Sobre um assunto social dos nossos pecados.
Repito o comentário de João Ramos, que será o de todos os que
lerem este conclusivo “apanhado” de JAIME NOGUEIRA PINTO sobre tal fenómeno cultural deste mundo curioso sempre, e doloroso também:
«É bem raro aparecer alguém com a coragem de escrever sobre este flagelo que ensombra hoje as nossas sociedades, bem hajas Jaime!!!»
O inferno dos descobridores de paraísos
A luta contra a dependência é uma
luta desigual com uma força obscura que cria laços de submissão poderosos.
Felizmente há quem ache que vale mais
acender uma candeia do que maldizer a escuridão.
JAIME NOGUEIRA
PINTO Colunista do Observador
OBSERVADOR, 12 out. 2024, 00:1820
Na década anterior, nos anos 60, a droga popularizara-se no mundo
euro-americano como símbolo de contracultura: uma contracultura com
reivindicações políticas, mas também sociais, raciais, geracionais, sexuais,
espirituais. Ao explicar o seu célebre motto “Turn on, Turn in, Drop out” Timothy Leary definia o programa: as drogas eram uma porta, um
interruptor, um gatilho, para níveis de consciência até aí inéditos,
interditos; havia que romper as amarras, que entrar em sintonia com o universo
e que exteriorizar “novas perspectivas internas”; havia que abandonar tudo o
que era estático, imposto, vinculativo e descobrir a própria singularidade, num
eterno compromisso para com “a mobilidade, a escolha e a mudança.”
Perante o eterno “sereis como deuses”
da serpente, estava aberta a corrida ao fruto proibido, com a promessa de um
acesso rápido e pleno ao paraíso. Da rejeição das opressivas baias do cristianismo oficial e do
moralismo da família tradicional, partia-se em auto-descoberta entre vagos
transcendentalismos orientalistas, aparentemente mais favoráveis à libertação
de todas as amarras.
Na cultura hippie, que teria o
seu momento alto em Woodstock,
banalizava-se entre os jovens das classes médias e altas o consumo de marijuana e LSD. Na América, a Califórnia e Nova Iorque, na
Costa Leste, eram os lugares sagrados do novo movimento anti-guerra e pró-amor. Ronald
Reagan, então governador da Califórnia, comentava a propósito de uma florida
manifestação de estudantes que arrastavam cartazes com a palavra de ordem “Make love not war”: “Não me pareceram capazes de fazer nem uma
coisa nem outra.”
O Inferno dos descobridores de paraísos
Mas as drogas tinham uma longa história
na cultura ocidental: grandes poetas, grandes escritores, usaram-nas
e confessaram o seu uso: T.S.
Coleridge, o autor de Kubla Kahn, era um habitué e morreu cedo
do abuso; Thomas de Quincey publicou Confessions of an English Opium
Eater em 1821; Edgar Allan Poe fumava haxixe, tal como Baudelaire. Mais
perto de nós, no século XX, Burroughs, o autor de Junckie, confessava-se
consumidor de heroína e ópio e assumia-se como homossexual, num tempo em que
não era costume; na Europa, Sartre tomava mescalina desde os vinte anos,
descrevendo visões em que era perseguido por lagostas e caranguejos nos Champs
Elysées.
Aldous Huxley, Tennessee
Williams, Jack Kerouak, Phillip K. Dick, Stephen King, todos eram confessos
consumidores de drogas várias como estímulo à escrita.
E havia o clássico, o álcool, usado e
abusado milenarmente por comuns mortais e grandes criadores.
Charles Baudelaire, o poeta
de Les Fleurs du mal, descreveu numa obra confessional, Les paradis
artificiels, o inferno dos dependentes: “Quero provar que os descobridores de
paraísos fazem o seu inferno, preparam-no, cavam-no com um sucesso cuja
previsão talvez os atemorizasse.”
O conceito de “Paraíso
artificial” – indissociável do Paraíso original cuja perda e reconquista inspirou muitos
dos nossos maiores poetas e escritores, de Dante a Milton
– é importante para se entenderem algumas das motivações e razões dos que para
ali partem: a libertação da dor e das misérias da dura realidade,
o acesso fácil e imediato a outros mundos “espirituais” e materiais, o gosto do
risco, a atracção pelo abismo.
O resultado acaba por ser
dependência, o vício, a escravidão, a construção do próprio inferno – próprio e
alheio.
É uma coisa que, apesar do empenhamento
dos governos, da repressão, da acção das igrejas, do voluntariado de tantos por
todo o mundo, continua a ser uma praga colectiva, uma fonte
de desgraça e de miséria para milhões – na
Europa, nos Estados Unidos, em toda a parte –, uma porta para o crime,
organizado ou desorganizado, de cartéis ou de consumidores.
Diz o Center for Desease
Control and Prevention que em 2023
houve nos Estados Unidos 107.543 mortos por overdose, a maioria por
ingestão de fentanil, uma droga com poderosos efeitos analgésicos. Mas nas Guianas, na
Bolívia e na República Dominicana, a
percentagem de mortes é ainda maior. Além de um certo laxismo na
prescrição de opioides, o mercado ilegal e os laboratórios clandestinos são os
principais responsáveis pela disseminação destas drogas mortais. E apesar da
repressão, os mercados abastecedores – uma rede muito complexa de máfias de
diversas origens étnicas e geográficas, por vezes com cumplicidades a nível
estatal, como nos chamados narco-Estados – continuam a funcionar.
Já
não estamos no tempo dos grandes escritores que aceleravam a produção e os
estados criativos tomando opiáceos. Embora o consumo de drogas continue a estimular (e arruinar)
“criadores”, músicos, artistas, estende-se a todas as classes profissionais e
sociais. E os que não são multimilionários, além de se arruinarem humanamente,
acabam também por se arruinarem financeiramente – e a ter de roubar para
poderem continuar a viajar até aos “paraísos” de que se tornaram dependentes
Uma guerra feita de batalhas
A droga é como certas soluções
políticas: pode ser aparentemente libertadora ou libertária mas acaba por criar
cadeias mais fortes do que aquelas de que promete libertar-nos. É um paraíso
que passa rapidamente a inferno; e um inferno que se multiplica, por mais
repressiva ou por mais liberal que seja a política de controlo. Não falta, por
isso, quem fale em “guerra perdida”.
Mas
uma guerra é feita de batalhas. E, às vezes, ganham-se algumas. J.D. Vance, o
candidato republicano à vice-presidência, contou uma dessas batalhas vencedoras
no seu livro Hillbilly Elegy. A saga da sua família destruída pelo álcool
e pelas drogas e depois resgatada é uma história de redenção.
E por cá? Diz um estudo de há um ano do Centro
Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa que o consumo de substâncias psicoativas ilícitas em
Portugal subiu mais de 60% desde 2001, embora esteja abaixo da média registada pelo conjunto
dos países europeus. Em
“compensação”, a ingestão de álcool per capita, mesmo não tendo
sempre ou inevitavelmente a mesma gravidade e as mesmas consequências do que o
consumo de outras drogas, é aqui a mais alta do mundo.
Temos
de lutar contra este flagelo e ajudar os que o fazem, como o Vale de Acór,
que cumpre agora 30 anos https://www.valedeacor.pt/.
A comunidade Vale de Acór é uma obra da responsabilidade do
padre Pedro Quintela que conta com uma equipa de dezenas de profissionais e
voluntários para acolher pessoas com problemas de dependência de drogas, álcool
ou jogo.
Os programas da comunidade têm um
mínimo de 15 meses de duração e visam a reinserção dos que os procuram na vida
de todos os dias, na família e na profissão. Actualmente estão lá mais de cem
pessoas. A luta contra a dependência é, como reconhecem todos os que ali trabalham,
uma luta desigual; uma luta contra uma força por vezes avassaladora que cria
laços de submissão poderosos.
Mas todos os que estão nesta guerra
acham que vale mais acender uma candeia que maldizer a escuridão.
A SEXTA COLUNA HISTÓRIA CULTURA DROGAS SOCIEDADE
COMENTÁRIOS (de 20)
Tim do A: Bons conselhos de um
experiente sábio. Os paraísos artificiais são sempre maus e decadentes. É como
o Dubai. Manuel Gonçalves: Muito bem. Maria Nunes: Excelente artigo. Uma chamada de atenção para um
problema gravíssimo. João Ramos: É bem raro aparecer alguém com a coragem de escrever
sobre este flagelo que ensombra hoje as nossas sociedades, bem hajas Jaime!!! M
Vicente: Excelente artigo, sem dúvida. E uma lufada de ar fresco - passe a gravidade do tema
- naquilo que tem sido a realidade cá do sítio, permanentemente metralhada
somente com orçamentos e aprovações e mais orçamentos e mais aprovações e
namoros à mistura e reuniões secretas, como se não houvesse amanhã. Vivemos quase alienados da vida real, sem que nos dêem tempo para pensar.
João Floriano:
O grande
problema é que esses descobridores de paraísos lançam também os outros que não
têm culpa, nos seus infernos pessoais. Álcool e drogas estão na origem da maior
parte de crimes por violência doméstica. São cada vez mais frequentes os crimes
de maus tratos e até morte de idosos às mãos de filhos tresloucados que não
trabalham e querem manter o vício. O massacre da Penha de França foi executado
por alguém com problemas de drogas. Feitas as contas há 12 crianças com um
começo de vida muito complicado: 6 filhos do barbeiro, 3 filhos do casal e 3
filhas do criminoso. O relatório referido no artigo chama ainda a atenção para
o aumento das drogas sintéticas, muito mais aditivas do que as tradicionais.
Mas há ainda um outro caso de dependência. quem apesar de consumir
continua a ser «funcional», a ir trabalhar, a relacionar-se
socialmente. Tenho a maior admiração por quem consegue sair do inferno e
manter-se sóbrio, até porque não serão muitos os casos. Deve ser uma luta
constante, diária, uma atenção permanente para não voltar ao inferno, sobretudo
quando os problemas da vida nos batem à porta. E em relação à prevenção, às
campanhas que poderiam também ser uma candeia minúscula na maior escuridão, mas
mesmo assim uma luz? Não conheço.
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