Cultismo, conceptismo, gongorismo -
preciosismo, em suma, segundo Molière, com as suas “Preciosas Ridículas” da muita afectação linguística, por parte das
heroínas Cathos e Magdelon… eis uma tendência que se multiplica no decorrer dos
tempos, graças ao empenhamento dos esforçados, muitos hoje universitários. Uma
crónica a não perder, de Patrícia Fernandes, sobre o preciosismo linguístico
distintivo das classes que se prezam, hoje, quais sejam as universitárias,
extinto o requinte nas vestimentas, que até é de bom-tom levarem rasgão, sendo
o discurso das convicções assaz distintivo, e mesmo de luxo, para glória
pessoal, por mais egoístas ou anormais que essas sejam, desde que os não afectem
a esses, é claro.
O que é isso de “luxury beliefs”?
Sim, o Partido Democrata tornou-se um
partido de elites, muito mais preocupado com os meninos das universidades que
protestam do que com aqueles a quem cabe limpar os campi no final dos
protestos.
PATRÍCIA FERNANDES Professora na Escola
de Economia e Gestão da Universidade do Minho
OBSERVADOR, 28 out. 2024, 00:1841
1 Convicções de luxo
A expressão “luxury beliefs” foi cunhada
por Rob Henderson num artigo de
2019 e desenvolvida no seu recente livro de memórias,
ainda sem tradução entre nós: Troubled: A Memoir of Foster Care, Family, and Social Class. A dimensão biográfica não é despicienda:
Henderson passou a infância a saltar de casa de acolhimento em casa de
acolhimento e apenas com muito esforço e sorte foi admitido na Yale University.
Foi nesse contexto universitário de elite que amadureceu a ideia de “luxury
beliefs”.
Para Henderson,
as convicções de luxo ocupam hoje o lugar que era ocupado
pelos bens de luxo para distinguir a elite das restantes classes
sociais – uma mudança que é particularmente notória nas novas gerações. Quando
chegou a Yale, em setembro de 2015, Henderson ficou surpreendido com o facto de
os seus colegas se vestirem como
estudantes “normais” e evitarem demonstrar a sua condição social excepcional –
confirmando os diagnósticos das últimas duas décadas que revelam que as
novas gerações tendem a desprezar mais a posse de bens materiais, a valorizar mais as experiências e a
considerar que é moralmente correcto estar contra o capitalismo. No final de
outubro desse ano, Henderson começou a perceber que os seus
colegas podiam não exibir bens de luxo, mas ostentavam com
orgulho convicções de luxo.
Os acontecimentos desse outono, ligados
à chamada polémica de Halloween (que descrevi aqui), fizeram
com que Henderson se confrontasse não só com uma série de palavras que
desconhecia – privilégio branco,
apropriação cultural, heteronormatividade –, como também com a caricatural
ideia de que palavras escritas num e-mail
que apelava à autonomia dos estudantes provocavam dor e trauma:
Nos anos seguintes, Henderson foi
reflectindo sobre como estes jovens usavam estas ideias e um certo vocabulário
para sinalizar o seu estatuto social – é esse o sentido de “convicções de luxo”.
2 O povo é que paga
A expressão “luxury
belief” pode, na verdade, ser entendida num duplo sentido e é esse duplo
sentido que a torna especialmente relevante para interpretar o que está a
acontecer nas sociedades ocidentais. Analisemos o primeiro desses sentidos,
que decorre da sua definição como “ideias
e opiniões que conferem estatuto às elites que as proferem sem que estas sofram
as suas consequências negativas, que recaem quase exclusivamente sobre as
classes mais desfavorecidas”.
Um dos exemplos que Henderson refere com
mais regularidade é a reivindicação “defund the police”, popularizada
em 2020 e sobre a qual nos debruçamos recentemente: a ideia de que o financiamento da polícia deve ser
reduzido parece muito progressista quando colocada nos cartazes dos estudantes
das universidades de elite norte-americanas – mas, na prática, a implementação
dessa política teve péssimas consequências para as classes mais desfavorecidas
(é mesmo altamente desaprovada junto dessas classes). “Defund the police” é, então, uma típica
convicção de luxo naquele sentido que a língua portuguesa expressa tão bem
quando dizemos que essas pessoas se podem dar ao luxo de defender
essas ideias – afinal, não serão afectadas por elas, não terão de suportar o
custo dessas políticas.
Outra convicção de luxo identificada por
Henderson é a ideia de que a “religião é
irracional e prejudicial”, quando, na verdade, “os locais de culto são muitas vezes essenciais para o tecido social
das comunidades pobres. Denegrir a importância da religião prejudica os pobres.
Embora as pessoas abastadas encontrem muitas vezes significado no seu trabalho,
a maioria dos norte-americanos não se dá ao luxo de ter uma “profissão”. Têm
empregos. Pegam e largam a horas certas. Sem uma família ou uma comunidade para
cuidar, esse trabalho pode parecer sem sentido.”
O mesmo raciocínio deve ser aplicado à
ideia, muito popular nos Estados Unidos, de “fat-shaming”, à defesa da legalização das drogas, à
crença no privilégio branco e à convicção de que o mérito é muito menos
relevante do que forças sociais aleatórias, como a sorte (mais sobre isto em breve).
(No
seu artigo, Henderson explica o argumento a partir da instituição familiar,
mas como a questão da família merece um artigo próprio ficará para um texto
futuro.)
Nesta
dimensão, a ideia de “convicções de luxo” pode ser útil para retratar uma certa
hipocrisia, muito recorrente na política, que se verifica quando os actores
políticos defendem medidas que afectarão negativamente as classes a que eles
não pertencem. E se isto vos faz lembrar a posição de
certas pessoas que, entre nós, defenderam o fim dos contratos de associação
enquanto os seus filhos andavam em escolas privadas, não é por acaso. Trata-se
tipicamente de uma convicção de luxo.
O cientista político Yascha Mounk considera, nessa medida, que o conceito deve ser libertado do contexto
de lutas culturais norte-americano, para ser aplicado com mais proveito como
chamada de atenção para que os actores políticos estejam mais conscientes das
consequências das suas propostas, como, por exemplo, quando os ambientalistas
ocidentais defendem que as nações africanas não devem cultivar alimentos
geneticamente modificados ou as elites económicas de direita recusam que o
estado deva ser responsável pelos cuidados médicos dos seus cidadãos.
3 A política das elites
Contudo, ao procurar retirar a dimensão
moral que está implícita na expressão de Henderson, parece-me que Mounk afasta o segundo sentido daquela ideia
e que é especialmente rico para compreender aquilo que se tem vindo a designar
como “the great divide”.
“A
grande divisão” é, na
verdade, essencial para compreender as tendências de voto da última década nos
países ocidentais e as transformações a que, com toda a certeza, continuaremos
a assistir nos próximos anos. No Reino Unido, David Goodhart consagrou
esta divisão entre nowheres (que não são de lado algum, i.e., se vêem como cidadãos do mundo)
e somewheres (aqueles,
geralmente sem estudos universitários, que se veem como enraizados numa
comunidade) em The Road to Somewhere: The Populist Revolt and the Future of Politics.
Já no contexto francês, os termos utilizados remetem geralmente para a oposição
entre “globalistas” (ou cosmopolitas) e “identitários” (ou nacionalistas). Estas mudanças resultam de a luta
política se ter transformado em luta cultural, fazendo com que praticamente
desaparecesse a antiga correspondência entre esquerda e classes trabalhadoras
ou economicamente mais frágeis, substituídas por identidades minoritárias e
intelectualmente construídas.
Ora,
a história desta grande divisão coloca-nos precisamente no contexto
universitário e no modo como a expressão “convicções
de luxo” remete, também, para o sentido de “convicções que só alguns se podem dar ao
luxo de pagar”. De facto, estas ideias que tomam forma num
vocabulário específico foram criadas nas universidades de topo
norte-americanas e ensinadas como uma espécie de acesso privilegiado à Verdade
que a maioria da população – ignorante – desconhece. Essa
maioria corresponde aos deploráveis, os que têm ideias erradas, os que se expressam inaceitavelmente, os
que acreditam em teorias da conspiração ou fake news e que precisam
de ser ensinados a pensar adequadamente, a expressar-se
adequadamente e, em particular, a votar adequadamente.
Como o comportamento humano é
essencialmente mimético, e tendemos, em particular, a imitar o comportamento
das elites, estas convicções de luxo espalharam-se das academias de elite para
as restantes universidades, e daí para as elites culturais e os meios de
comunicação social, fechando-os numa bolha social e cultural e criando a
grande divisão. Como diz
Henderson, “Veja-se
o vocabulário. O típico norte-americano da classe trabalhadora não saberia
dizer o que significa “heteronormativo” ou “cisgénero”. Mas se visitarmos uma
universidade de elite, encontraremos muitas pessoas ricas que nos explicarão
com todo o gosto. Quando alguém usa a expressão ‘apropriação cultural’,
o que está realmente a dizer é: ‘Fui educado numa universidade de topo’. Só
os ricos se podem dar ao luxo de aprender vocabulário estranho, porque as
pessoas comuns têm problemas reais com que se preocupar.”
Esse estatuto superior
materializa-se, então, numa linguagem própria e que precisa de ser renovada
regularmente (tal como as peças de vestuário se submetem à dura lógica da
moda). As palavras vão mudando, as ideias vão-se renovando e
a pressão sobre os pares é mantida:
“É possível que os brancos abastados não
concordem sempre com as suas próprias convicções de luxo, ou, pelo menos,
tenham dúvidas. Talvez não gostem do casaco de peles ideológico que estão a
usar. Mas se os seus pares os castigarem por não o usarem sempre, nunca mais
sairão de casa sem ele.”
Foram estas ideias que se infiltraram no Partido Democrata e que
alteraram o panorama eleitoral nos Estados Unidos, tornando a próxima eleição
tão disputada. Os contributos da dupla John Judis e
Ruy Teixeira são, nesse sentido, muito úteis. Em 2002, estes
autores publicaram um popular livro, The Emerging Democratic Majority,
que se veio a revelar pouco preditivo, pelo que, no ano passado, tentaram
explicar o que falhou. Em Where Have All the Democrats Gone?,
os autores defendem que não só os democratas se tornaram reféns das elites
tecnológicas, como, sobretudo, foram tomados por um radicalismo cultural que
afastou o partido das preocupações das pessoas comuns, que eram o seu
eleitorado base. Acima de tudo, “Os democratas precisam de se olhar ao
espelho e examinar até que ponto os seus próprios fracassos contribuíram para a
ascensão das tendências mais tóxicas da direita.”
Neste sentido, há poucas dúvidas quanto
à pergunta que, por vezes, desponta no podcast América Dividida: sim,
o Partido Democrata tornou-se um partido de elites, muito mais preocupado
com os meninos das universidades que protestam do que com aqueles a quem cabe
limpar os campi no final dos protestos.
wokismo Estados Unidos da América América
Mundo
COMENTÁRIOS(de 44)
Jose Miguel Pereira > Maria
Tubucci: É
completamente errado dizer que as Universidades de topo americanas "...há
muito deixaram de ser centros de conhecimento...". Só ignorância e
cegueira sectária é que podem levar alguém a dizer isso. A verdade é que continuam a ser dos melhores centros
de produção de conhecimento no Mundo, ao mesmo tempo que originam
"...ideologias altamente corrosivas...". Mario Pinto: Isto é o tipo de artigo que devia ser - muito - mais
divulgado, para que se possa entender que a defesa de certas ideias não é
necessariamente sinal de "progressismo" ou "reacionarismo". Parabéns.
Maria Tubucci: Excelente,
Prof.PF. As universidades de topo americanas há muito deixaram de ser centros
de conhecimento para serem centros de formatação de ideologias altamente
corrosivas, que ao serem aplicadas destroem tudo. Depois temos os parolos deste
lado que importam este lixo tóxico para as universidades de cá. Resultado:
temos uma comunicação social que não informa os factos, dá a sua opinião sobre
os factos, deturpando a realidade, deturpando o que os outros que eles detestam
dizem. Lá está, eles consideram-se superiores, “luxury belief”, habitam numa
bolha que os outros não têm, ou seja, vêem a realidade só com o olho esquerdo,
são deficientes ideológicos, o pior cego é o que não quer ver. José Paulo Castro > Ruço
Cascais: Essa do
aborto como medida redutora de criminalidade é boa como equívoco: não havendo
'crianças' abandonadas apenas porque são abandonadas no útero, antes de o ser. Depois
queixam-se do envelhecimento da sociedade e passam a importar as dos outros,
criadas por eles, sem perceber se são causa de criminalidade ou não. Os
muçulmanos explicam: perguntem ao Erdogan o ele disse às muçulmanas holandesas
para um dia controlarem aquilo. Temos
de criar um novo conceito para short horizon beliefs. Luís Rodrigues: O
conceito de “convicções de luxo” merece ser referido e difundido em abundância.
A perversão de universidades americanas inventou abortos como “teoria de
género” ou “teoria crítica da raça”, invocados a-torto e a direito por
conveniências ideológicas. Os objectos que aquelas locuções fabricadas
pretendem nomear têm uma existência equívoca e escorregadia. As convicções de
luxo são muito mais reais. Rui Lima: Um professor de direito da Universidade de Colômbia
faz uma análise às empresas e aos seus conselhos de administração sobre doações
aos partidos. A partir de 2001 houve uma deslocação para a esquerda, ele
analisa os financiamentos partidários - é sem apelo. Hoje o partido democrata é
o partido das empresas e dos ricos. José
Carvalho: Afinal o
Ocidente também tem as suas madrassas. Harvard; Yale; Cambridge etc etc Durval Ferreira: Há estudos para todos os gostos. Podemos sempre
correlacionar a redução da criminalidade nos EUA com as alterações climáticas,
por exemplo. Como diria Marx (o Groucho): tenho estes estudos mas se não
gostarem posso arranjar outros. Ruço Cascais: Muito bom. Só para criar um bocadinho de
contraponto podíamos também falar na legalização do aborto como um "luxury
Beliefs". Os conservadores de um modo geral são contra a legalização
do aborto, os progressistas a favor da legalização. Li há uns tempos um
livrinho que já não me lembro se foi o Freakonomics (Levitt e Dubner) ou o
Falar com Desconhecidos (Gladwell), em que relacionava a legalização do aborto
nos Estados Unidos com a diminuição da criminalidade nas gerações seguintes.
Tem um pouco a ver com a reabilitação de Nova Iorque nos anos 80. Se
assim for, a legalização do aborto cria uma geração de filhos escolhidos, e,
quando se escolhem é porque se podem criar e educar. Não havendo crianças
abandonadas nas ruas ou em instituições manhosas, a criminalidade diminui. É
obvio. A direita conservadora deveria ser a favor do aborto para reduzir a
criminalidade. Só a direita progressista defende a legalização do
aborto. Vem aqui o meu ponto: se os conservadores defendem
sociedades mais seguras, então, porque é que defendem a ilegalidade do aborto?
Assim como os progressistas que ao defenderem a legalização estão a escolher
uma sociedade muito muito menos formatada ideologicamente nas suas escolhas e
muito menos controlada nas suas dinâmicas. O tema do aborto pode ser uma
"luxury beliefs" para os liberais que representam a direita
progressiva, mas com uma perspectiva totalmente diferente, se quisermos ser
perversos, da esquerda mais progressista. Os luxury be-li-e-ves podem
suscitar diferentes interpretações, e serem apenas as más figuras
indispensáveis da adolescência com as suas bebedeiras de caixão à cova. Em
Yale, estas bebedeiras são mais intelectuais. Com a idade passam. Na esquerda
não são bebedeiras, são ideologia. 9Responder João
Pedro Valente > Ruço
Cascais: Nota: Kamala vai perder estas eleições porque deu os dois flancos à
comunidade negra. Fica a perspectiva que Kamala seria a presidente dos negros e
não a presidente dos norte-americanos. É só Beyoncês e malta negra naqueles
comícios. Faltam brancos no cenário. Obama está demasiado colado à campanha.
Acho mesmo que os democratas se lixaram nestas eleições com esta estratégia de
uma candidatura negra, na minha opinião. Agora até já é o Trump que dança e ri
nos comícios. Roubou esse protagonismo a Kamala que deixou de dançar e rir,
atributos que eram cativadores com que entrou na campanha; alegria. Aos dias de
hoje é Trump que brinca, Kamala parece um Hitler. Paulo
Silva: Na ementa política de hoje temos “convicções de luxo” para apreciadores de
caviar... José Boto: Parabéns
pelo excelente artigo. Deveria servir de reflexão para alguns comentadeiros da
praça lisboeta!
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