quarta-feira, 6 de abril de 2022

“A vida é feita de nadas”


Foi Miguel Torga que o disse, não me parece, todavia, que ele tenha minimizado assim tanto o que se passava em seu redor. Seria bom se assim fosse a vida, como ele a descreve, mas é um pensamento passageiro, puramente poético, e pelo texto de Raquel Abecasis, António Costa, também pensando com simplicidade, a respeito da vida e da criação do seu mundo, em todo o caso, virou mais prosador que poeta, acho, e vai em frente no cumprimento imperturbável dos seus desígnios do costume, pois nem todos, é claro, se agarram às mesmas poeiras de que trata Torga, em A Criação do Mundo, ou preferimos mesmo tratar com frieza as que vemos, ouvimos e lemos de que trata Sophia e a que se refere Raquel. De resto, Costa tem que cumprir o que lhe pedem que cumpra, no exercício das suas funções, até já expulsou os elementos da embaixada russa, corajosamente, em represália, bem se arriscando, que o Putin não é dos que se fica, mesmo com um país que ele já em tempos ajudou a reduzir, em proveito próprio, e que já não tem mais para lhe dar… Leiamos Torga, enquanto pudermos:

BUCÓLICA
A vida é feita de nadas
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;
De casas de moradia
Caídas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;
De poeira;
De sombra de uma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu Pai erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.
Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar

Acho extraordinário que o governo português faça discursos, apresente um programa de governo e se prepare para apresentar um orçamento como se o mundo não tivesse mudado com esta guerra.

RAQUEL ABECASIS, Jornalista e ex-candidata independente pelo CDS nas eleições autárquicas e legislativas

OBSERVADOR, 05 abr 2022, 00:1714

Lembro-me de ser jornalista há muito pouco tempo na Rádio Renascença e de ter dado a notícia da queda do avião que transportava o presidente do Ruanda. O suposto acidente, que afinal foi um atentado, resultou poucos dias mais tarde no início de uma guerra civil que causou um dos maiores e mais vergonhosos genocídios do século passado. Anos depois, vi no cinema o filme Hotel Ruanda com o relato do que então se passou. Quando as luzes da sala de cinema se acenderam não pude deixar de pensar na superficialidade com que eu, jornalista contemporânea àquela história de horror, fui dando notícias sobre o que lá se passava. Até hoje me pesa a consciência, não porque tivesse conseguido mudar o curso dos acontecimentos, mas pela banalidade com que encarei a situação só porque estava longe. Sempre pensei que ao menos eu, que era jornalista, devia ter encarado aquela guerra e os relatos que de lá chegavam de forma diferente.

Nos últimos dias, sobretudo depois das imagens que nos chegaram de Bucha, Irpin e de outras localidades nos arredores de Kiev, voltei a ter o mesmo sentimento. Já não sou jornalista, mas sou uma cidadã europeia. Da mesma Europa onde se praticaram crimes de guerra hediondos e cobardes. A diferença é que agora, ao contrário do que aconteceu no passado, os acontecimentos entram-nos em casa em tempo real. Escreveu Sofia de Mello Breyner: Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar.

Os tempos modernos são férteis em comoções generalizadas da opinião pública que age em conformidade, procurando mostrar-se solidária de várias formas com as vítimas de situações de catástrofe. São gestos valiosos e que fazem a diferença a muitas vidas. Mas as imagens dos últimos dias pedem mais do que esta solidariedade. Pedem que as mesmas opiniões públicas europeias exijam aos seus governos uma nova atitude.

Imagino que não seja fácil à Alemanha e a outros países europeus prescindirem do fornecimento de gás e petróleo russos. Provavelmente essa decisão colocará a Europa numa nova crise profunda, com necessidade de recurso a racionamentos próprios de uma guerra. Mas é numa guerra que estamos. Não é só a Ucrânia que está a ser violentamente atacada com a invasão russa. É todo o mundo ocidental, em particular a União Europeia. Nenhum negócio se justifica com um país que tortura e massacra cidadãos indefesos, como está a acontecer na Ucrânia. Não são relatos difusos. Vimos todos com os nossos olhos.

Ainda hoje achamos incompreensível o comportamento de alguns povos europeus durante a Segunda Guerra Mundial. Colaboracionista é um adjetivo que ainda perdura na nossa memória colectiva, apesar das décadas decorridas. Na altura, alguns podiam desculpar-se com a ideia de que não sabiam o que estava a acontecer. Agora sabemos todos. Não tirarmos consequências em função do que vimos é transformar toda a União Europeia, governantes e governados, em colaboracionistas.

Ninguém sabe o que pode acontecer se o Ocidente endurecer posições. Há riscos grandes? Há. Mas fazer de conta que esta guerra não nos diz respeito não é seguramente a melhor estratégia para lidar com o tirano russo. A verdade é que, depois das imagens dos últimos dias, estamos todos em guerra. Como bem notou Volodymyr Zelensky quando esta segunda-feira visitou Bucha: “Convido a senhora Merkel e o senhor Sarkozy a visitar Bucha e a ver aquilo a que uma política de cedências conduziu ao longo dos últimos 14 anos. Para verem com os seus próprios olhos os homens e mulheres ucranianos torturados.

Por mais que queiramos resistir à ideia, o mundo mudou. Não podemos ficar indiferentes ao que se está a passar porque a indiferença vai matar-nos e desta vez ninguém pode dizer que não sabia.

PS: Acho extraordinário que o Governo português recém-empossado faça discursos, apresente um programa de governo e se prepare para apresentar um orçamento como se o mundo não tivesse mudado com esta guerra no coração da Europa. Não sou economista, mas não é preciso sê-lo para perceber que a escalada da inflação, o aumento dos juros e a nossa pesada dívida externa são uma mistura explosiva que não vai e não está a deixar-nos na mesma. Os tempos que aí vêm não se compadecem com discursos optimistas e ingénuos. O país devia estar a prevenir o embate dos efeitos da guerra na nossa economia, começando por não criar a ilusão de que estamos protegidos aqui neste cantinho da Europa.

GUERRA NA UCRÂNIA   UCRÂNIA   EUROPA   MUNDO   NOVO GOVERNO    POLÍTICA

 COMENTÁRIOS:

Rita Salgado: Parabéns!          João Ramos: Bom e muito consciente artigo, já estamos fartos de ver e ouvir assobiar para o lado por parte do governo e não só, por essa Europa fora também há muito governante que assobia para o lado, uma coisa é certa se Putin ganha na Ucrânia o futuro da Europa será ainda mais incerto, se o conseguirmos repelir a Europa sairá muito mais forte e unida pois mostrou ao Mundo e a ela própria que era capaz de defender os seus ideais e não ser uma ambiguidade como até aqui…         Cisca Impllit: Pois, desde que o menino esteja em pm - é sempre a dar-lhe é a rir do português que está sempre  para ele disponível  Domingos Rita: Excelente artigo. Cada vez mais, estou satisfeito por ter aderido a este projecto, sendo assinante do único órgão de comunicação totalmente isento e que nos esclarece com a verdade tudo o que se passa à nossa volta.        Tiago S: A TRIANGULAÇÃO Os Portugueses estão a ser novamente triangulados por este governo. Eis os motivos da nossa preocupação: - Aumento brutal do custo de vida - Inflação galopante com perda de poder de compra dramática para as famílias - Taxa de juros na eminência de escalada comprometedora para um país de habitação própria assente em empréstimos indexados. - Uma guerra que promete não ficar por aqui e que irá arrastar a europa 20 anos para trás. - Seca, impostos a um nível insuportável, custos proibitivos dos factores de produção, greves, boicote da função pública. Exceptuando a Guerra, tudo se está a passar à frente dos nossos olhos desde Novembro, e silenciosamente, o governo nada diz e age como se nada se passasse. Apesar da guerra e apesar de tudo, resposta do governo mantém-se: um plano de recuperação do país assente no sector público e não na sociedade civil, criadora de riqueza e de empregos, na desvergonha insuportável de atender a sua base eleitoral. A estratégia, essa, é a mesma de sempre: a triangulação dos Portugueses. Não enfrentar, desvalorizar, apelidar os críticos de apocalípticos, fazer tudo ao contrário do que manda o bom senso de reforma e gestão do país e tentar passar por entre os pingos da chuva sem factura eleitoral. Sócrates, o seu ministro das finanças, e o governo socialista de então,  também andaram a tapar com muito êxito o sol com a peneira durante vários anos. Os Portugueses esses, pagaram com mais impostos, desigualdades e injustiças que ficaram no nível onde ficaram, e das quais nunca mais recuperámos. A ciência política chama a isto socialismo.            S Belo > Tiago S: E lá  vamos, cantando e rindo, exultantes a caminho do cepo.                 bento guerra: Calma, o Medina só ontem foi apresentado à Lagarde, a Impressora e vai haver Conselho Europeu. Manda quem paga.           João Floriano: Os nossos tempos são  férteis em «comoções generalizadas» mas que passam rapidamente perante a avalanche de informação que nos cai em cima. E no meio dessa avalanche ainda precisamos de distinguir onde estão as fake news. Os governos europeus, que  segundo a articulista devem ser questionados, terão muito cuidado  com as consequências económicas de cortes radicais com a Rússia. Vemos, ouvimos e lemos mas sobre uma guerra que por enquanto está ainda longe das nossas casas e que podemos ignorar.  O exemplo dado sobre a guerra do Ruanda é muito elucidativo. Temos pena mas, para já não nos diz respeito. Sobre o  que se passa internamente, vi ontem uma reportagem em que Fernando Medina, o novo Ministro das Finanças se apresentava aos seus congéneres europeus. A frase mais ouvida foi Nice to meet you! Entretanto Fernando Medina assegura que nos manteremos no trilho das contas certas. Nunca percebi como um país com uma das maiores dívidas externas da Europa, em queda no ranking, pode garantir contas certas com a inflação a subir. O mais certo é daqui a uns tempos trocarmos «Nices» to meet you! com uma nova troika.               advoga diabo O Governo devia encolher-se num canto a roer as unhas? Vergonhoso como RA e afins manipulam a tragédia para cumprir agenda patronal!          joaquim zacarias A Raquel ainda não compreendeu, que economia e socialismo não combinam.           António Lamas: Bonito e sentido texto.  Vemos o horror sentados no conforto das nossas casas como se fosse uma série de televisão.  Esta é a mais mediatizada guerra desde sempre e paradoxalmente a realidade é mais horrorosa que as imagens.  Os portugueses estão a pensar no campeonato do mundo da bola.  O Secretário Geral da ONU está preocupado com o ambiente.  O mundo está louco           Luis Martins: É realmente bizarro constatar que o OE do PS seja exactamente o mesmo de há meses quando a guerra não existia e a inflação era marginal (ou inexistente). Não se percebe e é ilógico. Será que Medina e os seus acessores são tão incapazes que nem sequer conseguem alterar/actualizar o OE em tempo útil? Será que não interessa mesmo alterar porque o OE tem umas boas fatias para alimentar a famiglia e em que ninguém pode tocar? Com este Peiésse e Costa tudo é possível. 

 

 

 

 

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