terça-feira, 5 de abril de 2022

Parafraseando


Com muita unção, como Alexandre Guerreiro merece, em oposição ao ponto de vista de Luís Rosa, que ocasionou cerca de 300 comentários, grande parte dos quais de apoio belicoso ao Guerreiro. Assim sendo, como diria João Gil a respeito de ser poeta, também Guerreiro define, está visto, o seu estatuto de comunista, a respeito da destruição de Bucha, que ele considera - no rasto de alguns russos, entre os quais o irado Putin, vilmente acusado - como montagem ucraniana de enganadora realidade:

Ser comunista

«é ser mais alto
É ser maior do que os homens
Morder como quem beija
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do reino de Aquém e de Além-Dor

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja
É ter cá dentro um astro que flameja
É ter garras e asas de condor

É amar assim, perdidamente
É ter alma, e sangue, e vida em si

E dizê-lo cantando a toda a gente.

 

Julgo que Alexandre Guerreiro se sentirá definitivamente definido, numa de compreensão pela sua sensibilidade a respeito dos matadores que ele tão bem defende – ou ataca, segundo um ponto de vista que me baralha a mim também, tal como a Luís Rosa, mas que faz flamejar Guerreiro com extrema potência – quer de virilidade, quer de animalidade alada, da bem forte nas asas e nas garras, cujo auxílio Putin agradecerá, indubitavelmente – mais lá do que cá, com certeza. Mas nessa não cai Guerreiro, conservador da distância, julgo,  nos casos belicosos não metafóricos.

 

O massacre de Bucha e Alexandre Guerreiro

É absolutamente repugnante ouvir um comentador, exemplo da desinformação e da propaganda russa, colocar a hipótese de militares ucranianos terem executado, violado e mutilado os seus concidadãos.

Luís Rosa , Redator Principal e colunista do Observador

OBSERVADOR, 04 abr 2022, 03:58284

1As imagens e as descrições que nos chegam de Bucha, uma pequena cidade da região de Kiev, remetem-nos para o lado negro da humanidadeExecuções sumáriascorpos de homens, mulheres e crianças mutilados (de forma macabra e animalesca)mulheres violadasvalas comuns com mais de 200 corpos, crianças levadas em tanques como escudos humanos e dezenas de cadáveres espalhados pelas estradas de Bucha.

Vários testemunhos de residentes em Bucha ligam um regimento tchecheno das forças russas à atrocidade de atar as vítimas ucranianas com panos brancos antes de lhes dar um tiro de misericórdia como se fossem gado.

O massacre de Bucha só confirma os muitos e variados indícios de crimes de guerra por parte da Rússia de Putin na Ucrânia — por exemplo, já tinham sido detetadas situações semelhantes em Irpin a 28 de março. O ditador russo está a repetir no coração da Europa a estratégia que já tinha seguido na Síria: bombardeamentos massivos de alvos civis e destruição total das cidades para forçar um êxodo migratório. Se não há rendição, o ditador prefere matar através da fome e da falta de água.

Estas atrocidades podem fazer lembrar o massacre de Srebrenica ou outros semelhantes das diversas guerras da Jugoslávia no início dos anos 90. Contudo, o que a Rússia de Putin está a fazer é a repetir as tácticas do horror comunista soviético — que se limitou a mimetizar os crimes do nazismo.

2No dia em que se começaram a conhecer as primeiras imagens das atrocidades em Irpin, um conjunto de 20 “personalidade” publicaram no Expresso uma carta-aberta intitulada “Pela Paz Contra a Criminalização do Pensamento” na qual tentam atacar uma espécie de alegado pensamento único sobre a Ucrânia que terá criado raízes na opinião pública portuguesa. E, enfatize-se, sem ainda terem conhecimento das atrocidades em Bucha.

O manifesto tem um propósito claramente aceitável: protestar contra o encerramento de canais de TV russos, como o “Russia Today” (RT)Mas começa a descambar quando classifica a informação da RT, de forma manifestamente desproporcionada, como “isenta e plural”. Sendo uma ironia que os signatários argumentem que as verdades oficiais têm de ser combatidas (porque o “poder político” não é dono do pensamento), ao mesmo tempo que defendem a emissão no Ocidente de canais russos controlados pelo regime de Putin.

Contudo, e deixando de lado essas incongruências, pode-se discutir se a liberdade de expressão está a ser respeitada. É um debate válido, como já escrevi aqui.

O que já não faz sentido — nem mesmo a título de exagero retórico — é falar em “criminalização da pluralidade do pensamento”, num alegado “ambiente tóxico” de “crescente intolerância” que assombra e “censura” quem pensa de forma diferente. No lugar dessas vítimas da democracia “ocidental”, “temos opiniões irrelevantes e banais, sem referências éticas e uma maneira de ser flexível e fútil”. “Pode-se mudar mil vezes de princípios”, proclamam as “personalidades”.

Esta é mais uma ironia de um manifesto que é assinado por um mix de conhecidos militantes do PCP e do Bloco de Esquerda e de figuras da extrema-esquerda com vários independentes que fazem uma espécie de papel de idiotas úteis dos antigos comités pela paz tantas vez promovidos pelos comunistas europeus para executarem objetivos políticos.

3O manifesto tenta servir de escudo a outras “personalidades” que têm tido grande generosidade das televisões para se fazerem ouvir com muitos pensamentos pró-russos. Aliás, até é assinado por uma desses comentadores: o major-general Raul Cunha.

Alexandre Guerreiro, contudo, é o alvo principal da medida de defesa da carta-aberta. Curiosamente, Guerreiro foi chamado à SIC Notícias na manhã deste domingo. Sem pôr em causa a veracidade das imagens que chegam dos subúrbios de Kiev, e apesar de defender uma investigação criminal internacional, Alexandre Guerreiro afirmou que não há “nenhum facto nem nenhum elemento que nos diga quem foi o autor deste tipo de massacre”.

Ou seja, tanto pode ser “Rússia” ou a “Ucrânia”. “Qualquer uma das partes pode ter feito uma atrocidade destas”, afirmou.

Como é possível pensar uma coisa destas quando se trata de uma cidade ocupada pelos russos há mais de um mês? Como é possível Alexandre Guerreiro afirmar que os militares ucranianos são capazes de executarem sumariamente, de violarem e mutilarem os seus próprios concidadãos? E como é possível não valorizar o facto de as imagens e os testemunhos terem sido recolhidos por vários órgãos de comunicação social internacionais após a reocupação da cidade por parte da Ucrânia?

É extraordinário ouvir Alexandre Guerreiro, um ex-espião do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa com uma narrativa predominantemente anti-ocidental, desvalorizar tudo o que represente um escrutínio factual da Rússia de Putin. Como também desvaloriza os relatórios de ONG’s como a Human Rights Watch e a Amnistia Internacional — entidades que, segundo Guerreiro, “têm interesses políticos.” Quais? Não se sabe.

O papel de Guerreiro é distorcer, desinformar e criar confusão entre a opinião pública. Será essa a liberdade de expressão pela qual os fundadores do regime democrático tanto lutaram?

4Como escrevi há 15 dias aqui, e como sempre defendi ao longo de toda a minha carreira, sou a favor do pluralismo e da liberdade das direções editoriais para promoverem debates de ideias. E admito que a liberdade de expressão até possa comportar, em certa medida, o absurdo e a mentira.

Agora esse pluralismo não é algo que possa ser construído administrativamente, nem pode ser imposto por uma espécie de igualdade de armas e de tempo de antena para todas as opiniões que existam na sociedade. O pluralismo nasce da liberdade editorial dos meios de comunicação social. Não nasce de uma obrigatoriedade dos meios de comunicação em ouvir tudo e todos com o mesmo peso e relevância.

O caso da invasão da guerra da Ucrânia é um ponto de viragem para a União Europeia precisamente porque a reacção espontânea das diferentes opiniões públicas à invasão e aos argumentos da Rússia obrigou os governos nacionais a darem uma resposta conjunta. Se é claro que uma esmagadora maioria dos europeus defendem duras sanções à Rússia, tal não obriga a que os media tenham de dar o mesmo tempo e espaço a outras ideias.

O pluralismo também nasce das diferentes visões dos próprios órgãos de comunicação social. Por exemplo, os jornais devem refletir as diferentes correntes de pensamento da sociedade, tentando respeitar a proporcionalidade de cada uma delas. E é da visão de grupo dessas diferentes correntes que o público forma a sua opinião.

Resumindo e concluindo: Alexandre Guerreiro tem direito à sua liberdade de expressão mas caberá à SIC Notícias avaliar o momento em que a sua presença em antena ameaça a credibilidade da própria estação.

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