Estranho texto de EDUARDO SÁ, que, se
descreve bem os alicerces do viver de hoje, não deixa de parecer um convite
leviano para que se desrespeitem os valores que, desde sempre, formaram a
personalidade humana e as sociedades na sua evolução. E isso parece-me uma
desonestidade, um convite à inércia e ao parasitismo social, ao incumprimento
de regras que foram - e são – ditadas pela razão humana – de resto, necessárias
para a tal evolução de uma sociedade em que todos estamos integrados,
naturalmente assente em diferenças sociais nem sempre justas, mas não parecendo
isso motivo de desistência da nossa condição humana, baseada, é claro, em
diferenças, em contrastes, em semelhanças também, na harmonia como na
desarmonia. Um texto deseducativo, pese embora a revolta contra, talvez, os
excessos de trabalho de alguns humanos, contra a libertinagem da falta dele em
outros humanos.
Um texto, aliás, ofensivo para os seres
responsáveis, que não olham apenas para o seu umbigo, tentando cumprir o que
lhes é imposto na vida que escolheram, e ensinando os filhos a seguirem iguais
parâmetros, talvez, na liberdade das suas opções e interesses, certamente, mas
na responsabilidade do cumprimento honesto, em função do trabalho desempenhado.
Um texto que parece antes um apelo à
falta de brio no desempenho de cada ser humano, e bem nos bastam para tal, as
leis de displicência e indisciplina criadas por cá com o 25 de Abril – talvez
justificativas deste texto de um “psicólogo” provavelmente habituado a analisar
protestos dos tais seres educados segundo as novas regras de liberdade e de libertinagem,
afinal, que nos fazem admirar outros seres cumpridores, que também vemos por
este mundo, felizmente, e até mesmo no nosso país. Que seria do mundo se tudo
fosse apenas gozo, brinquedo para satisfação pessoal? Nem estes o seriam assim
considerados, em breve tornados fastidiosos para o ser insatisfeito e criativo -
“varium et mutabile” – que é todo o ser humano (e não só a mulher) - que aqui
se pretende reduzido a uma unilateral e falsa condição de quase subserviência
lúdica.
Um texto apoiado no tal conceito de
democracia, do poder popular mais numeroso, impondo a sua força numérica mas
mais acéfala, para exigir irracionalmente um desempenho massificado e
igualitário perfeitamente anedóticos, pois que destituídos da força que traz o
poder do dinheiro e da ordem organizadora, na construção do mundo.
A diferença entre matarmo-nos a
trabalhar e sermos pagos para brincar
Aquilo que no século XXI se pede ao
trabalho é outra revolução. Agora de rosto humano. Que nos torne só pessoas que
trabalhem o mínimo indispensável. Pessoas com vida. Com mundo.
EDUARDO SÁ
Psicólogo
OBSERVADOR; 13
out. 2024, 20:026
Temos várias vidas, raramente
alinhadas umas com as outras e com as prioridades, muitas vezes, todas trocadas. Somos movidos por uma agitação
permanente, como pequenos hamsters numa correria insana, com a sensação de que
vivemos esgotados, quase nunca sem se sair do mesmo lugar. Trabalhamos horas
demais, rodeados de objectivos e de níveis de produtividade sempre mais
exigentes. E temos relações de trabalho, muitas vezes, muito tóxicas, que fazem
com que o espaço que ele nos reserva para nos escutarem, nos respeitarem e para
sermos nós acabe por ser muito
poucochinho.
Guardamos para o fim-de semana aquilo que não vivemos todos os dias.
Para as férias, tudo o que adiámos ao longo de um ano. E para a reforma os sonhos,
os pequenos prazeres e os momentos que nos criam memórias e dão sol e alma à
nossa vida.
Temos,
todos os dias, a sensação que há sempre qualquer coisinha de importante que,
demasiado cedo, se tornou longe demais. Raramente sentimos que a nossa vida tem
a nossa cara. E mandamos muitíssimo menos nela do que parece. Na maior
parte das vezes, surfamos nos dias, mas mal os gerimos. Mas,
ainda assim, esperam que sejamos eficazes. Empreendedores. “Boas ondas”. Que, mesmo quando temos a sensação que
nos exploram, nunca deixemos de “vestir a camisola”. Que assumamos
como nossos objectivos de trabalho que não condizem com aquilo que sentimos,
nem sequer com o que achamos razoável. Mas esperam que sejamos positivos. Que
sejamos produtivos. Que tenhamos saúde mental e bem-estar. Mas que sobretudo,
trabalhemos. Muito.
Trabalhamos em open spaces mas interminavelmente controlados.
Esperam mais que obedeçamos do que pensemos ou falemos. E somos muito menos
livres do que o que parece. Perante
isto, talvez a questão fundamental não passe por constatarmos os números
astronómicos de episódios depressivos e de burnout que acontecem nas empresas.
Mas reconhecermos que, num
clima de agitação desta dimensão quase cataclísmica, é estranho que não haja
muitos mais. Afinal, o trabalho, tantas vezes transformado como o
factor de grande desequilíbrio para a vida mental, talvez seja, para
muitíssimas pessoas, aquilo que as ajuda e as organiza e as faz fugir doutros
burnouts que a vida lhes traz.
Como
se nada disto já não fosse demais, os filhos custam uma fortuna por dia. Um
primeiro filho implica uma derrapagem de 20 a 25% no orçamento dum casal.
Ocupam espaço de segunda-feira a domingo. Por causa deles, o dia das mães
começa entre as 6 e as 7 e vai até às 24. O tempo que um homem dedica a si
próprio e à família é o dobro do tempo diário que uma mulher gasta consigo e
com a família. O que é injusto! E, mesmo assim, a sensação que ambos acabam por
ter é que o tempo nunca lhes chega. O trabalho e os filhos fazem com que, muito
depressa, um homem e uma mulher coabitem; sim. Mas mal convivam. Pouco falem. E
namorem quase nada.
Já agora, vendem-se em
Portugal 13 milhões de livros e 24 milhões de embalagens de psicofármacos (1
livro por cada 3 embalagens destas, considerando os adultos com mais de 35 anos). Uma imensidão deles que nos sugerem
hábitos e mais hábitos; de preferência, atómicos. Métodos (infalíveis…) para
mudarmos de vida; de um dia para o outro. Programas que tornam o sono fácil, os
ultraprocessados supérfluos, a limpeza cerebral uma vitória a que se chega em
três tempos e a procrastinação numa tontice do passado. E que
nos propõem pilares para a auto-estima, regras para a vida, a felicidade
autêntica e um controle domesticável sobre as emoções e o stress, que nos levem
a ser, sobretudo, focados e motivados para os objectivos que todos nos pedem.
Mas pouco pessoas.
Pagam-nos
pouco. Escutam-nos pouco. Fazem muito pouco com que cresçamos como pessoas.
Mas, depois, sempre que não reparam em nós ou não nos dão espaço para
interpelar e para pensarmos em conjunto, propõem-nos um jantar de natal ou um
ou outro recreio de team building. E enchem-nos de discursos motivacionais. E
essa forma, desajeitada, de lidarem connosco, é bem a face visível do modo como
nos desconsideram. Nos imaginam tontos. E nos supõem facilmente manipuláveis.
No meio de tudo isto, pedem-nos que, sem se trabalhar menos e sem
nos respeitarem melhor, conciliemos melhor trabalho e família. Como se, em
consequência duma engrenagem doentia, não nos tivéssemos tornado pessoas
demasiado sozinhas para aquilo que devíamos ser. E
sempre à espera que um rasgo divino altere aquilo que temos a sensação que,
hoje, nos afasta 10 centímetros de tudo o que mais queríamos. Amanhã, mais 20.
E, depois, mais 50 ou 60 ou, até, 100. A ponto de termos, sobretudo, saudades
daquilo que já fomos. E tudo o que era importante e que em acreditávamos pareça
ter-se tornado num lugar distante. Mais próximo duma miragem que doutra coisa
qualquer.
A vida de inúmeras pessoas, na sua
relação com o trabalho, é, muitas vezes, assim. Mas
trabalhadores, colaboradores e pessoas não são bem sinónimos quando se fala de
trabalho. A revolução industrial tentou transformar cada
homem na peça duma engrenagem. O neo-liberalismo, numa máquina. E as
novas tecnologias em fantoches que se deixam condicionar. Algumas empresas, enquanto fazem assédio
moral, disponibilizam ginásios e aulas de yoga. E seminários sobre a relação
entre o trabalho e a família. E diante de tudo, fala-se (muito!) de saúde
mental. Embora se trabalhe, quase todos os dias, para a comprometer.
Por isso mesmo, a responsabilidade social das empresas não deveria
começar na forma como canalizam meios financeiros para causas sociais. Mas na
forma como não delapidam os recursos humanos que têm ao seu dispor. Até porque se estima que mais de um
quinto da população sofra de uma perturbação psiquiátrica. Que a prevenção da saúde mental nas
empresas possa reduzir as perdas de produtividade em, pelo menos, 30%. E se
assuma que a depressão será a primeira causa de morte, a nível mundial, em
2030. Amanhã, portanto.
Finalmente,
ninguém diz que somos inacreditavelmente sensíveis, atentos e inteligentes. Que
somos comoventes. E amorosos, amáveis e amantes. Que, mesmo que disfarcemos bem,
pensamos 24 horas por dia. Que precisamos de falar para arrumar as ideias, o
cérebro e o corpo. Que precisamos de tempo. De muito tempo para sermos quem
somos. E que pensar é sempre o melhor remédio.
Chegados aqui, é altura de as empresas
reconhecerem que em cada pessoa têm uma matéria-prima preciosíssima para o seu
crescimento. Por isso mesmo, aquilo que mais se devia pedir ao trabalho é
gestão. Gestão de recursos humanos! Para que tudo o que temos para dar não se
meça, ao metro, contando as horas madrugadoras em que entramos e as horas
tardias a que saímos do trabalho. Afinal,
há uma diferença do tamanho da vida entre matarmo-nos a trabalhar e sermos
pagos para brincar!
Aquilo que no século XXI se pede ao trabalho é outra revolução.
Agora de rosto humano. Que nos torne só pessoas que trabalhem o mínimo
indispensável. E que encontrem nele as encruzilhadas de todas as
suas vidas que façam do trabalho a sua cara. Que não queiram senão pessoas que pensam. Pessoas com vida. Com
mundo. Com relações, com projectos e com hobbies. Com tempo para si e para quem lhes dá razões acrescidas para viver.
Pessoas que amem a vida em vez de se cansarem com ela. Pessoas
que, mais do que ganharem a vida e terem um emprego, ganhem vida. Ganhem à
vida! Também com o trabalho, claro!
Para termos a sensação que as empresas, o estado e a vida, no seu dia a dia,
não nos exploram. Ou não nos matam devagarinho. E que só teremos direito a ter
futuro se nunca deixarmos de reclamar o enorme compromisso de termos presente.
COMENTÁRIOS
Tomazz Man: Pontos
relevantes, porém, com excessos de tónica nos mauzões dos empresários
exploradores e sanguessugas de almas. Há empresas que abusam? Sim. E
colaboradores? Pois, também! E depois há uma coisa chata que é a
realidade. Aquele lugar onde tem que haver dinheiro para pagar coisas. Logo,
para as empresas gastarem mais dinheiro ou abdicaram de produção, é
preciso...dinheiro. Paul C.
Rosado: Quando se
ataca continuamente, desvirtua e corrompe, a ideia de família, o cidadão passa
a ser uma mera peça, dispensável, numa engrenagem. Quando tudo se relativiza, e
se abandonam os valores absolutos morais, tudo vale na busca pelo proveito. O
português, agora culturalmente afastado da sua religião tradicional, caiu que
nem um patinho nas promessas dos gurus esquerdistas por um lado e dos
neo-liberais pelo outro, ambos inimigos do conceito prioritário da família.
Aceitam horas e horas a trabalhar para um qualquer estranho, muitas vezes para
lá do contratado, enquanto entregam as suas crianças ao cuidado de outros
quaisquer estranhos, para os quais elas não são a prioridade. Que sociedade futura
estamos a criar? Uma sociedade sem laços fortes e de vínculos afectivos
diminuídos, temporários e facilmente substituíveis. Fácil de moldar para os
"engenheiros sociais", públicos e privados, que engordam, na sua
maior parte, sem grande mérito, pois o mérito pouco ou nada já importa. bento guerra: Hoje o nosso psicólogo "fofinho" caiu na
real. Mas, qual a receita? Amai-vos uns aos outros, enquanto produzis os
"objectivos". Faz -me lembrar um cartaz que o PCP colocou junto ao
Alto da Barra, sítio chique da Marginal "O trabalho não é custo". A
realidade é que é e tem de ser metido entre as parcelas da despesa, não há como
sair.
Antonio
Tavares: o trabalho em
gabinetes / salas open space de fraca qualidade em isolamento acústico (actividade
muito popular na Tugalandia) é para incentivar o pessoal a comprar EPI
(equipamentos de protecção individual) para proteger o pessoal da poluição
sonora e do ruído. Este pode também ser utilizado em restaurantes, bares e
discotecas, hotéis de má qualidade e alojamento local de má qualidade..
Luis Santos: Elton
Musk apresentou na passada semana robôs com inteligência artificial, capazes de
interagir com os humanos. O
tiktok despediu centenas de funcionários e substitui tarefas por IA. Pelo
que a relação do homem com o trabalho vai sofrer enormes alterações nos
próximos dez anos. A questão agora será como ficará o homem relativamente ao
trabalho? Lily Lx: Muito muito muito bem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário