terça-feira, 29 de outubro de 2024

“Ismos”, por cá


Cultismo, conceptismo, gongorismo - preciosismo, em suma, segundo Molière, com as suas “Preciosas Ridículas” da muita afectação linguística, por parte das heroínas Cathos e Magdelon… eis uma tendência que se multiplica no decorrer dos tempos, graças ao empenhamento dos esforçados, muitos hoje universitários. Uma crónica a não perder, de Patrícia Fernandes, sobre o preciosismo linguístico distintivo das classes que se prezam, hoje, quais sejam as universitárias, extinto o requinte nas vestimentas, que até é de bom-tom levarem rasgão, sendo o discurso das convicções assaz distintivo, e mesmo de luxo, para glória pessoal, por mais egoístas ou anormais que essas sejam, desde que os não afectem a esses, é claro.

O que é isso de “luxury beliefs”?

Sim, o Partido Democrata tornou-se um partido de elites, muito mais preocupado com os meninos das universidades que protestam do que com aqueles a quem cabe limpar os campi no final dos protestos.

PATRÍCIA FERNANDES Professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho

OBSERVADOR, 28 out. 2024, 00:1841

1 Convicções de luxo

A expressão “luxury beliefs” foi cunhada por Rob Henderson num artigo de 2019 e desenvolvida no seu recente livro de memórias, ainda sem tradução entre nós: Troubled: A Memoir of Foster Care, Family, and Social Class. A dimensão biográfica não é despicienda: Henderson passou a infância a saltar de casa de acolhimento em casa de acolhimento e apenas com muito esforço e sorte foi admitido na Yale University. Foi nesse contexto universitário de elite que amadureceu a ideia de “luxury beliefs”.

Para Henderson, as convicções de luxo ocupam hoje o lugar que era ocupado pelos bens de luxo para distinguir a elite das restantes classes sociais – uma mudança que é particularmente notória nas novas gerações. Quando chegou a Yale, em setembro de 2015, Henderson ficou surpreendido com o facto de os seus colegas se vestirem como estudantes “normais” e evitarem demonstrar a sua condição social excepcional – confirmando os diagnósticos das últimas duas décadas que revelam que as novas gerações tendem a desprezar mais a posse de bens materiais, a valorizar mais as experiências e a considerar que é moralmente correcto estar contra o capitalismo. No final de outubro desse ano, Henderson começou a perceber que os seus colegas podiam não exibir bens de luxo, mas ostentavam com orgulho convicções de luxo.

Os acontecimentos desse outono, ligados à chamada polémica de Halloween (que descrevi aqui), fizeram com que Henderson se confrontasse não só com uma série de palavras que desconhecia – privilégio branco, apropriação cultural, heteronormatividade –, como também com a caricatural ideia de que palavras escritas num e-mail que apelava à autonomia dos estudantes provocavam dor e trauma:

Era essa a linguagem utilizada por muitos estudantes. Perigo e dano e dor. Palavras como trauma tinham um significado diferente para eles.

Nos anos seguintes, Henderson foi reflectindo sobre como estes jovens usavam estas ideias e um certo vocabulário para sinalizar o seu estatuto social – é esse o sentido de “convicções de luxo”.

2 O povo é que paga

A expressão “luxury belief” pode, na verdade, ser entendida num duplo sentido e é esse duplo sentido que a torna especialmente relevante para interpretar o que está a acontecer nas sociedades ocidentais. Analisemos o primeiro desses sentidos, que decorre da sua definição como “ideias e opiniões que conferem estatuto às elites que as proferem sem que estas sofram as suas consequências negativas, que recaem quase exclusivamente sobre as classes mais desfavorecidas”.

Um dos exemplos que Henderson refere com mais regularidade é a reivindicação “defund the police”, popularizada em 2020 e sobre a qual nos debruçamos recentemente: a ideia de que o financiamento da polícia deve ser reduzido parece muito progressista quando colocada nos cartazes dos estudantes das universidades de elite norte-americanas – mas, na prática, a implementação dessa política teve péssimas consequências para as classes mais desfavorecidas (é mesmo altamente desaprovada junto dessas classes).Defund the police” é, então, uma típica convicção de luxo naquele sentido que a língua portuguesa expressa tão bem quando dizemos que essas pessoas se podem dar ao luxo de defender essas ideias – afinal, não serão afectadas por elas, não terão de suportar o custo dessas políticas.

Outra convicção de luxo identificada por Henderson é a ideia de que a “religião é irracional e prejudicial”, quando, na verdade, “os locais de culto são muitas vezes essenciais para o tecido social das comunidades pobres. Denegrir a importância da religião prejudica os pobres. Embora as pessoas abastadas encontrem muitas vezes significado no seu trabalho, a maioria dos norte-americanos não se dá ao luxo de ter uma “profissão”. Têm empregos. Pegam e largam a horas certas. Sem uma família ou uma comunidade para cuidar, esse trabalho pode parecer sem sentido.”

O mesmo raciocínio deve ser aplicado à ideia, muito popular nos Estados Unidos, de “fat-shaming”, à defesa da legalização das drogas, à crença no privilégio branco e à convicção de que o mérito é muito menos relevante do que forças sociais aleatórias, como a sorte (mais sobre isto em breve).

 (No seu artigo, Henderson explica o argumento a partir da instituição familiar, mas como a questão da família merece um artigo próprio ficará para um texto futuro.)

Nesta dimensão, a ideia de “convicções de luxo” pode ser útil para retratar uma certa hipocrisia, muito recorrente na política, que se verifica quando os actores políticos defendem medidas que afectarão negativamente as classes a que eles não pertencem. E se isto vos faz lembrar a posição de certas pessoas que, entre nós, defenderam o fim dos contratos de associação enquanto os seus filhos andavam em escolas privadas, não é por acaso. Trata-se tipicamente de uma convicção de luxo.

O cientista político Yascha Mounk considera, nessa medida, que o conceito deve ser libertado do contexto de lutas culturais norte-americano, para ser aplicado com mais proveito como chamada de atenção para que os actores políticos estejam mais conscientes das consequências das suas propostas, como, por exemplo, quando os ambientalistas ocidentais defendem que as nações africanas não devem cultivar alimentos geneticamente modificados ou as elites económicas de direita recusam que o estado deva ser responsável pelos cuidados médicos dos seus cidadãos.

3 A política das elites

Contudo, ao procurar retirar a dimensão moral que está implícita na expressão de Henderson, parece-me que Mounk afasta o segundo sentido daquela ideia e que é especialmente rico para compreender aquilo que se tem vindo a designar como “the great divide”.

 A grande divisãoé, na verdade, essencial para compreender as tendências de voto da última década nos países ocidentais e as transformações a que, com toda a certeza, continuaremos a assistir nos próximos anos. No Reino Unido, David Goodhart consagrou esta divisão entre nowheres (que não são de lado algum, i.e., se vêem como cidadãos do mundo) e somewheres (aqueles, geralmente sem estudos universitários, que se veem como enraizados numa comunidade) em The Road to Somewhere: The Populist Revolt and the Future of Politics.  no contexto francês, os termos utilizados remetem geralmente para a oposição entre “globalistas” (ou cosmopolitas) e “identitários” (ou nacionalistas). Estas mudanças resultam de a luta política se ter transformado em luta cultural, fazendo com que praticamente desaparecesse a antiga correspondência entre esquerda e classes trabalhadoras ou economicamente mais frágeis, substituídas por identidades minoritárias e intelectualmente construídas.

Ora, a história desta grande divisão coloca-nos precisamente no contexto universitário e no modo como a expressão “convicções de luxo” remete, também, para o sentido de “convicções que só alguns se podem dar ao luxo de pagar”. De facto, estas ideias que tomam forma num vocabulário específico foram criadas nas universidades de topo norte-americanas e ensinadas como uma espécie de acesso privilegiado à Verdade que a maioria da população – ignorante – desconhece. Essa maioria corresponde aos deploráveis, os que têm ideias erradas, os que se expressam inaceitavelmente, os que acreditam em teorias da conspiração ou fake news e que precisam de ser ensinados a pensar adequadamente, a expressar-se adequadamente e, em particular, a votar adequadamente.

Como o comportamento humano é essencialmente mimético, e tendemos, em particular, a imitar o comportamento das elites, estas convicções de luxo espalharam-se das academias de elite para as restantes universidades, e daí para as elites culturais e os meios de comunicação social, fechando-os numa bolha social e cultural e criando a grande divisãoComo diz Henderson, “Veja-se o vocabulário. O típico norte-americano da classe trabalhadora não saberia dizer o que significa “heteronormativo” ou “cisgénero”. Mas se visitarmos uma universidade de elite, encontraremos muitas pessoas ricas que nos explicarão com todo o gosto. Quando alguém usa a expressão ‘apropriação cultural’, o que está realmente a dizer é: ‘Fui educado numa universidade de topo’. Só os ricos se podem dar ao luxo de aprender vocabulário estranho, porque as pessoas comuns têm problemas reais com que se preocupar.”

Esse estatuto superior materializa-se, então, numa linguagem própria e que precisa de ser renovada regularmente (tal como as peças de vestuário se submetem à dura lógica da moda). As palavras vão mudando, as ideias vão-se renovando e a pressão sobre os pares é mantida:

 “É possível que os brancos abastados não concordem sempre com as suas próprias convicções de luxo, ou, pelo menos, tenham dúvidas. Talvez não gostem do casaco de peles ideológico que estão a usar. Mas se os seus pares os castigarem por não o usarem sempre, nunca mais sairão de casa sem ele.”

Foram estas ideias que se infiltraram no Partido Democrata e que alteraram o panorama eleitoral nos Estados Unidos, tornando a próxima eleição tão disputada. Os contributos da dupla John Judis e Ruy Teixeira são, nesse sentido, muito úteis. Em 2002, estes autores publicaram um popular livro, The Emerging Democratic Majority, que se veio a revelar pouco preditivo, pelo que, no ano passado, tentaram explicar o que falhou. Em Where Have All the Democrats Gone?, os autores defendem que não só os democratas se tornaram reféns das elites tecnológicas, como, sobretudo, foram tomados por um radicalismo cultural que afastou o partido das preocupações das pessoas comuns, que eram o seu eleitorado base. Acima de tudo, “Os democratas precisam de se olhar ao espelho e examinar até que ponto os seus próprios fracassos contribuíram para a ascensão das tendências mais tóxicas da direita.”

Neste sentido, há poucas dúvidas quanto à pergunta que, por vezes, desponta no podcast América Dividida: sim, o Partido Democrata tornou-se um partido de elites, muito mais preocupado com os meninos das universidades que protestam do que com aqueles a quem cabe limpar os campi no final dos protestos.

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COMENTÁRIOS(de 44)

Jose Miguel Pereira > Maria Tubucci: É completamente errado dizer que as Universidades de topo americanas "...há muito deixaram de ser centros de conhecimento...". Só ignorância e cegueira sectária é que podem levar alguém a dizer isso. A verdade é que continuam a ser dos melhores centros de produção de conhecimento no Mundo, ao mesmo tempo que originam "...ideologias altamente corrosivas...".                     Mario Pinto: Isto é o tipo de artigo que devia ser - muito - mais divulgado, para que se possa entender que a defesa de certas ideias não é necessariamente sinal de "progressismo" ou "reacionarismo". Parabéns.                 Maria Tubucci: Excelente, Prof.PF. As universidades de topo americanas há muito deixaram de ser centros de conhecimento para serem centros de formatação de ideologias altamente corrosivas, que ao serem aplicadas destroem tudo. Depois temos os parolos deste lado que importam este lixo tóxico para as universidades de cá. Resultado: temos uma comunicação social que não informa os factos, dá a sua opinião sobre os factos, deturpando a realidade, deturpando o que os outros que eles detestam dizem. Lá está, eles consideram-se superiores, “luxury belief”, habitam numa bolha que os outros não têm, ou seja, vêem a realidade só com o olho esquerdo, são deficientes ideológicos, o pior cego é o que não quer ver.                       José Paulo Castro > Ruço Cascais: Essa do aborto como medida redutora de criminalidade é boa como equívoco: não havendo 'crianças' abandonadas apenas porque são abandonadas no útero, antes de o ser. Depois queixam-se do envelhecimento da sociedade e passam a importar as dos outros, criadas por eles, sem perceber se são causa de criminalidade ou não. Os muçulmanos explicam: perguntem ao Erdogan o ele disse às muçulmanas holandesas para um dia controlarem aquilo. Temos de criar um novo conceito para short horizon beliefs.                  Luís Rodrigues:  O conceito de “convicções de luxo” merece ser referido e difundido em abundância. A perversão de universidades americanas inventou abortos como “teoria de género” ou “teoria crítica da raça”, invocados a-torto e a direito por conveniências ideológicas. Os objectos que aquelas locuções fabricadas pretendem nomear têm uma existência equívoca e escorregadia. As convicções de luxo são muito mais reais.                 Rui Lima: Um professor de direito da Universidade de Colômbia faz uma análise às empresas e aos seus conselhos de administração sobre doações aos partidos. A partir de 2001 houve uma deslocação para a esquerda, ele analisa os financiamentos partidários - é sem apelo. Hoje o partido democrata é o partido das empresas e dos ricos.                    José Carvalho: Afinal o Ocidente também tem as suas madrassas. Harvard; Yale; Cambridge etc etc                   Durval Ferreira: Há estudos para todos os gostos. Podemos sempre correlacionar a redução da criminalidade nos EUA com as alterações climáticas, por exemplo. Como diria Marx (o Groucho): tenho estes estudos mas se não gostarem posso arranjar outros.                 Ruço Cascais: Muito bom.  Só para criar um bocadinho de contraponto podíamos também falar na legalização do aborto como um "luxury Beliefs".  Os conservadores de um modo geral são contra a legalização do aborto, os progressistas a favor da legalização. Li há uns tempos um livrinho que já não me lembro se foi o Freakonomics (Levitt e Dubner) ou o Falar com Desconhecidos (Gladwell), em que relacionava a legalização do aborto nos Estados Unidos com a diminuição da criminalidade nas gerações seguintes. Tem um pouco a ver com a reabilitação de Nova Iorque nos anos 80.  Se assim for, a legalização do aborto cria uma geração de filhos escolhidos, e, quando se escolhem é porque se podem criar e educar. Não havendo crianças abandonadas nas ruas ou em instituições manhosas, a criminalidade diminui. É obvio. A direita conservadora deveria ser a favor do aborto para reduzir a criminalidade. Só a direita progressista defende a legalização do aborto.  Vem aqui o meu ponto: se os conservadores defendem sociedades mais seguras, então, porque é que defendem a ilegalidade do aborto? Assim como os progressistas que ao defenderem a legalização estão a escolher uma sociedade muito muito menos formatada ideologicamente nas suas escolhas e muito menos controlada nas suas dinâmicas.  O tema do aborto pode ser uma "luxury beliefs" para os liberais que representam a direita progressiva, mas com uma perspectiva totalmente diferente, se quisermos ser perversos, da esquerda mais progressista.  Os luxury be-li-e-ves podem suscitar diferentes interpretações, e serem apenas as más figuras indispensáveis da adolescência com as suas bebedeiras de caixão à cova. Em Yale, estas bebedeiras são mais intelectuais. Com a idade passam. Na esquerda não são bebedeiras, são ideologia. 9Responder  João Pedro Valente > Ruço Cascais: Nota: Kamala vai perder estas eleições porque deu os dois flancos à comunidade negra. Fica a perspectiva que Kamala seria a presidente dos negros e não a presidente dos norte-americanos. É só Beyoncês e malta negra naqueles comícios. Faltam brancos no cenário. Obama está demasiado colado à campanha. Acho mesmo que os democratas se lixaram nestas eleições com esta estratégia de uma candidatura negra, na minha opinião. Agora até já é o Trump que dança e ri nos comícios. Roubou esse protagonismo a Kamala que deixou de dançar e rir, atributos que eram cativadores com que entrou na campanha; alegria. Aos dias de hoje é Trump que brinca, Kamala parece um Hitler.                   Paulo Silva: Na ementa política de hoje temos “convicções de luxo” para apreciadores de caviar...           José Boto: Parabéns pelo excelente artigo. Deveria servir de reflexão para alguns comentadeiros da praça lisboeta!

 

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