Um texto sério e honesto, de Rui Ramos, sobre a festa muito previamente
preparada para a tal comemoração do cinquentenário do 25 de Abril,
decididamente merecedor de amplitude de festejos e espaventos, sendo, como
somos, apegados aos gozos ruidosos da materialidade que tão bem nos define,
ainda que sob o elo da ajuda económica externa, que de modo algum nos preocupa
nem envergonha, como incompetentes para singrar por nós, e nem a desordem de um
país arrasado a leste nos detém nessas manifestações perfeitamente vazias de
sentido, embora amplas de provocação palavrosa. Rui
Ramos aponta bem as fragilidades conceptuais desses partidos
da esquerda brincalhona, embora, quanto a mim, caia igualmente na esparrela de
enegrecer a acção portuguesa em África, ao afirmar que «Quando comemoramos a nossa liberdade, deveríamos lembrar sempre
aqueles que nada tiveram para comemorar, a não ser a variação de algemas e de mordaças.» De facto, não me parece que o povo africano tenha
vivido algemado ou amordaçado, nem sequer tratado com a altivez de
superioridade com que os povos de intelectualidade superior trataram, por
exemplo, os emigrantes portugueses, nos bidonvilles da sua inferioridade
intelectual de serviçais submissos. Mas, sim, eu lamento os criados que por lá deixei,
que estimei e julgo que na sua maioria, o povo africano era estimado e não
destratado, como faz sentir Rui Ramos, com a sua
expressão que, além do mais põe em dúvida a seriedade governativa dos naturais de
hoje, que substituíram a governação portuguesa, usando algemas e mordaças nos
seus governos. Mordaças e algemas… nem sequer têm a ver com as atrocidades que os
civilizados Russos estão a cometer hoje, contra os civilizados Ucranianos…
25 de Abril: comemoração a mais, história a menos
Aos 50 anos, o 25 de Abril merecia
melhor: ser tratado como matéria de conhecimento, e não de apropriação
facciosa.
RUI RAMOS, Colunista do Observador
OBSERVADOR, 22
abr 2022, 00:22
Ontem,
o comissário das comemorações oficiais dos cinquenta anos do 25 de Abril deixou
de ser um comentador socialista das televisões, entretanto promovido a
ministro, e passou a ser uma historiadora, autora de várias publicações
sobre a matéria. Foi um passo no bom sentido. Falta agora dar outro,
igualmente importante: acabar com a tutela governamental das comemorações,
que se mantém. Se é preciso que a comissária responda perante um órgão de
soberania, porque não a presidência da república? É uma
questão de decoro.
Vamos
ser claros: há muitas razões para desconfiar desta comemoração. Eis duas dessas razões: é
governamental, quando, como toda e qualquer comemoração séria, deveria
ser nacional; e é promovida por este governo, cuja equipa já se celebrizou por ser uma das
mais exclusivistas e facciosas da história deste regime. Mas além dessas, há esta razão, que talvez seja a maior
de todas: é mais
uma comemoração, e há muito
tempo que comemorar o 25 de Abril tem significado pouco mais do que distorcer o
25 de Abril, ao ponto de hoje ser a história mais mal contada do
nosso passado. Os cinquenta anos eram uma ocasião para limpar a
estrebaria. Mas é pouco provável que assim seja.
Comemorar
o 25 de Abril foi sempre, para a esquerda comunista, um meio de identificar o
25 de Abril de 1974 com a sua tentativa de tomada do poder em 1975, o chamado
PREC. Por isso, precisaram de apagar muita
gente da foto. Apagaram, por exemplo, o general Spínola, sem cuja ruptura com Marcello Caetano nunca teria havido “movimento dos
capitães”, e apagaram a direita liberal, que forneceu
a maior parte do pessoal político da nova situação pós-ditatorial em 1974. O 25 de
Abril não resultou simplesmente de uma revolução da esquerda, mas da ruptura da
maior parte da direita, já liberal e europeísta, com o governo de Marcello
Caetano, quando se convenceu que, dentro da ditadura, seria impossível o fim
das guerras em África e a transição para uma democracia de tipo europeu
ocidental. Que isto foi
assim, vê-se por uma simples enumeração de quem ocupou os cargos a seguir ao
dia 25. É verdade: Mário Soares e Álvaro Cunhal entraram no governo. Mas
o presidente da república era o general António de Spínola; o
primeiro-ministro era Adelino da Palma Carlos, um republicano
conservador; o seu braço-direito, como ministro-adjunto, era Francisco
Sá Carneiro, fundador do PPD-PSD; no conselho de Estado, estava Diogo Freitas do
Amaral, fundador do CDS e um dos autores do programa do primeiro governo
provisório. Nas
manifestações do dia Primeiro de Maio de 1974, não foi apenas a esquerda que
fez a festa, foi toda a gente, porque muito pouca gente em Portugal, da direita à
esquerda, tinha qualquer nostalgia da censura à imprensa e da polícia política
do Estado Novo.
No entanto, há mais
de quarenta anos que todos os anos a esquerda e particularmente a esquerda
comunista aproveita o feriado para contar mais uma vez a história como se os
únicos militares envolvidos no golpe tivessem sido aqueles que depois se
filiaram na esquerda e na extrema-esquerda, ou como se os únicos movimentos
populares depois da revolução tivessem sido aqueles que eram dirigidos pelos
partidos de esquerda e de extrema-esquerda, ou como se desde o princípio o
objectivo da revolução tivesse sido a imposição de uma autocracia militar
colectivista, à Terceiro Mundo, de modo que a evolução no sentido de uma democracia pluripartidária e de uma
economia social de mercado de tipo europeu ocidental parecesse uma traição ao
“espírito de Abril”. É assim que temos uma história em que há Otelo Saraiva
de Carvalho, mas não há Spínola; em que há sindicatos e manifestações de
esquerda em Lisboa, mas não há a Igreja Católica e as grandes manifestações
populares que no norte do país, durante o “Verão quente” de 1975, obrigaram o
poder comunista a recuar; em que há o fim da guerra em África, mas não há a
imensa tragédia de populações entregues à repressão e à pilhagem de bandos
alinhados com a União Soviética e a China Comunista.
O ascendente que a esquerda, e
especialmente a esquerda comunista, pôde alcançar em Portugal nos meses a
seguir ao 25 de Abril não teve a ver com a sua influência na sociedade
portuguesa, onde depois houve
força suficiente para lhe resistir, mas com a protecção que aos partidos de
esquerda concederam umas forças armadas determinadas em acabar rapidamente com
a guerra em África, o que só se pôde conseguir nos termos da esquerda, isto é,
através de um simples trespasse de poder para as guerrilhas marxistas. Daí, o PREC. E daí, também, a história horrível dos cerca de 15
milhões de habitantes das antigas colónias: foi-lhes
retirada a cidadania portuguesa, sem direito de opção a menos que fossem
descendentes de portugueses europeus, e nunca puderam votar livremente sobre o
seu destino. Quando
comemoramos a nossa liberdade, deveríamos lembrar sempre aqueles que nada
tiveram para comemorar, a não ser a
variação de algemas e de mordaças.
A
maior e mais importante comemoração do 25 de Abril ocorreu no seu primeiro
aniversário, em 1975. Nesse dia, houve eleições para a Assembleia Constituinte.
Portugal já estava no meio de uma conspiração para a tomada do poder pelo
Partido Comunista, patrocinada por parte dos militares revolucionários. Mas os conspiradores não tiveram força para adiar as
eleições, nem para mudar o sistema eleitoral anteriormente definido. As
eleições foram assim livres e limpas – as primeiras eleições da história de
Portugal em que ninguém contestou o resultado. A participação foi a mais elevada de sempre. O
sentido do voto foi claro: ¾ dos votantes escolheram partidos que, apesar de
preferirem modelos sociais e económicos diferentes, defendiam a democracia
pluralista de tipo ocidental. Acima de tudo, as eleições revelaram a
diversidade do país, que a
norte votou à direita e a sul à esquerda,
segundo antigas divisões culturais e sociais. Quem quis perceber, percebeu como a democracia
pluralista de tipo ocidental era e é, num país assim heterogéneo, a única
maneira de coexistirmos sem ditaduras ou guerras civis.
Os
caminhos que levaram à democracia foram muitos e contraditórios: passaram por Otelo, mas também por Spínola; pela
esquerda, mas também pela direita; pelo que acabou bem, como a democratização
de Portugal, mas também pelo que acabou mal, como o horrível abandono das
antigas colónias à ditadura e à guerra. Comemorar
tudo isso, ao mesmo tempo, não é obviamente possível. Comemorar é, fatalmente,
ser parcial, porque ninguém comemora aquilo de que não gosta e aqueles com quem
não concorda. Mas aquilo
de que não gostamos e aqueles com quem não concordamos também fizeram parte
desta história. A esquerda
tem negado isso, e usado as comemorações para, contra os factos, se declarar
autora e portanto dona da democracia em Portugal, numa tentativa patética de
menorizar e de excluir quem pensa de outra maneira. Infelizmente, é improvável que o actual poder
socialista, apostado no controle do Estado e da sociedade, veja na comemoração
outra coisa senão outra oportunidade de controle, desta vez da memória
histórica.
É possível contrariar esta dominação
sectária, claro. Por exemplo, promovendo outras comemorações, focadas nos
acontecimentos e personagens que o actual poder socialista já disse querer
esquecer: é o caso do movimento de 25 de Novembro de 1975 que levou à
neutralização da chamada “esquerda militar” e viabilizou a transição
democrática. Talvez faça
sentido, como uma questão de equilíbrio. Mas faria muito mais sentido se, entre
todos, nos puséssemos de acordo para deixar
o 25 de Abril ao cuidado da história, isto é, tratá-lo como matéria de
conhecimento, e não de apropriação facciosa.
Seria a maneira de compreendermos o que aconteceu. Mais ainda: seria a
maneira de despertar interesse por um acontecimento fundamental e fascinante,
mas há demasiado tempo escurecido pelo tédio e pela monotonia das mesmas
deturpações de sempre. O 25 de Abril, aos cinquenta anos, merecia melhor.
COMENTÁRIOS:
José Pinto de Sá: Perfeito: O 25
de Abril será de todos quando para o comemorar se puder pôr um cravo branco na
lapela. É que, foi contado pelos próprios, no dia 25 de Abril a vendedora de
flores que distribuiu cravos aos militares tinha-os brancos e vermelhos. O
facto de depois nas fotos a cores da revolução só terem aparecido cravos
vermelhos foi uma escolha dos jornalistas, e não um retrato dos factos. A
mentira, portanto, começou logo aí. bento
guerra: Muito esclarecedor o documentário de
António Pedro de Vasconcelos, apresentado ontem à noite na RTP1" A voz e
os ouvidos do MFA". Sendo a nova comissária uma historiadora, poderemos
conhecer melhor o "milagre" da transformação de salazaristas em
"socialistas"
Alberto Borges de Sousa: Excelente análise! Pedromi: Muito bem. De
facto estamos entregues aos ditadores/fascistas do 25 de abril...no mínimo,
curioso! FME: Sem o 25 de Novembro não há 25 de Abril. O 25 de Abril
não representa liberdade. Os povos não são libertinos, têm responsabilidades
cívicas, sociais e financeiras, designadamente o pagamento de impostos. A
liberdade conquistada com o 25 de Abril foi a de exprimir publicamente ideias
políticas sem o receio de ser preso. Com o 25 de Abril não se conquistou a
liberdade de roubar ou de matar sem o receio de ser preso. A liberdade de
pensamento político é talvez a característica principal das democracias. O 25
de Abril foi a conquista da transição de um regime autoritário de pensamento
único para um regime democrático de pensamento diversificado, mas sem o 25 de
Novembro não o teríamos conseguido. Porque é que nunca se explicou na história
do país, designadamente nas escolas, que o 25 de Novembro faz parte do 25 de
Abril, que sem o 25 de Novembro não haveria liberdade de pensamento? A razão
está no masoquismo. Além de pobres e velhos também somos masoquistas e não
conseguimos romper com a veneração à seita de comunistas que vai pairando pela
AR.
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