sábado, 16 de abril de 2022

Não iremos mais a Portalegre?


Em toadas simples de vidas simples de sofrimentos e alegrias normais… Com os José Régios dos sofrimentos e alegrias normais, em Toadas brilhantes dos seus “Portalegres” das dores e das pequenas alegrias normais ou mesmo outras. O pesadelo que estamos vivendo – por enquanto a distância dos que verdadeiramente o sofrem, quase não dá para os debruçamentos sobre os nossos egos ou alheios, e menos ainda sobre os prazeres que as belas leituras nos causam, para mais na opressão causada pelo retrato severo dos Tunhas críticos dos falsos ledores da cartilha humanística, e são tantos! Mas antes que chegue o final, releiamos, sim, esses prazeres simples, pela escrita brilhante do nosso José Régio, a dar-nos ainda esperança no crescimento de novas acácias:

«………………….

E era então que sucedia

Que em Portalegre, cidade

Do Alto Alentejo, cercada

De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros

Aos pés lá da casa velha

Cheia dos maus e bons cheiros

Das casa que têm história,

Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória

De antigas gentes e traças,

Cheia de sol nas vidraças

E de escuro nos recantos,

Cheia de medo e sossego,

De silêncios e de espantos,

- A minha acácia crescia.


Vento suão! obrigado...

Pela doce companhia

Que em teu hálito empestado

Sem eu sonhar, me chegara!


E a cada raminho novo

Que a tenra acácia deitava,

Será loucura!..., mas era

Uma alegria

Na longa e negra apatia

Daquela miséria extrema

Em que vivia,

E vivera,

Como se fizera um poema,

Ou se um filho me nascera. (Toada de PortalegreJosé Régio)

Os novos amigos de Job

Conhecem as causas que os outros ignoram. Não se deixam, ao contrário do vulgo, enganar. São mais inteligentes, mais perspicazes, mais advertidos. Não caem na esparrela em que o comum cai.

PAULO TUNHAS

OBSERVADOR, 14 abr 2022, 00:1940

Há assuntos propriamente infinitos, onde, mesmo quando pensamos que já nada nos pode surpreender, nos arriscamos a descobrir novas coisas: o sofrimento e a loucura, por exemplo. Deixemos de lado o sofrimento – o Livro de Job não precisa de ser reescrito, embora esteja sempre a ser actualizado – e pensemos um pouco na loucura. Mais exactamente, num tipo de loucura particular, aquela que quase se confunde com a estupidez elevada ao grau de arte sistemática.

Certas reacções à invasão da Ucrânia pela Rússia oferecem-nos um vasto fresco deste singular tipo de loucura. Tudo aí se encontra: o amor desmesurado pela força bruta; o desprezo incontido pela debilidade das democracias; a transformação metódica e disciplinada das causas em efeitos e dos efeitos em causas; a sofisticação de pacotilha a que uma certa aparência de “realismo” permite ascender; a ridicularização altaneira do heroísmo, e de Zelensky em particular; e por aí adiante. Em tudo isto, vemos uma certa esquerda e uma certa direita, os filhos de Cunhal e os filhos de Salazar (mais os inconscientes do que os conscientes), de mãos dadas, exibindo a comunidade de valores que em muitas coisas os caracteriza.

Como em relação a um quadro, convém procurar descobrir o tema que une as suas diversas partes, ou, se se preferir, o ponto de vista que engloba o maior número de percepções. É importante para se perceber o que há de comum a tantos indivíduos que manifestam particularidades tão extremas como as figuras que povoam certas telas de Bosch. O que é que une o homem-peixe, o homem de bico de ave, o casal que navega no peixe voador, para lá da loucura que palpavelmente os habita?

Cada um terá, no capítulo, a sua ideia própria. Ofereço a minha, tentativamente. O que há de comum ao tipo de reacções enumeradas no segundo parágrafo é o todas elas suporem, em maior ou menor grau, a convicção de que o facto bruto em si mesmo, a invasão da Ucrânia pela Rússia, só pode ser encarado se tivermos em conta alguns movimentos invisíveis que as descrições públicas dos factos e as imagens que as acompanham não só não revelam, como têm por missão essencial ocultar.

A tarefa de trazer à luz esses movimentos invisíveis faz de quem se dedica à tarefa um verdadeiro testemunho, um mártir no sentido literal da palavra. E, como convém aos mártires, são criaturas que se sentem perseguidas pelos que confiam nas aparências visíveis, como, por exemplo, as imagens das cidades destruídas, e daí deduzem uma distinção nítida entre o agressor e o agredido, tomando partido pelo agredido.

Sabemos quais são para eles os movimentos invisíveis que a visibilidade aparentemente oculta. São os movimentos levados a cabo pelos E.U.A. e pela NATO, sendo que os primeiros, mentores da segunda, são a verdadeira e única causa responsável pela invasão da Ucrânia pela Rússia de Putin. Esta doutrina da causa única – e repito algo que já disse num artigo anterior – é uma doutrina comum a todas as teorias conspiratórias. Os actuais mártires, que não se deixam enganar pelas aparências e que conhecem de ciência certa o invisível, sejam eles de esquerda ou de direita, são, no fundo, vulgares adeptos de teorias conspiratórias. Conhecem as causas que os outros ignoram. Não se deixam, ao contrário do vulgo, enganar. O benefício narcísico que dessa posição retiram é indisputável: são mais inteligentes, mais perspicazes, mais advertidos, e, como gostam de sublinhar, mais sabedores que os outros. Não caem na esparrela em que o comum cai.

(Haveria aqui a lamentar que o pouco de marxismo, como coisa distinta do leninismo, que sobrevive no pensamento da esquerda contemporânea – é, de facto, pouquíssimo – tenha, para que essa mesma sobrevivência seja possível, de se apresentar sob as vestes de uma teoria conspiratória. Não há talvez sinal tão óbvio da decomposição de uma doutrina como a necessidade de se caricaturar a si mesma, ao ponto do grotesco, para se manter presente na sociedade.)

Quer isso dizer que os nossos queridos mártires se concebem como indiferentes aos sofrimentos dos ucranianos? Não, de modo algum. Pelo contrário. São eles que melhor compreendem o sofrimento, até porque lhe conhecem as verdadeiras causas e as podem em detalhe explicar. Sabem de cor e salteado todas as manobras da ganância e do terrível apetite do lucro que se praticam no universo invisível do qual possuem um mapa detalhado que não se cansam de exibir. Conhecem em detalhe todos os demónios que habitam o invisível e o poder imenso de que gozam e que lhes permite terem o mundo ao seu dispor. Tudo o que sirva para contrariar tal poder é, por definição, bom. Tanto saber concede-lhes, como disse, a possibilidade da compreensão e explicação do sofrimento e a autoridade para pedirem aos ucranianos que se submetam ao poder russo em nome desse bem incondicional, a paz, que não cessa de lhes sair da boca.

Os adeptos desta curiosa loucura fazem lembrar os antigos amigos de Job. Recordar-se-ão que, certos de que o seu saber era maior do que o de Job, estes lhe explicavam que o seu sofrimento fazia sentido, que as causas deste eram inteligíveis e compreensíveis. Nenhuma coisa acontecia no mundo sem que um motivo a justificasse. A sua verdadeira estupidez ontológica (vale a pena utilizar a palavra) face ao sofrimento alheio manifestava-se na sua tagarelice pedante e obscena. A única grande diferença entre os velhos e os novos amigos de Job é que Deus apareceu aos primeiros e lhes censurou a soberba de lhe pretenderem conhecer os desígnios. Duvido que apareça aos segundos. Duvido mesmo que alguém os puxe pelas orelhas até Mariupol, Bucha, Kharkiv ou qualquer um dos vários locais da Ucrânia que as tropas russas impiedosamente destroem e onde os cadáveres juncam as estradas e apodrecem nas valas comuns. Num certo sentido, é pena: às vezes o contacto directo com o visível cura as loucuras da alucinação do invisível.

GUERRA NA UCRÂNIA   UCRÂNIA   EUROPA   MUNDO

COMENTÁRIOS:

Paul C. Rosado: Excelente. É que é isto mesmo que eles são.          servus inutilis: Magnífico! Até lhes oiço a ranger as meninges para te entender.          The Lobby Club: Tunhas lá aparece semanalmente como o bonzo cá do sítio...          Cisca Impllit: Cada vez melhor - este Pauli Tunhas! Tem a sensibilidade e o intelecto ligados!

Vasco Silveira: "...os filhos de Cunhal e os filhos de Salazar ." Caro Senhor Os primeiros viam na história um caminho para um inevitável destino; os segundos vêem-na, à história, como uma repetição do castigo de Sísifo, o que permitirá alguma aprendizagem, e justificará precauções. Por outro lado, compreender, não é justificar: aliás a ciência é isso mesmo - compreende as leis da gravidade, mas não as justifica. Melhores cumprimentos         José Silvestre: Excelente crónica, que eu, se tivesse essa capacidade, teria gostado de escrever. Não resisti a partilhar.          João Afonso: ...Num certo sentido, é pena: às vezes o contacto directo com o visível cura as loucuras da alucinação do invisível. No que toca à comunada e aos filhos do ditador, tenho a certeza de que não cura coisa nenhuma.         alberto freitas: Para se analisar uma guerra há que separar as causas das consequências. As causas têm dois pontos de vista e a discussão por terceiros exige empatia ora com um lado ora com o outro. As consequências, essas, são terríveis e de indignar todos, exigindo apoio ilimitado às vítimas. No entanto, mesmo os que em cada frase incluem a palavra democracia, demonizam quem não pense como eles, entendendo que liberdade de expressão só se aplica para as pessoas do bem. Mas para Tedros Adhanom da OMS, essas pessoas do bem são racistas. Sim, racistas, porque lastimam as mortes de brancos na Ucrânia e estão silenciosos relativamente às mortes de negros na Etiópia, que em 2021 morreram mais de 200.000 de fome. Como vêem, tal como um feitiço que se volta contra o feiticeiro, um ex-guerrilheiro comunista apoiante do regime chinês e que participou 11 anos num governo genocida etíope, demoniza como racistas as pessoas que se consideram superiormente do bem.         Miguel Ramos: Palmas para o artigo e asco para os pedantes iluminados e para a sua propagandoska insuportável           manuel soares Martins: A filosofia, como sabe, dá para tudo excepto para nos apercebermos da nossa própria loucura - esta é sempre dos outros, dos que não pensam como nós.         Miguel Ramos > manuel soares Martins: Se mantiveres os olhos fechados um morto até dança o vira                  manuel soares Martins > Miguel Ramos Mas há muito quem consiga resultado semelhante mesmo de olhos abertos.          Paulo Castelo: "Iluminado" PT em que as aparências são evidências. " ... os movimentos levados a cabo pela [Rússia] (...) são a verdadeira e única causa responsável pela invasão da Ucrânia (....). Esta doutrina da causa única (...) é uma doutrina comum a todas as teorias conspiratórias"            António Pais: Excelente crónica!           Paula Barata Dias: Texto absolutamente certeiro de um dos melhores comentadores do Observador. Só lê-lo vale a assinatura!          Jorge Reis O fervor tresloucado bélico do autor!          Maria Augusta: Jorge Reis: ahahahahahahahah ahahahahahahahah ahahahahahahahah ahahahahahahahah fervor tresloucado"...ahahahahahah ahahahahahah ahahahahahah...logo tu!....um xuxo-comuna!          advoga diabo: Que seria do mundo se os seus principais decisores embarcassem nos facilitismos do encarneirar! Acontece saberem que não podem nem devem. Isso é coisa para escribas de andar por casa sacarem o deles!           Carlos Quartel: Anda muito de pedantismo, do querer ficar bem com a tribo, do politicamente correcto que despreza o lucro, o dinheiro, o individualismo, as liberdades, mas que vive comodamente nas sociedades capitalistas. O que se pode acrescentar ao que se sabia, é que perderam a humanidade, a solidariedade e vêem com indiferença o sofrer e o calvário de todo um povo, supostamente nazi, e que se desculpa a agressão, a bomba, a violação e se encara a deslocação de populações para regiões inóspitas (um novo gulag) como a medida adequada, para corrigir os atrevidos que se se supõem com cabeça para pensar. Andava por ali muito ódio, velho e recalcado e cada míssil russo num hospital ou numa maternidade dá uma satisfação e um gozo imensos. Pobres Job's .........Maria Augusta > Carlos Quartel: 100% razão! A falta de humanidade de toda esta cambada xuxo-comuna que por aqui se arrasta é de facto de relevar. Não admira no entanto num país maioritariamente de xuxo-comunas que se lambuza no conforto proporcionado pelo capitalismo. Gentinha hipócrita, desprezível e bastante limitada.          João Floriano: Excelente crónica com a qual concordo da primeira à última palavra. Só iria um pouco mais além na caracterização dessas mentes superiores e conhecedoras, infalíveis a apontar os verdadeiros culpados e a deslindar as teorias da conspiração: são almas muito sensíveis e um tanto preguiçosas. Perante o horror de cidades em escombros, cadáveres nas ruas, violações de inocentes, gente esfomeada em fuga, é muito mais fácil e menos doloroso acreditar que é tudo uma encenação mediática. A empatia custa, dói, dá trabalho e ninguém gosta de sofrer.            José Paulo C Castro > João Floriano: Também há uma explicação mais racional nessa falta de empatia: pode ser apenas o desejo de manter o gás barato e não vir a sofrer consequências. Aí, já roçamos o egoísmo puro.        João Floriano > José Paulo C Castro: Uma hipótese a considerar. Só que os portugueses segundo consta são dos menos dependentes do gás russo. O punho vingativo de Putin cairá sempre sobre nós, independentemente dos amigalhaços que tem por todo o lado. Fazemos parte da UE, vamos encerrar os nossos portos aos navios russos, já somos considerados hostis. Eu acho que é mesmo preguiça emocional. José Paulo C Castro: A 'loucura' da explicação invisível é uma forma de paranóia. A forma como tentam justificar as escolhas democráticas dos povos - nos países que aderiram e querem aderir à NATO - como sendo fruto de manipulação mediática e interesses invisíveis, é reveladora do desespero em tentar encaixar a realidade numa explicação invisível de ameaças inexistentes. Daí passam para a desvalorização da democracia e defesa da autocracia como forma superior, ficando de acordo com Putin. Um salto em frente nessa lógica. A paranóia recusa distinguir o visível como realidade quando esta colide com a explicação invisível. É uma forma de manter a coerência da irrealidade. O resto prossegue daí. Como já disse antes, é altura de começar por lhes perguntar se acham que a Ucrânia invadiu a Rússia e decidiu dizimar as suas próprias cidades. Depois, consoante a resposta, e até a rapidez da resposta, talvez se possa avaliar o grau de 'amigo de Job'.        Maria Augusta: Aguenta, camarada Paulo Tunhas.               Dr. Feelgood: No boys for the Jobs.......É isso ? Olha, meti água.         bento guerra > Dr. Feelgood: Se calhar não meteu ,o Tunhas é filósofo ,está aberto.          Américo Silva: Não tenho comentado os artigos de José Milhazes da mais boçal propaganda, hoje gostaria de abordar Orwell, e os comentários estão fechados, como Paulo Tunhas se tem vindo a colocar ao mesmo nível, uso este espaço. Orwell foi um comunista que teve uma visão como S. Paulo, quando esteve prestes a ser morto pelos camaradas, e o que escreveu em"1984" aplica-se na perfeição ao capitalismo, seja na campanha covid, seja na propaganda destes dois cronistas.           bento guerra > Américo Silva: O boçal Milhazes comentou jocosamente as entrevistas feitas a Putin pelo Oliver Stone e que a RTP3 emitiu, com oportunidade. Também estava o "doutor sabe tudo" Rogeiro. Quantos chefes de estado se sujeitariam a tal exercício?           LP > bento guerra: Sim o Oliver Stone esse grande director, mas muito neutral em tudo o que diz, escreve ou filma sobre Putin. Como dizer que Putin não é responsável por assassinatos políticos que é tudo feito sem o seu aval. Só um cego ideologicamente afirma uma coisa destas. Ou que não vê nada de anormal, ou que o considera um "democrata". Sem dúvida, tudo afirmações muito verdadeiras e não fanáticas de um adepto até ao osso, de putin. Tudo o que seja contra o EUA o Stone está em todas. É conhecer a fundo o seu historial. Mas como é mais fácil escrever bacoradas na internet, ou frases soltas, sem conhecer um todo da nisto... bacoradas.         José Paulo C Castro > bento guerra: Qualquer autocrata com desejo de publicidade se sujeitaria a tal exercício depois de escolher o entrevistador.

 

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