dos comensais do hotel, contra os responsáveis principais desse
acontecimento do retorno.
Um livro em que as evocações do
rapazinho narrador se sucedem, em espaços onde nos fixámos também – a zona do
Estoril/Cascais – e de que lembro essas tais avalanches de gente ultramarina
inicialmente recolhida nos hotéis da zona – como foi o seu caso, juntamente com
a irmã e a mãe, forçados ao seu quarto do hotel, como casa provisória,
naturalmente repudiada, como espaço inusitado.
Uma história bem real,
o narrador interveniente, contando o seu aqui e agora entrecruzado com as
evocações do seu passado angolano, e simultaneamente a tal lembrança do
retorno, o pai sempre presente, em retomas de amor e angústia que se lhe sente,
os espaços no hotel a abarrotar dos tais retornados, tempos infinitos de um
viver de ruído e mágoas, as raivas contra os responsáveis da tragédia,
entrecruzando-se nas falas surgidas aqui e ali, numa narrativa de simplicidades
próprias de um narrador jovem, que se apoia nas lições dos pais, (como sucedia dantes,
em que a educação constava das leis), e nas expectativas do pai, no seu retorno
inesperado e decisivo para um recomeço em novas esperanças de felicidade.
Uma breve passagem, que
nos dá conta, afinal, do significado da tal escrita corrida, posta num jovem
narrador, de sofrimento íntimo, mau grado a pretensa simplicidade narrativa, e
que explode como um grito de alegria, no resumo que faz da breve história
vivida no seu final feliz, com o retorno do pai, que julgara morto:
“Ninguém volta da morte, mas o
pai está à porta do nosso quarto. Um saco de viagem preto na mão, uma boina
cinzenta e um casaco aos quadrados. Não consigo acreditar que é o pai, o pai
que os pretos levaram com as mãos amarradas atrás das costas, o pai que não
chegou até ao dia da independência, o pai que eu tive de julgar morto. Ninguém
volta da morte e bate à porta da família de madrugada, ninguém volta da morte
com uma boina, uma camisa aos quadrados e um saco preto na mão, o pai está
morto e vai desaparecer quando eu acordar. Por mais que abra os olhos e os
esfregue o pai continua à minha frente, quase igual ao pai de lá…..»
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