Justificativo do “santo de altar” - tão
de requinte e de minúcia é Putin, no sofisma das suas causas:
«Arranca
o estatuário uma pedra destas montanhas, tosca, bruta, dura, informe; e depois
que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão e começa a formar um
homem: primeiro, membro a membro e, depois, feição por feição, até à mais
miúda. Ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe
o nariz, abre-lhe a boca, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços,
espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos. Aqui desprega,
ali arruga, acolá recama. E fica um homem perfeito, e talvez um santo que se
pode pôr no altar.»
Defender separatistas pró-Rússia, reagir
a avanços da NATO, "desnazificar". Afinal, porque é que Putin invadiu
a Ucrânia?
Para perceber o que se passa na
Ucrânia, importa olhar para os dois lados. Na Rússia, Vladimir Putin usa vários
argumentos para justificar a guerra — do suposto nazismo à defesa legal contra
a NATO.
OBSERVADOR, 25 abr
2022
Índice
Argumento 1.
Proteger a região pró-Moscovo de Donbass
Argumento 2.
A defesa legal contra o avanço da NATO
Argumento 4.
A Ucrânia é governada por nazis e a Rússia tem de a “desnazificar”
Argumento 5.
Rússia e Ucrânia são um só povo, unido pela história, e é preciso corrigir a
separação
Argumento 6.
O Ocidente também invadiu países.
A
invasão da Ucrânia por parte da Rússia tem sido (quase)
unanimemente caracterizada no Ocidente como injusta e ilegal, feita com base
em argumentos falsos ou falaciosos. Todavia, na Rússia o cenário é
diferente. Moscovo tem uma lista de argumentos a favor da guerra — ou
melhor, da operação
militar especial — na Ucrânia,
classificando-a como uma ofensiva necessária para proteger o povo russófono
oprimido por Kiev, para se defender contra os avanços do Ocidente, para manter
pura a cultura russa na região e para desnazificar a Ucrânia.
Ao
longo dos últimos meses, Vladimir Putin tem puxado de vários argumentos para
justificar as suas intenções militares na Ucrânia, dependendo do público a quem
se dirige e do momento do conflito. Falando para o Ocidente, acusa a NATO
de escalada belicista e argumenta que a Rússia tem de garantir a sua própria
segurança. Internamente, faz paralelismos entre o regime ucraniano e a Alemanha
nazi e galvaniza o apoio popular comparando o prometido êxito militar na
Ucrânia à vitória soviética sobre os nazis em 1945. Pelo meio, apela à identidade cultural e religiosa do
povo russo, fortemente influenciado pela Igreja Ortodoxa Russa, para retratar o
povo ucraniano como naturalmente pertencendo à esfera de influência de Moscovo.
E, falando aos ucranianos, Putin assume-se como libertador de um povo oprimido
por um regime neonazi.
Para
perceber o conflito, importa naturalmente olhar para os dois lados. O que vai,
então, na cabeça de Vladimir Putin? O
Observador faz uma viagem pelos argumentos usados pela Rússia para justificar a
invasão da Ucrânia.
Argumento 1. Proteger a região pró-Moscovo de Donbass
No
dia 21 de fevereiro, três dias antes de a Rússia invadir a Ucrânia,
Vladimir Putin fez aquilo que muitos temiam que viesse a ser o gatilho para o
início da guerra: reconheceu formalmente as regiões
separatistas de Donetsk e Lugansk, no leste da Ucrânia, como países
independentes, assinando como eles acordos de cooperação e amizade. Depois, discursou ao país, num acto de revisionismo
histórico em que reescreveu vários capítulos da história da região e apresentando
como inevitável a já mais que esperada ofensiva militar contra a Ucrânia.
Muito do actual conflito entre Rússia e
Ucrânia explica-se pela história das
regiões separatistas de Donetsk e Lugansk, bem como a da Crimeia.
No
primeiro caso, Donetsk e Lugansk estão no centro das tensões entre Rússia e
Ucrânia desde há um século, tendo
sido um dos grandes palcos da Guerra Civil que se seguiu à Revolução de 1917.
Depois da guerra, as duas regiões ficaram integradas na
República Socialista Soviética da Ucrânia e, sob a política nacionalista de
Lenine, foi promovida a cultura e língua ucranianas na região. Sob Estaline, na década de 1930,
a região mudou de figura. Estaline pretendia promover a língua e a
cultura russas em toda a União Soviética, impondo a predominância da Rússia
sobre toda a região. A chamada “russificação”, que
passou pela promoção da língua e da cultura russas, mas também pelos horrores
das deportações forçadas e da grande fome, afectou duramente a região de Donbass.
Actualmente,
apesar de a região de
Donbass (genericamente
composta pelos dois distritos de Donetsk e Lugansk) pertencer à Ucrânia, a
língua mais falada é o russo e até a moeda mais comum é o rublo. Na região
verifica-se um grande
sentimento pró-Rússia, manifestado frequentemente por intenções separatistas,
por uma grande oposição à ocidentalização da Ucrânia e por desejos de pertença
à Federação Russa.
No caso da Crimeia, a
história da península é ainda mais conturbada. A região era até 1954 parte da República Socialista
Federativa Soviética da Rússia, mas foi nesse ano transferida para a jurisdição
da República Socialista Soviética da Ucrânia. A decisão foi tomada por motivos pragmáticos (a
construção de uma barragem no rio Dnipro ficaria facilitada se toda a região
afectada estivesse sob a mesma jurisdição), mas também por motivos políticos: a
passagem de um ponto estratégico como a cidade de Sebastopol (o porto-base da frota do Mar Negro,
símbolo do poderio naval soviético) para
a Ucrânia deixaria Rússia e Ucrânia unidas por um laço inquebrável.
Novamente,
também no caso da Crimeia a língua e a cultura russas se mantiveram
predominantes, apesar da transferência para a jurisdição ucraniana.
O
colapso da União Soviética em 1991
e a subsequente independência da Ucrânia deixaram estas três regiões —
maioritariamente russas do ponto de vista linguístico, cultural e até religioso
— dentro do país recém-formado, alimentando tensões separatistas que se têm
arrastado ao longo das últimas três décadas.
Estas tensões foram-se adensando à
medida que a Ucrânia se foi aproximando cada vez mais do Ocidente,
especialmente devido às intenções de Kiev de se juntar à União Europeia.
O inverno de 2013 marcou um ponto de
ruptura neste assunto. A poucos dias da data para a qual estava agendada a
assinatura de um acordo de associação entre a Ucrânia e a UE (um primeiro passo
rumo ao aprofundamento das relações entre Kiev e Bruxelas, com vista a uma
eventual adesão à UE), a assinatura foi cancelada depois de o então Presidente
ucraniano, o político pró-russo Viktor Yanukovich, ter
cedido à pressão de Moscovo. O cancelamento
da assinatura do acordo motivou enormes protestos no país, que
ficaram conhecidos como a Revolução
de Maidan (devido ao nome
da praça onde decorreram, a Praça da Independência), que se prolongaram
entre 2013 e 2014 e levaram à deposição
de Yanukovich.
Em
resposta, a Rússia decidiu anexar unilateralmente a península da Crimeia e
organizou um referendo (não reconhecido internacionalmente) segundo o qual,
supostamente, 97% da população da Crimeia apoiaria a entrada
da região na Federação Russa e o rompimento com Kiev. A ONU também não reconhece a validade do referendo e a
grande maioria da comunidade internacional continua a considerar que a Crimeia, embora
controlada efetivamente pela Rússia, é parte da Ucrânia.
A anexação
da Crimeia incentivou grupos separatistas pró-Rússia a
intensificar a insurgência nas regiões de Donetsk e Lugansk, dando
origem a uma guerra sangrenta na região de Donbass entre os separatistas e as forças ucranianas, que se
prolonga há oito anos. Durante esse
período, foram feitas duas tentativas de alcançar a paz na região, o primeiro e o segundo acordos de Minsk, que nunca foram verdadeiramente implementados na
sua total extensão e foram frequentemente violados.
Até
ao início de 2022, antes da invasão da Ucrânia por parte da Rússia, os oito
anos de guerra na região de Donbass já tinham matado cerca de 14 mil pessoas,
incluindo civis.
Aos
olhos de Vladimir
Putin, as regiões de Donetsk, Lugansk e Crimeia são livres de escolher juntar-se à Rússia e as suas
populações estarão a ser as grandes vítimas de uma política nacionalista
ucraniana. Esta tensão aprofundou-se nos últimos anos, depois de Kiev
ter aprovado leis no sentido de privilegiar a língua ucraniana sobre a língua
russa (falada como língua materna por uma parte substancial da população
ucraniana), num país em que ambas as línguas convivem habitualmente até na
televisão. Em 2019, o Presidente Petro Poroshenko assinou uma lei que atribuía à
língua ucraniana um estatuto especial e a tornava obrigatória para
os funcionários públicos, militares, médicos e professores. Em 2021, uma nova lei que obrigava todos os
jornais ucranianos a serem impressos na língua ucraniana, foi retratada pela Human Rights
Watch como potencialmente discriminatória face aos ucranianos
russófonos.
Estas
leis foram aprovadas no âmbito de um esforço mais alargado por parte de Kiev
no sentido de reavivar a cultura e a língua ucranianas, sobretudo no contexto
do conflito com a Rússia — um esforço que tem dado argumentos a Moscovo para se queixar de um
“genocídio”, tanto físico como cultural, cometido pela Ucrânia
contra a população russófona do leste do país.
O reconhecimento formal da
independência de Donetsk e Lugansk por parte de Moscovo foi o passo
final neste caminho de escalada de tensão entre Rússia e Ucrânia. Ao assinar
acordos de cooperação militar com as duas regiões, Moscovo deu-se a si própria
argumentos para iniciar aquilo a que insiste em chamar “operação militar
especial” no território ucraniano: defender países “amigos” ou regiões de um
atacante externo, a Ucrânia — mesmo que essas regiões sejam parte integrante de
um Estado autónomo, soberano e independente.
Argumento 2. A defesa legal contra o avanço da NATO
Mas
a guerra lançada por Vladimir Putin contra a Ucrânia não é apenas contra a
Ucrânia: é contra
todo o Ocidente, representado pela NATO e encabeçado pelos Estados Unidos. E,
aos olhos de Putin, há argumentos legais para o fazer.
Um
deles reside no artigo 51 da Carta das Nações
Unidas: “Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente à
autodefesa, individual ou colectiva, se ocorrer um ataque armado contra um
membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as
medidas necessárias para manter a paz e a segurança internacionais.”
Outro
deles prende-se com um conceito antigo, o
da “indivisibilidade da segurança”. Trata-se de uma designação com décadas de história, firmada em vários
acordos internacionais assinados pela Rússia, e que se pode resumir como a
ideia de que a segurança
de um Estado é indissociável da segurança de todos os estados da região. Trata-se de um conceito com alguma abrangência na sua
interpretação, o que tem motivado discórdias internacionais. Mas, aos olhos de
Putin, há uma derivação simples do conceito: para reforçar a sua segurança,
um país não pode colocar a segurança de outro país em causa.
E,
para Putin, é precisamente isso que o Ocidente tem vindo a fazer ao longo das
últimas três décadas.
Desde
1949, a NATO (a
Organização do Tratado do Atlântico Norte, aliança defensiva criada pelos
aliados depois da Segunda Guerra Mundial) já
foi alargada oito vezes, aumentando de 12 para 30 o número de Estados-membros. Os alargamentos mais preocupantes para a Rússia foram,
naturalmente, aqueles que ocorreram desde a década de 1990 e que expandiram a
aliança para o espaço de influência da ex-União Soviética. Países como a Polónia, a Hungria, a Estónia, a Letónia
e a Lituânia contam-se entre os muitos Estados da Europa de leste que já se
juntaram à NATO nos últimos 30 anos, levando a aliança ocidental literalmente
para as fronteiras da Rússia.
Para
a Rússia, o alargamento da NATO até
às suas fronteiras é uma ameaça existencial — e Moscovo tem insistido na ideia de que os
sucessivos alargamentos violam os votos formulados na década de 1990
pela NATO de não se expandir para oriente. Aliás, essa
tem sido uma das grandes exigências de Moscovo em todo este conflito: que a
NATO assine um compromisso escrito em como não procurará expandir-se para leste.
A
vontade demonstrada pela Ucrânia de aderir à NATO é, para Moscovo, a derradeira
ameaça existencial, deixando a aliança militar ocidental liderada pelos EUA
literalmente à porta da Rússia — o que violaria o tal princípio da
indivisibilidade da segurança, uma vez que a Ucrânia reforçaria a sua segurança
à custa da segurança russa. Vladimir
Putin não se coibiu de o dizer com todas as letras
naquele discurso de 21 de fevereiro que antecedeu a invasão da Ucrânia.
“Os
documentos de planeamento estratégico americanos confirmam a possibilidade de
um chamado ataque preventivo aos sistemas de mísseis inimigos. Também sabemos
quem é o principal adversário dos EUA e da NATO: é a Rússia. Os documentos da
NATO declaram oficialmente o nosso país como sendo a principal ameaça à
segurança euroatlântica”, disse Putin aos russos e ao mundo naquela noite de
fevereiro. “A Ucrânia vai servir como posto avançado para esse ataque. Se os
nossos antepassados ouvissem isto, simplesmente não acreditavam. Também não
queremos acreditar nisto hoje, mas é o que é.”
“Muitas
bases aéreas ucranianas estão localizadas não muito longe das nossas
fronteiras. Colocada lá, a aviação táctica da NATO, incluindo com armas de
precisão, será capaz de atacar o nosso território até à linha de Volgograd-Kazan-Samara-Astrakhan. A implementação de radares de reconhecimento no
território ucraniano vai permitir à NATO controlar de modo apertado o espaço
aéreo russo até aos Urais”, continuou Vladimir Putin.
O
Presidente russo acrescentou ainda, endurecendo a linguagem: “O Pentágono
tem vindo a desenvolver abertamente várias armas de ataque terrestres, incluindo
mísseis balísticos com capacidade para atingir alvos a uma distância de até
5.500 quilómetros. Se forem lançados a partir da Ucrânia, esses sistemas serão
capazes de atingir alvos em toda a parte europeia da Rússia. O tempo de voo dos
mísseis de cruzeiro Tomahawk até Moscovo será de menos de 35 minutos; mísseis
balísticos a partir de Kharkiv vão demorar sete ou oito minutos; e as armas
hipersónicas vão demorar quatro ou cinco minutos.”
“É como ter
uma faca apontada à garganta”, resumiu Vladimir Putin. “Não tenho
dúvidas de que vão levar a cabo esses planos, como fizeram várias vezes no
passado, ao expandir a NATO para leste.”
Antecipando-se
a estes alegados planos ocidentais de controlar a Rússia, Vladimir
Putin invadiu a Ucrânia preventivamente com o objetivo de deixar uma mensagem
clara à NATO: a aliança não pode continuar a expandir-se para leste
e deve abandonar a possibilidade de aceitar a Ucrânia — e deve também deixar
garantias escritas de que não terá sistemas de armamento nas proximidades das
fronteiras da Rússia.
O problema deste argumento? Putin
esquece que a escalada belicista está longe de ser exclusiva da NATO ou dos
Estados Unidos. E, no que
toca à retórica ameaçadora, dificilmente Washington bate Moscovo. Basta lembrar como, em 2018, Putin apresentou um novo míssil
balístico com capacidade nuclear, baptizado como “Sarmat”, com um
“alcance praticamente ilimitado”. “Ninguém
no mundo tem algo igual”, afirmou Putin, esclarecendo que a nova arma tornava a
Rússia “invencível” e atirando directamente aos Estados Unidos e à NATO: “O sistema
norte-americano antimísseis será inútil e não terá sentido.”
Argumento 3. A revolução de 2014 foi
um golpe de Estado e só a Ucrânia é que violou
os acordos de Minsk
A
Ucrânia tem sido uma das grandes fontes de tensão entre a
Rússia e o Ocidente — o que se nota especialmente no modo como são enquadrados
os acontecimentos de 2013 e 2014.
Enquanto o Ocidente reconhece que o
que ali aconteceu foi um grande protesto popular motivado pela recusa, por
parte do Presidente pró-russo Viktor Yanukovich, em assinar o acordo com a
União Europeia, que culminou com a deposição do Presidente, a Rússia classifica os protestos de 2013-2014 como um
“golpe de Estado” patrocinado pelos Estados Unidos com o
objetivo de implementar em Kiev um governo pró-Ocidente.
O
próprio Vladimir Putin o afirmou, em 2016, durante uma intervenção num fórum
económico em São Petersburgo. “Porquê
apoiar um golpe de Estado na Ucrânia? Provavelmente, a oposição, que está
atualmente no poder, chegaria ao poder através de meios democráticos”, disse Putin, referindo-se ao Ocidente e acrescentando que
aquele golpe de Estado conduziu a uma guerra sangrenta na Crimeia e em Donbass
em que as vítimas foram os russófonos e apoiantes de Moscovo.
O
apoio dado pelos países ocidentais aos manifestantes da Revolução de Maidan foi
enquadrado por Moscovo como uma prova de que o Ocidente não só estava por trás
do alegado golpe de Estado como considerava a Rússia um alvo a abater.
Durante
a guerra em Donbass, que se
seguiu à anexação da Crimeia efectuada como resposta à deposição de Viktor Yanukovich, Moscovo
acusou reiteradamente a Ucrânia de ser a responsável pelas violações dos
acordos de paz de Minsk. Os
acordos, inicialmente alcançados devido à mediação da Alemanha e de França,
foram efectivamente violados por ambos os lados, tendo a guerra continuado até
hoje.
Em declarações ao jornal
britânico The Guardian, a investigadora Valerie Morkevičius,
especialista em ética do conflito, explicou que ambos os lados cumpriram apenas
parcialmente os acordos. Do lado da
Ucrânia, o acordado era a atribuição de um estatuto de autonomia às regiões de
Lugansk e Donetsk. Kiev começou, efectivamente, um processo de
descentralização, mas não foi suficiente para cumprir o acordo de paz. “Os
ucranianos dizem que isso representaria um privilégio de Donbass em relação ao
resto da Ucrânia”, explicou Morkevičius.
Já Moscovo também nunca cumpriu efectivamente
a sua parte do acordo, que implicava a retirada de todas as forças estrangeiras
da região. “A Rússia nunca o fez, mas continuou a negar que as
suas forças lá estavam”, disse ainda
Morkevičius ao The Guardian.
Estes
argumentos levam a Rússia a sustentar que a Ucrânia e o Ocidente estão alinhados numa política
anti-Moscovo, que
resultou num golpe de Estado para expulsar o líder pró-russo da Ucrânia em 2014
e que se tem materializado numa guerra de genocídio contra os
russófonos do leste da Ucrânia
— motivo pelo qual a Rússia tem o
dever de intervir em defesa dessas populações.
Argumento 4. A Ucrânia é governada por nazis e a
Rússia tem de a “desnazificar”
É
talvez o argumento mais bizarro de todos, sobretudo tendo em conta que a Ucrânia
é actualmente liderada por um Presidente judeu, russófono e que perdeu parte da sua família no
Holocausto. Mas tem
sido um dos grandes argumentos da Rússia de Putin para invadir a Ucrânia:
trata-se de um país governado por nazis e neonazis, que tem de ser
“desnazificado” pela intervenção da Rússia.
Trata-se
de um argumento retórico com grande peso na Rússia, um país que ainda hoje
carrega o trauma da guerra contra os nazis na Segunda Guerra Mundial — ou a Grande Guerra Patriótica, como é
chamada na Rússia (e, antes, na União
Soviética) a frente de guerra no leste europeu. De facto, o desprezo pelos nazis é um dos grandes elementos que
cimentam a identidade russa. O
dia 9 de maio é um dos principais feriados nacionais da Rússia:
celebrado como o Dia da Vitória, assinala o dia em que as tropas soviéticas
derrotaram os nazis em 1945. Por isso, o dia 9 de
maio tem inclusivamente sido apontado como a meta de Vladimir Putin para
a guerra na Ucrânia, repetindo em 2022 o grande feito heróico do fim da Grande
Guerra.
Moscovo tem repetido as acusações de
nazismo contra o governo de Kiev, essencialmente, como modo de galvanizar o
apoio popular dentro da Rússia.
As
acusações de nazismo têm sido repetidas por Vladimir Putin e por várias figuras
do círculo próximo do Presidente russo. Recentemente,
como conta o The New York Times,
um deputado russo apelou à criação de uma “versão moderna do tribunal de Nuremberga”
para julgar os líderes ucranianos depois da “desnazificação” da Ucrânia
e até a televisão estatal russa exibiu recentemente imagens de enforcamentos de
nazis depois da Segunda Guerra Mundial. A narrativa de Putin procura enquadrar
a sua liderança da Rússia como uma continuação do que a União Soviética deixou
inacabado.
“Esta propaganda é uma tentativa de deslegitimar a
Ucrânia aos olhos do público russo, que considera a guerra contra a Alemanha
Nazi o seu maior momento, e também aos olhos dos ocidentais que talvez não
saibam muito mais sobre a Ucrânia à exceção do facto de ser ao lado da Rússia”, disse recentemente à Liga
Anti-Difamação (organização de luta contra o antissemitismo) o professor de história do judaísmo David Fishman. “Esta propaganda não é nova.
Há anos que a Rússia tem sublinhado a atividade de um grupo marginal de
ucranianos ultra-nacionalistas para estigmatizar toda a Ucrânia.”
“Sim, há alguns membros destes grupos
ultra-nacionalistas que têm usado a insígnia nazi, têm feito saudações de
Hitler e usado uma retórica antissemita, mas são politicamente insignificantes
e não representam a Ucrânia”, disse
ainda. “Os partidos políticos que os ultra-nacionalistas
apoiam receberam pouco mais de 2% de votos nas eleições de 2019. A Ucrânia é
uma democracia imperfeita, mas sem dúvida é uma democracia, e não é, de todo,
um regime nazi.”
Entre
os exemplos frequentemente apontados pela Rússia como prova de que o regime
ucraniano é nazi encontra-se o polémico
Batalhão Azov, uma milícia paramilitar fundada em 2014 por voluntários, alguns
dos quais com proximidade à extrema-direita, que combatiam as forças russas na
região de Donbass e, mais tarde, formalmente integrada nas forças armadas
ucranianas. O Batalhão
Azov está sediado na cidade de Mariupol, no sul da Ucrânia. Recentemente, Zelensky deu palco a um combatente
do Batalhão Azov durante o seu discurso no parlamento grego, o que causou grande polémica na Grécia.
O recurso a analogias com o nazismo
para justificar a invasão da Ucrânia tem sido duramente criticado pelo mundo
judaico. Recentemente, um grupo de académicos judeus publicou uma carta aberta
classificando a retórica de Putin “factualmente errada, moralmente
repugnante e profundamente ofensiva”.
“Como
qualquer outro país, [a Ucrânia] tem extremistas de direita e grupos xenófobos
e violentos. A Ucrânia também deverá fazer mais e melhor para confrontar os
capítulos mais negros da sua história dolorosa e complicada. Ainda assim, nada
disto justifica a agressão russa e a distorção grosseira da imagem da Ucrânia”,
escreveram os académicos.
A
retórica russa tem, efectivamente, sido disparada em todas as direcções. Recentemente, o investigador Maksymilian Fras, da London School of
Economics, compilou na sua conta de Twitter vários dos alvos que já foram caracterizados como
nazis pelo governo russo: além da Ucrânia e
dos ucranianos no geral, contam-se nesta lista o Japão (por
não considerar o Batalhão Azov um grupo terrorista), o líder do partido alemão CDU (por considerar “bárbaros”
os crimes de guerra russos na Síria),
o projecto jornalístico de investigação da
corrupção OCCRP (por
investigar empresas russas),
a Suécia (por ter anunciado um bloqueio contra navios russos), a Lituânia
(por querer homenagear as vítimas
ucranianas da guerra), o próprio
Zelensky (por lembrar
a cooperação entre União Soviética e os nazis na Segunda Guerra Mundial), a
seleção de futebol ucraniana (por gritar “Glória à Ucrânia), a Estónia (por
remover do espaço público um monumento soviético), a Polónia (por
se opor à ideia de que a invasão de 1939 pela União Soviética foi uma
libertação) e até o Canadá (por financiar o exército ucraniano).
Este
argumento é ainda mais surpreendente quando são bem conhecidas as relações
entre a Rússia de Vladimir Putin e alguns grupos neonazis. Uma das relações mais conhecidas é a proximidade entre o Kremlin e o Grupo Wagner,
uma milícia privada batizada justamente em nome do compositor alemão, o
preferido de Adolf Hitler. O alegado
fundador do Grupo Wagner, o militar e ex-operacional russo Dmitry Utkin, teria
um fascínio pela Alemanha nazi e usaria tatuagens nazis, incluindo a cruz
suástica e a águia nazi. São conhecidos também os relatos segundo os quais os
militantes do Grupo Wagner deixavam símbolos nazis nos locais onde combatiam.
Mas o Grupo Wagner é apenas um de vários grupos
paramilitares neonazis apoiados tacitamente pelo Kremlin — que, além
de apoiar grupos neonazis, também é conhecido por dar refúgio a militantes
neonazis fugidos de outros países. É
o caso de Rinaldo Nazzaro, que coordena a organização neonazi norte-americana
“The Base” a partir da Rússia, como noticiou em 2020 a BBC.
Já durante a invasão da Ucrânia, um atleta russo de 15 anos, Artem Severiukhin,
que ganhou uma prova de karting competindo sob a bandeira de Itália, festejou a vitória com uma saudação nazi —
o que lhe valeu uma investigação disciplinar por parte da Federação
Internacional de Automobilismo.
“Putin não combate o neonazismo. Ele nutre-o, o que
torna as suas manipulações sobre a Ucrânia ainda mais repugnantes”, resumiam recentemente num artigo para a NBC os autores
norte-americanos Ali Soufan, antigo agente do FBI, e Nathan Sales, diplomata e
antigo governante. “A Ucrânia não está livre dos seus extremistas domésticos,
mas as alegações de
Putin são desinformação pura. Na
verdade, o homem forte da Rússia tem apoiado neonazis e supremacistas brancos
há muitos anos, incluindo mercenários e separatistas que travam guerra na
Ucrânia desde 2014.”
Argumento 5. Rússia e Ucrânia são um
só povo, unido pela história, e é preciso corrigir a separação
Frequentemente,
quando se pronuncia sobre a necessidade de intervir militarmente na Ucrânia,
Vladimir Putin traz à baila um nome histórico muito conhecido da região: o Príncipe
Vladimir, o pai do cristianismo na Rússia e fundador daquilo a que hoje Moscovo
classifica como um “povo único”, e por isso indivisível, da Rússia,
Bielorrússia e Ucrânia.
Vladimir
I, ou Vladimir o Grande, foi o líder do povo Rus que em 988 aceitou o baptismo
cristão como moeda de troca pelo casamento com a irmã do imperador Bizantino.
Depois, baptizou todo o povo Rus em Kiev — o “Baptismo de Kiev” ainda é
considerado o momento fundador da civilização russa e ucraniana — e deu origem a uma história de mil anos de um
povo que evoluiria para se tornar naquilo que hoje é a Rússia ocidental, a
Ucrânia e a Bielorrússia.
Como o Observador explicava num artigo histórico publicado em março, o
argumento religioso segundo o qual ucranianos e russos são um único povo tem
sido reiteradamente usado por Vladimir Putin como justificação para a entrada
na Ucrânia — e o patriarca de Moscovo, líder da Igreja Ortodoxa Russa e um dos
mais poderosos aliados de Vladimir Putin, tem contribuído decisivamente para
consolidar esta retórica, usando a sua influência dentro e fora da Rússia para
dar credibilidade a esta narrativa.
É
neste ponto que Vladimir Putin e a religião convergem. Segundo a narrativa
oficial russa, o Ocidente vive actualmente num clima de corrupção e colapso
moral, com a negação dos valores tradicionais cristãos e da moral familiar — e
com a abertura à homossexualidade.
Moscovo, que se auto-retrata como a
“terceira Roma”, depois de Roma e Constantinopla, assume então um papel de defensora
da moral cristã, pelo menos no seu território de influência.
Perante
a “ocidentalização” da Ucrânia — o patriarca de Moscovo chegou mesmo a dizer
que a existência de paradas gay na Ucrânia era um símbolo de como o Ocidente
estava também a levar aquele país ao colapso moral —, Moscovo tem de intervir
para defender aquele país, tradicionalmente e espiritualmente ligado à Rússia,
do declínio moral imposto pelo Ocidente.
A
anexação da Crimeia em 2014 é o exemplo mais paradigmático de como a Rússia tem
usado este argumento de uma suposta reunificação cultural e identitária para
justificar as suas verdadeiras intenções: obter acesso a um ponto de enorme
importância geoestratégica, como é a península da Crimeia, com um acesso
privilegiado ao Mar Negro. Mas a
Rússia está praticamente sozinha quando considera aqueles territórios
ucranianos como naturalmente seus: logo em 2014, a ONU declarou o referendo da
independência da Crimeia como inválido e condenou a Rússia por
violar a integridade territorial da Ucrânia. Em várias ocasiões, as Nações
Unidas já exigiram à Rússia que retirasse
as suas tropas da Crimeia. E
praticamente nenhum país do mundo reconhece a Crimeia como parte da Rússia — à
exceção de alguns aliados clássicos, como Cuba, a Síria ou a Nicarágua.
Argumento 6. O Ocidente também invadiu países
Moscovo
não se tem furtado a apontar a hipocrisia do Ocidente quando condena a
invasão da Ucrânia, apontando sobretudo para os bombardeamentos da Jugoslávia
por parte da NATO no final da década de 1990 ou para a invasão do Iraque pelos EUA em 2003 com base numa justificação (a existência de armas de
destruição maciça) que se viria a revelar falsa.
A questão da Jugoslávia e da
independência do Kosovo tem sido particularmente apontada por Putin como um exemplo
da hipocrisia do Ocidente. “No discurso
de 21 de fevereiro, em que anunciou o reconhecimento por parte da Rússia das
Repúblicas Populares de Lugansk e Donetsk, Putin referiu o bombardeamento por
parte da NATO da Jugoslávia e o apoio ao Kosovo como ponto de contacto e
justificação”, escreveu recentemente na Foreign Policy a investigadora Jade
McGlynn, especialista em estudos russos.
“Do
ponto de vista dele, aparentemente, a NATO fabricou um genocídio falso no
Kosovo para legitimar a sua intervenção; agora, está apenas a fazer o mesmo.
Isto não serviu apenas para dar um precedente, mas também para enviar uma
mensagem: se o Ocidente pode redesenhar as fronteiras do Kosovo, então nós
podemos redesenhar as fronteiras das Repúblicas Populares de Donetsk e
Lugansk”, acrescentou McGlynn.
“As analogias do Kremlin comparando o leste da Ucrânia e o Kosovo
ilustram que o objectivo do governo russo ao atacar a Ucrânia é reinstalar a
arquitetura de segurança da Guerra Fria, para que o Ocidente deixe de ter o
poder exclusivo de redesenhar fronteiras e mudar regimes.”
A invasão do Iraque por parte dos EUA em 2003 também tem sido usada para expor
a hipocrisia do Ocidente em relação à invasão da Ucrânia.
Naquele ano, também se registou a invasão de um país por parte de outro, com
base num argumento falso — e os EUA, que não fazem parte do tratado que rege o
funcionamento do Tribunal Penal Internacional, nunca foram julgados por
quaisquer crimes de guerra ali cometidos.
GUERRA NA
UCRÂNIA UCRÂNIA EUROPA MUNDO
COMENTÁRIOS (de 79):
Alberto Rei: Fica a claro a explicação de Moscovo : a segurança de um país não pode pôr
em causa a segurança do seu vizinho; ficam assim a nu as intenções
imperialistas dos EUA, nunca quiseram a paz, quiseram isto, têm as mãos
pintalgadas de vermelho, mas continuam com aquele discurso, com aquela
narrativa para enganar tolos. Paulo
Silva > Alberto Rei: Mas a premissa russa não tem
duplo sentido?… A segurança da Federação Russa já pode pôr em causa a segurança
da sua vizinha Ucrânia?!... E o facto da Federação Russa ser o maior arsenal
nuclear do mundo, não põe em causa todo o mundo?!... Alex 2000Alberto Rei: Sim a culpa da guerra é dos
americanos e a sua tentativa de alargar o império! Também andam a matar mulheres e
crianças na Ucrânia. Os russos são vítimas. Paul
C. Rosado > Alberto Rei:
Nada justifica a invasão de um
país soberano. Nada! O país soberano têm o direito de pertencer às alianças que
quiser. A Ucrânia não atacou ninguém! Gente como você tem de ouvir isto. Veja
bem quem tem as mãos pintalgadas de vermelho! Tenha vergonha! Miguel Ramos: O Putin quer é mansões e iates de milhões, tudo o
resto é conversa…………………………
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