Tal como os demais OBSERVADORES. Et pour cause.
Crónica em jeito de despedida…
Oxalá o bom senso prevaleça e que o
país não fique basbaque e anestesiado, à espera que a “divina providência” – ou
um homem providencial – conduza o rebanho aos redis, sem sobressaltos de maior…
DINIS DE ABREU Jornalista e colunista
do Observador
OBSERVADOR, 07
out. 2024, 00:1673
Num
regime semipresidencialista como é o nosso, cada inquilino de Belém escolhe o
seu caminho próprio de afirmação pessoal e política, conforme a leitura e a
interpretação que faz dos seus poderes constitucionais e dos limites ao seu
exercício.
Ramalho Eanes foi um
estabilizador institucional, formal e corajoso, e, apesar de militar influente
no 25 de Abril, cumpriu a promessa de civilizar o poder, e de “meter a tropa em
quarteis”, até convencer-se – ou convencerem-no – de que poderia condicionar o
xadrez partidário. Lançou, então, o PRD, partido que cresceu depressa e se
evaporou não menos depressa, um desastre a que podia ter-se poupado. Mesmo
assim, ficou uma referência.
Mário Soares, depois de derrotar Freitas do Amaral numa
reviravolta eleitoral histórica nas presidenciais de 1986, inventou, a certa
altura, as “presidências abertas”, eufemismo que serviu para combater
politicamente o então primeiro ministro Cavaco Silva, cujo êxito na liderança
do governo o incomodava.
Conseguiu desgastá-lo sem, contudo, o “levar
ao tapete”. Regeu a Presidência com o talento de simplificar coisas difíceis,
arte que não é para todos, num estilo amiúde bonacheirão, com um toque, por
vezes, de aristocrática displicência.
Jorge Sampaio quis neutralizar uma maioria política à
direita, que a saída de Durão Barroso para Bruxelas facilitou, seguida da “promoção”
a primeiro ministro de um impreparado Pedro Santana Lopes.
Santana foi desastrado à frente do governo, e Sampaio ganhou
espaço, sem grande esforço, para abrir caminho à desgraça de José Sócrates, ainda hoje a sonhar com Belém, se
as prescrições judiciais o ajudarem.
Em
contrapartida, Sampaio não conseguiu remover de Macau o último governador, o
general Vasco Rocha Vieira, para lá colocar um amigo jurista que nunca
disfarçou tal ambição. E perdeu essa guerra, sem nunca disfarçar o azedume, até
no discurso que marcou a transição do território para a China, ignorando o
último governador, num gesto que este não merecia.
Já Cavaco Silva, que sucedeu
ao ambíguo Jorge Sampaio, pareceu quase sempre um “peixe fora de água”, e
habitou Belém longe do fulgor do desempenho, que tivera em S. Bento enquanto
primeiro ministro. E acabou por viabilizar a “geringonça”, idealizada por
António Costa, a solução impudica encontrada pelo líder do PS para dissimular a
derrota eleitoral que o partido sofrera, face a Pedro Passos Coelho. E deu
corpo, mesmo que a “contre-coeur”, a uma década perdida com os socialistas no
poder.
Finalmente,
Marcelo Rebelo de Sousa, trouxe
para a Presidência a informalidade que faltou a Cavaco Silva, de feitio
rígido e distanciado, mas ficou refém da popularidade de que aprendeu a gostar,
como pioneiro do comentário político televisivo, e à qual se afeiçoou rendido,
no meio de uma vertigem de “selfies” e de uma incontinência verbal semeada de
não poucas gafes.
Presidente-comentador
ou Presidente-Rei, epítetos de que não desgosta, Marcelo tem-se desdobrado, ao
longo de dois mandatos, cultivando a palavra fácil, em intervenções quase
diárias, em qualquer sítio onde apareça um microfone ou uma câmara de
televisão.
A “cereja
em cima do bolo” foi, contudo, a pressão recentemente assumida sobre os
principais partidos para se entenderem e viabilizarem o Orçamento de Estado.
Ao
cancelar viagens que tinha previstas à Estónia e à Polónia, Marcelo verbalizou
o que há muito devia ser a sua prática: “a melhor maneira que tenho de servir o
interesse nacional, neste momento, é não dizer nada sobre isso (OE 25)”.
Após
admitir ter tentado influenciar o governo e a oposição socialista no sentido de
chegarem a um acordo no Orçamento, evitando novas eleições, o Presidente
decidiu adiar as duas visitas de Estado por ser “mais avisado“ ficar para
acompanhar de perto os dias que faltam até à entrega formal do documento na
Assembleia da República. Uma originalidade.
Ou
seja, mesmo em silêncio, Marcelo dramatiza o que espera do PSD e do PS nas
negociações em curso.
E
se alguém lhe dissesse que os partidos, no governo ou na oposição, têm a
obrigação de serem adultos e os respectivos líderes de saberem interpretar, em
cada momento, o interesse nacional, dispensando paternalismos?
Oxalá
o bom senso prevaleça e que o país não fique basbaque e anestesiado, à espera
que a “divina providência” – ou um homem providencial – conduza o rebanho
aos redis, sem sobressaltos de maior…
Professor catedrático de Direito e
constitucionalista, Marcelo não ignora decerto as “linhas vermelhas” que
marginam a sua actuação, mas prevalece-se desse mesmo currículo para pisar
terrenos movediços, no limite da constitucionalidade, interferindo no jogo partidário de uma forma inédita e perturbadora.
É cedo para ensaiar o balanço global da
sua actuação em Belém, mas com o tempo decorrido e a meio do segundo mandato, há
indicadores suficientes para avaliá-lo – como antigamente o comentador
costumava fazer, ao pontuar os governantes com notas sibilinas.
Dir-se-á, sem receio de exagerar, que é
o Presidente mais “viciado” na sua própria aura de popularidade, encarnando,
por gosto, um estilo de “pop star”,
incapaz de refrear a sua natureza ou tão-pouco de sacudir o populismo em que
incorreu e incorre, descuidando tanto a forma como o conteúdo.
Se
o Orçamento passar, ele avocará sempre o principal mérito por esse consenso; se
for “chumbado”, também fará constar que fez tudo o que podia para poupar o
país a novas eleições antecipadas.
À
primeira vista, sairá vencedor em qualquer das hipóteses. Infelizmente, o
País e os portugueses não poderão dizer o mesmo.
Basta
recordar os milhões de euros injectados e irrecuperáveis na TAP ou na Efacec;
os serviços públicos nucleares em pré-colapso; a crise demográfica, com o
envelhecimento acentuado das populações; o agravamento da agenda woke, com
o seu cortejo de questões de género e de famílias disfuncionais; o
crescimento desordenado da imigração, com centenas de milhares de processos por
regularizar; o aumento da criminalidade violenta; a economia anémica que não
descola, e a forte dependência do turismo – uma indústria
volátil; ou o farto desencanto de jovens e menos jovens pela
escassez de oportunidades .
Se
tudo isto não fosse já bastante, como herança de uma década de governação
socialista, subsiste ainda um sistema judiciário perro, com milhares de
processos em lista de espera, prescrições a eito, e fugas espectaculares de
reclusos perigosos que continuam a monte.
Tudo somado, não se inveja quem tenta ainda governar.
Por
muito que custe reconhecê-lo, António Guterres não vai deixar
saudades nas Nações Unidas, após dois mandatos como secretário-geral da
organização.
Poderia ficar na História por ter
ocupado um lugar proeminente num período confuso e desafiante do tabuleiro
internacional, se fosse capaz de ter uma visão imparcial e descomplexada dos
actores em confronto em vários pontos do mundo, designadamente, na Ucrânia ou
no Médio Oriente.
Mas
ficará na História pelas piores razões, por ser hesitante, e sem uma visão
estratégica diante de quadros complexos, sejam os conflitos e os terrorismos
que ameaçam a Europa e outras zonas sensíveis do globo, sejam as eleições
fictícias da Venezuela e o êxodo contínuo de população para os países
limítrofes e para os Estados Unidos.
Na memória recente não houve outro secretário-geral
considerado “persona non grata”, ademais por um país envolvido num cenário
de sobrevivência enquanto Estado.
Israel
sofreu na pele o massacre de 7 de outubro, desencadeado por comandos dos Hamas,
com muito menos manifestações de “indignados” a Ocidente ou de cobertura
mediática, do que as retaliações que empreendeu na faixa de Gaza ou no Sul do
Líbano.
Guterres
desperdiçou a oportunidade de ficar na História e, titubeante, contraditório,
foi incapaz de usar a palavra com autoridade, arrastando a ONU para a
irrelevância.
Humilhado
em Moscovo quando Putin o recebeu numa mesa excêntrica, Guterres saiu do
Kremlin de mãos vazias, perante a invasão russa consumada na Ucrânia; ou agora,
proibido de entrar em Israel, devido à fraqueza demonstrada na condenação do
Hamas, do Hezbollah ou do Irão, aliados contra o Estado judaico.
Não
se pedia a Guterres que fosse o “herói do dia”, mas, ao menos, que não se
refugiasse na ambiguidade retórica, nem no aconchego doutrinal das
alterações climáticas – que deram e dão muito jeito à jovem activista sueca,
Greta Thunberg, a ecologista de serviço, distinguida pela Fundação
Gulbenkian, em 2020, com o chorudo e imerecido Prémio da Humanidade, num
momento desinspirado.
Descontada
a bandeira do clima — que permitiu a Guterres figurar numa capa ridícula da
revista “Time”, na qual apareceu fotografado, de fato e gravata, metido na
água até aos joelhos –, o ainda secretário geral da ONU tem contribuído, com as
suas omissões e ziguezagues, para o afundamento de qualquer vestígio
de importância que ainda restasse à organização, que deveria ter um lugar
aparte a nível global.
Guterres
fugiu de um pântano em Portugal e criou outro em Nova Iorque.
Nota em rodapé – Não há volta a dar-lhe: os “soldados
da paz” perderam a face ao desencadearem um protesto “incendiário” –
com pneus a arder e muito fumo de petardos -, invadindo a escadaria do
parlamento. Um acto impróprio e obsceno.
Percebeu-se logo, ao avistarem-se muitos
de punho erguido, como se fossem manifestantes do PCP, que não estavam ali
apenas bombeiros, mas agitadores
infiltrados, para gerarem ruído destinado aos directos das televisões.
Ouviram-se,
até, responsáveis sindicais lamentarem o sucedido e distanciarem-se do desfecho
do protesto, confessando que tinham perdido o controlo da situação, e obrigando
a PSP a montar um dispositivo para evitar a invasão do parlamento.
Foi
tudo lamentável, ao envolver bombeiros sapadores e voluntários, e comprometendo
uma imagem de reconhecimento e de prestígio que a comunidade solidariamente
lhes dedica. O “subsídio de risco” fez mal a muita gente…
Nota em rodapé 2 – Com esta crónica, fecha-se um ciclo de
colaborações no Observador, um dos mais conseguidos projectos
jornalísticos, posteriores ao 25 de abril, que completou em maio uma década de
existência.
Ser um projecto vencedor não se deve,
contudo, ao facto de pertencer ao domínio exclusivamente digital – porque antes
deste jornal já surgira outro, de natureza semelhante e de duração efémera –,
mas por assumir uma orientação editorial de centro direita, sem medo de
preconceitos e avessa a cultivar falsos pluralismos. O que não foi de somenos.
Com a erosão do tempo, o êxito editorial
trouxe-lhe invejas e seduções à esquerda, além de entorses à matriz original,
com a opinião a resistir melhor do que a informação.
Uma década de vida de um jornal, num
País que lê pouco e numa época de incertezas, é muito e é pouco, quando se vêem
alguns títulos, até centenários, arrastarem-se penosamente, ou a sobreviverem,
apenas, à base de custosos balões de oxigénio, quando não estão encostados a
generosos mecenas.
Devo esta experiência, no poente da vida (com muitos anos de
jornalismo, teimosamente independente, a remar contra diferentes marés), a Rui Ramos,
um dos fundadores do Observador e um dos historiadores portugueses
mais lúcidos que conheço, na leitura que faz do passado e do presente.
Devo-lhe,
por isso, esta palavra grata de despedida das colunas do Observador, onde
muitos leitores fizeram o favor de distinguir-me, por escrito, com apreço e com
palavras de elogio, seguramente excessivas, embora eloquentes sobre a visão que
têm deste jornal. Todos, porém, gratificantes e recompensadores, incluindo,
naturalmente, os que discordaram do cronista, ajudando-o com as suas críticas
construtivas.
Esta
“homilia” semanal – como alguns amigos, bem-humorados, a quiseram baptizar
– recolhe ao silêncio da “sacristia”. Com a consciência de que a procissão
ainda nem sequer saiu do adro e de que não faltam nem acólitos e nem noviços a
quererem segurar o pálio ou a pegar no andor.
Gostei
sinceramente de estar convosco e de partilhar o que penso, sem obediências a
credos, a clubes, a igrejas, ou a partidos. E até um dia…
POLÍTICA MARCELO REBELO DE SOUSA PRESIDENTE DA REPÚBLICA
COMENTÁRIOS (de 71)
Fernando ce: Caro Dinis de Abreu, Esta sua crónica, própria de um mestre
do jornalismo, consegue de forma simples e lapidar a definição dos legados dos
presidentes da república da democracia, com uma aparente simplicidade própria
de quem atingiu a excelência do seu métier.Com
os meus 68 anos, fui acompanhando o seu brilhante percurso como jornalista de
primeira água de uma geração de grandes jornalistas de que infelizmente já restam
muito poucos. Como português quero sinceramente agradecer-lhe o serviço que
prestou ao país, à democracia e à liberdade. É com grande tristeza que vejo
esta sua despedida. E mais uma vez, obrigado. Maria Isabel Machado: Difícil de acreditar que um dos
melhores cronistas do Observador " abandone " o comentário
semanal! Vou sentir a sua falta à 2a feira. Nuno Abreu: Obrigado,
Dinis de Abreu, pela participação neste jornal dando-lhe credibilidade
que alguns teimam em lhe não reconhecer. Obrigado
pelo excelente balanço que faz de muitos políticos portugueses, de maneira
realista sem colocar a sua própria ideologia como contraponto de análise. De
uma maneira geral coincide com o que eu intuía sem fazer tal balanço. Muito obrigado ao Rui Ramos que teve o bom senso
de o convidar enriquecendo os nossos conhecimentos de maneira que para mim, foi
muito criteriosa. Por último um pedido: não
se recolha na sacristia. Sinceramente é um lugar pelo qual não tenho muita
simpatia. Dos onze aos quinze anos, todos
os dias das minhas férias escolares, tinha de chegar à sacristia da Igreja da
minha freguesia, cerca das seis da manhã, depois de ter percorrido três
quilómetros a pé pelo meio de um monte solitário, para ajudar o padre a
paramentar-se e levar as galhetas para o altar, perante o seu olhar sempre
crítico. Para mim a sacristia é o lugar em
que homens se enroupam para representarem papéis que lhe são encomendados. Continue
despedido de preconceitos e a ser quem é. António
Melo: Prezado Senhor Dinis de Abreu, Muito obrigado pelos excelentes artigos que nos
escreveu. No artigo de hoje, a sua análise sobre o Observador é certeira e
preocupante. Espero que quem possa reverter a tendência, leia este seu artigo e
tome medidas. Sabendo impossível que encontrem para o seu lugar outro com a sua
craveira, espero, no mínimo, que não apareça por aqui alguém que queira também
na opinião guinar à esquerda como já fizeram na informação. O meu bem haja e votos de
felicidades. JOHN
MARTINS: Caríssimo, Dinis de Abreu, Ao ler a
sua última crónica, fui tomado por um misto de admiração e saudade. Cada
crónica sua foi um presente e uma janela que nos enriqueceu em cada semana que
começava, como esta de despedida e sem dar notas passa a pente fino
muitos dos que nos governaram nas últimas décadas. Neste momento de despedida
quero expressar a minha gratidão por todas as histórias compartilhadas. Ao seu
admirável legado como cronista, fico-lhe muito agradecido. John Martins. Mendes Bota: Lamento sinceramente que interrompa aqui a sua série de artigos libertos de
arrais, e cheios de memória e de bom senso. Foi, durante este tempo, uma das
minhas leituras preferidas. Desconheço as razões que poderão estar por detrás
deste cancelamento. Resta-me um grande obrigado e votos de muita saúde. E,
oxalá, que haja um regresso. Carlos Chaves:
Caro Dinis de Abreu, foi com tristeza que
li esta sua última, mas como sempre magnífica, crónica no Observador. Não lhe
escondo que é triste, muito triste, ver um dos melhores cronistas/jornalistas neste jornal, bater com a porta! Terá com
certeza as suas razões, mas somos nós os leitores que ficamos a perder, ficamos
sem um jornalismo digno, escorreito e sempre do lado certo! Muito obrigado e
espero encontrá-lo num outro lugar. P.S.
O Observador claramente está a escolher o caminho errado!
Maria
Nunes: Dinis
de Abreu, muito obrigada por todos os excelentes artigos com que brindou
os leitores do Observador. Para mim era um dos cronistas brilhantes, que
justificavam a assinatura deste jornal. Vamos perdendo o jornalismo de
referência.
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