Inesperadas, de inesperado optimismo.
Regresso à entrevista-memória de Mário Soares
Estes livros não são memórias que
depois se transformariam num monólogo; não são de modo algum mais entrevista.
Foram uma longuíssima conversa no tempo que permanece hoje, pela memória e pelo
legado.
MARIA JOÃO AVILLEZ Jornalista, colunista do
Observador
OBSERVADOR; 02 out. 2024, 00:2249
1Nunca me canso de escrever sobre Mário
Soares. Esta semana fi-lo com gosto uma vez mais, a ocasião reclamava-o e
recomendava-o: reclamava-o por se tratar da apresentação da reedição, a
cargo da Imprensa Nacional Casa Moeda, de três livros que tive o privilégio de
poder fazer com o dr. Soares. Os livros são hoje dois e não três como há trinta
anos, fundidos agora em dois volumes, belíssimos, na dignidade tão cuidada da
sua estética. Mas se esta reedição obviamente reclamava palavras que honrassem
memórias, a figura de Soares, recomendava-o: o que ele fez, os seus combates, a
sua coragem infinita, a permanente noção do lugar do seu partido no nosso
xadrez partidário, o instinto, a persistência, o legado que nos deixa, são uma
responsabilidade para quem participou, interveio ou testemunhou esse tempo e as
suas etapas. E cada uma delas, independentemente das suas circunstâncias, é
sempre fornecedora de política, decisão, escolha, combate. Uma responsabilidade
de cidadania, sim. Mas há outra: a de ir falando nisso, lembrando isso,
discutindo isso. Fazendo render a responsabilidade.
Valeria a pena. Deixo breve contributo,
este que segue e leva as palavras que disse anteontem, no lançamento destas
reedições.
2Corria o ano de 1994 e, para assinalar a
passagem dos vinte anos sobre Abril de 74, propus ao meu amigo, o jornalista
Vicente Jorge Silva então director do Público onde eu estava, uma série de
amplíssimas entrevistas num leque incomum na sua diversidade. As entrevistas
rematariam com Mário Soares. O sucesso produziu um livro – “Do Fundo da
Revolução”, editado pelo Público e por ele reeditado em Abril, deste ano –, mas
aconteceu que a entrevista do dr. Soares era espantosa: tão avassaladoramente
política, lúcida, interessante, detalhada que percebi que tínhamos de continuar
a conversar. Mas quereria ele fazer um livro – ele que também escrevia e não
deixava os seus créditos por mãos alheias – com uma jornalista que nunca parara
na sua morada política e partidária? É certo que os nossos circuitos se
cruzavam inúmeras vezes, que não tinham conta as idas à Rua da Emenda ou ao
Parlamento, os telefonemas apressados, as “cachas” ansiosas, as entrevistas, as
discordâncias. As mil visitas de trabalho e sem ser de trabalho à sua casa do
Campo Grande; a Nafarros; ao Alvor. Ou a concretização desse jantar na nossa
antiga casa, também no Campo Grande, quando me passou pela cabeça, em Fevereiro
de 1976, juntar à nossa mesa Mário Soares, Francisco Sá Carneiro e Diogo Freitas
Amaral e eles foram. E o dr. Soares tomou conta da ocorrência, encheu a sala e
industriou os presentes a votar no general Eanes para a Presidência da
República, como um imperativo salvífico.
Ou quando no dia 4 de Dezembro de 1980,
pelas cinco da tarde, lhe fui pessoalmente – na qualidade de vizinha-amiga e não
de jornalista – dar más notícias da campanha presidencial do general Soares
Carneiro que eu fazia para o Expresso e cujo desenrolar Mário Soares estava
interessado em ouvir. Mas voltando trágica e apressadamente a sua casa quatro
horas depois, com o país em estado de choque com a brutal morte de Francisco Sá
Carneiro ocorrida nesse intervalo de tempo. E num relance percebi que ele
percebera tudo.
Ou quando o segui profissionalmente a
Moscovo em 1987, numa viagem política de antologia, tão cheia de peripécias
dramático-hilariantes que eram logo partilhadas, em voz muito audível, pela sua
enorme comitiva. Tão audível que, no regresso, o dr. Cunhal, com quem me
avistava por vezes, não hesitou em criticar-me os comportamentos menos
ortodoxos de quem acompanhara Soares. O qual encantara os seus congéneres
soviéticos enquanto connosco se afligia com o que via e descobria. “Não pode
durar”, dizia-nos.
Ou quando o acompanhei a Madrid nos anos
noventa, para lançarmos a edição espanhola de um destes livros e eu pude
testemunhar o genuíno pasmo com que o dr. Soares ouvia o brilhante elogio que
lhe fazia Filipe Gonzalez, o qual quase sabia o livro de cor quando o
apresentou nessa sessão, ocorrida no madrileno Hotel Palace. Sim, era verdade:
o dr. Soares, mesmo gostando muito de si próprio, nunca acreditou que era maior
do que julgava que era.
Podia ficar aqui até amanhã ocupada com
esta cartografia de lembranças mas sim…. havia-se entretanto tecido algo de
muito parecido com uma amizade entre Soares e esta escriba. Mas daí a um livro
a duas mãos? Porque haveria ele, enfim, de se meter nas perguntas de uma
jornalista conservadora como quem se mete dentro de um casaco cujo modelo nunca
usaria? E às vezes, no auge das discordâncias, não hesitando até a confundir
essa conservadora que sou com a reacionária que não era? Em suma, parecia-me
uma missão impossível, Soares não precisava, nem quereria.
Não sei se precisava, mas quis.
Enganara-me redondamente. O dr. Soares quis e julgo que por isso mesmo: por eu
vir do outro lado das coisas – das suas, pelo menos – e preferir a direita à
esquerda com a tal energia convicta. E mais: fê-lo mesmo lembrando-se que eu
fora a sua casa na véspera da eleição da segunda volta da campanha presidencial
de 1985 que ele ganharia a Freitas do Amaral para lhe dizer, antes do acto
eleitoral, que não ia votar nele no dia seguinte, ao contrário do que, com
convicto empenho e entusiasmo, eu fizera na primeira volta.
Aparentemente nada disto teve
importância, nem o “não-voto” presidencial, nem o meu reacionarismo falso, nem
os meus entusiásticos votos na AD de Sá Carneiro em 1979 e 1980 e depois em
Cavaco Silva, sempre.
3No dia 5 de Outubro de 1994, era um
domingo, entrei no Palácio de Belém ao princípio da tarde, com um imenso lote
de informação numa mão e um ramo de datas na outra, mas… que estreia aquela! É
que mesmo achando que caberia ao meu interlocutor a parte de leão naquela
aventura, saberia os meus vários papéis? A perguntadora teria que ser amável,
atenta, persistente, perspicaz, severa, cúmplice, paciente, impaciente; astuta,
belicosa, impiedosa. Tudo isto diante de alguém dotado de uma coragem gloriosa,
um instinto político formidável, capaz de sedução, ambição, convicção e
manipulação. Numa palavra, eu teria que ser a contraparte de uma mesma viagem,
embora viéssemos de destinos diferentes.
O gravador ia registando um longo,
infinito diálogo onde se ouvia uma voz ora leve, ora grave, solta ou irritada,
impaciente, por vezes colérica, mas sempre, em cada situação, afectiva e
interessada.
Sim, às vezes zangava-se conforme dá
conta o historiador David Castãno no prefácio deste livro. Mas eu não podia
deixar de continuar a perguntar. Nunca se pode deixar de perguntar. E aquela
vida valia muito a pena. Para os que acham que o país e o dr. Soares nasceram
em 1974 lembro que muito antes disso já o dr. Soares fazia falar de si,
relacionava-se internacionalmente, fundava um partido fora de portas: dava
trabalho ao regime e combatia por outro. Começava a levar a água ao seu moinho.
Combatendo pelo valor da liberdade com a
consciência de que era aí que residia a diferença a partir da qual se constrói
ou se aniquila. Como voltou a fazer, no ano de 1975, com o país atrás dele
pelas ruas de Lisboa e do Porto, frente a uma real e muito próxima ameaça
política militar, comunista, esquerdista radical. E depois veio a Democracia e
depois a Europa. O moinho tinha cada vez mais água. Mas foi esta água, a da
liberdade primeiro, a do Estado de Direito e da Europa depois, as águas que
sempre elegeu para levar ao moinho. E eis porventura a sua melhor definição política.
Mário Soares ia ganhando, perdendo,
governando, voltando a ganhar e tornando a perder; cercado por vezes por
oposições e instituições, que se uniam para o combater, e até pelo seu próprio
partido com quem travaria combates impossíveis. Mas sempre com o cúmulo da
sagacidade e do entendimento do que é a política: um inimigo de cada vez.
Pelo meio houve sobressalto, tensão,
leviandades, erros, faltas. Mas havia, houve sempre – as vezes in extremis –,
aquela sua capacidade de compreender de que lado estava o essencial e por onde
passava a última linha de demarcação. Talvez por isso, certamente por isso, e
para o bem e para o mal, se lhe menorizou o erro ou a falta.
E depois… um dia, o dr. Soares voltou a
ganhar – à pele – no mais extraordinário combate político destes 50 anos,
entrando no dia 9 de Março de 1986, num Palácio cor-de-rosa frente ao rio. No
dia seguinte de manhã estava a tratar da concórdia nacional num Portugal
dividido ao meio. Mas o país achou tão natural a sua magistratura que se reviu
nela com gosto, reelegendo-o cinco anos depois, com muito mais votos ainda.
Seria outra história mas o moinho já estava cheio.
4A lenda empresta-lhe uma vida fácil.
Parece. Mas só parece: provou da solidão partidária, conheceu a derrota e a
traição, foi objecto de mais que um cerco político, travou lutas fratricidas. E
venceu só algumas vezes. Não fora a sua invulgaríssima coragem e a energia da
sua persistência e não se sabe se teria sido exactamente assim. E também não
fora a solidíssima tessitura da sua vida familiar, a indispensabilidade da
Maria de Jesus sempre ao seu lado, a certeza de que a Isabel e o João estavam
ali, e também não se sabe.
Mas há uma coisa – preciosíssima – que
se sabe: a vida era para Mário Soares o ar que ele respirava e lhe fornecia o
oxigénio para o resto. Foi sempre a partir do apetite e da curiosidade por ela
– que iam de um banho mar a uma conversa a sós com políticos que admirava no
mundo de um cozido à portuguesa, da leitura de um jornal francês, ou das
múltiplas viagens cujas gentes e lugares nunca o cansavam… que seguiu para o
resto. Nenhuma parte desse imenso resto, será inteiramente compreendida se não
se começar pelo cozido, uma ida a Paris, a animação de uma conversa com os
amigos, sobre a política e os políticos. E finalmente, estes livros não são
memórias que depois se transformariam num monólogo; não são de modo algum mais
entrevista. Foram uma longuíssima conversa no tempo que permanece hoje, pela
memória e pelo legado.
LIVROS LITERATURA CULTURA MÁRIO SOARES PAÍS
COMENTÁRIOS (de 49)
Cisca Impllit: Portugal deve e pode agradecer
a Mário Soares, entre Outros, o levantamento político e civil do 25
Novembro. Eu mt lhe agradeço a ida à Fonte Luminosa. As colónias foram perdidas
para o lado soviético porque Portugal, em devido tempo, não soube e
não quis emancipá-las num modelo ocidental, onde todos pudessem
prosseguir as suas vidas. O PCP e o seu internacionalismo soviético estava
infiltrado em muitos domínios e em parte das Forças Armadas. Para o PC
foi depois abanar e colher.
(Nunca votei nele,
nem no PS. Sou tendencialmente de direita e sou liberal)
Carlos Chaves: “Fazendo render
a responsabilidade.” Cara Maria João Avillez, com
certeza que lhe agradecemos o seu trabalho que deixa escrito sobre esta figura
histórica da nossa política! Mas permita-me as seguintes perguntas: Onde deixou a sua responsabilidade jornalística ao omitir o papel nefasto
desta figura, para Portugal e para os Portugueses? Onde está descrito o papel de criminoso político que esta figura teve na
descolonização? Onde está descrito o
socialismo maldito que este senhor defendeu e deixou seguidores que
nos têm empobrecido paulatinamente, até hoje? Onde está descrito o papel desta figura de oposição como PR (imagine-se),
aos governos (de maioria absoluta) de Aníbal Cavaco Silva? Onde está o papel quase radical de extrema-esquerda que esta figura
assumiu, já mais no final da sua vida, destratando e ofendendo o ex-PM Pedro
Passos Coelho, as suas políticas e todo o seu governo democraticamente eleito,
e que nos tirou de uma pré-bancarrota trazida por um governo PS, cujo o ex-PM
socialista, José Sócrates ele defendeu com unhas e dentes? Temos a “história” cheia de mitos, como por exemplo, o Marquês de Pombal,
será que não está a ajudar a criar outro? Antecipadamente,
agradeço a sua resposta. Carlos Chaves > Cisca Impllit: Também agradeço a posição que
Mário Sores teve no 25 de Novembro de 1975, mas não pelas razões que a autora
evoca. Esta figura teve a posição que teve para salvar a sua própria pele,
seria o primeiro a ser engaiolado caso o PCP do seu anterior aliado Álvaro
Cunhal, tivesse tomado conta do poder. E todos sabemos como é que acabam os
engaiolados que estão contra o comunismo!
Alberico
Lopes: Maria João Gosto muito de si Mas por amor de Deus já é demais essa obsessão
pelo Soares que todos sabemos como um bom vivant que nasceu rico filho de
padre e sempre viveu à custa do Estado mesmo quando simularam o exílio em São
Tomé, às custas do Estado E repare como o dito filho João dos diamantes e
marfim e a filha ficaram ricos com as tais misérias do tal socialista amigo dos
pobrezinhos e do Sócrates esse grande vulto da democracia. Maria João poupe-nos. Lourenço
de Almeida > Cisca Impllit: O PCP existe graças ao Mário
Soares que sempre disse que era "essencial para a democracia
portuguesa". Se não fosse o Soares teria sido rebentado no final de 1975
como "proxy" soviético que era aquilo que era o PCP. Apenas deu uma
ajuda a conter o PCP numa altura em que os comunistas representavam um risco
para ele mesmo. O país existe apesar do Mário Soares que tinha uma visão do
pais e de si mesmo vindas direitinhas da Primeira República que quase acabou
com Portugal. Lourenço
de Almeida > Cisca Impllit: Todas as colónias africanas
que foram entregues aos seus "freedom fighters" foram parar ao lado
soviético e todas, sem excepção, foram descolonizadas antes de tempo e sem que
os povos o quisessem ou fossem consultados devidamente. O que se podia fazer
era "entregar" os territorios a exploradores de outra cor. Portugal
atrasou isso e se tivéssemos atrasado mais 15 anos teriamos pelo menos
conseguido aquilo que só os sul africanos conseguiram até agora, porque tiveram
apartheid - um sistema de desenvolvimento racista, em vez daquele que usamos em
Angola - até depois do fim da URSS. O Soares tem parte relevante na desgraça
que se abateu em Angola, Moçambique, Guiné e Timor e na pobreza em que ficaram
Cabo Verde e São Tomé. E é directamente responsável por o PCP ainda existir,
apesar de ter o mérito de, por motivos que até poderiam simplesmente coincidir
com o seu interesse pessoal, estado do nosso lado na fase inicial de oposição
ao PCP. Mas o que fez foi salvar o PCP do país e não salvar o país do PCP, como
tantas vezes ouvi dizer.
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