terça-feira, 28 de junho de 2022

CRÓNICA à maneira


Brilhante -  de Helena Matos. Mas não nos corrige os cinismos. Nem a lorpice.

E não entendo a desresponsabilização da família de Jessica no caso.

As coisas pelos nomes

Casos da semana: a directora que confundiu a DGS com a Rua Sésamo. A decepção do primeiro-ministro não com os partos em Portugal mas sim com o aborto nos EUA. Por fim, quem é a bruxa de Setúbal?

OBSERVADOR, 26 jun 2022

A directora. Portugal é um caso único no mundo. Nos outros países os governantes empenham-se em desmentir que fizeram isto ou aquilo (Boris Johnson todas as semanas cumpre mais um patamar desse calvário). Pois por aqui é precisamente ao contrário: os nossos governantes têm de se esforçar para nos convencer que aquilo que dizem ou fazem é mesmo verdade. A frase “Sim, é mesmo verdade!” faz agora parte das nossas vidas. Mal nos convencemos que afinal é verdade algo que segundo os até então nossos parâmetros jamais toleraríamos, logo outra verdade nos põe à prova. Esta semana, ainda mal refeitos da constatação de que sim, é mesmo verdade que o Presidente da República anda por aí a beijar barrigas de grávidas, tivemos de admitir que sim, é mesmo verdade que temos uma directora-geral da saúde cujas intervenções públicas estão ao nível das rubricas didácticas do Poupas na Rua Sésamo.

Ao contrário do que afirmou o primeiro-ministro os portugueses não são cépticos. Pelo contrário são duma crendice que impressiona: afinal acreditam e querem acreditar de tal forma nos seus dirigentes que perante as imagens e declarações que provam o total desrazoamento e mediocridade desses mesmos dirigentes, reagem os crentes portugueses descrendo automaticamente da realidade. Mas para nossa desgraça é tudo verdade.

A decepção. Costa “decepcionado” com decisão do Supremo dos EUA sobre direito ao aborto. Primeiro-ministro diz que sempre defendeu “que não se podem criminalizar questões da consciência política, religiosa e ética“. Nem mais! Costa está decepcionado com o Supremo dos EUA que segundo afirma “abre caminho à ilegalização do aborto”. Já mostrar-se decepcionado com o seu governo que está a impedir o acesso aos cuidados de saúde durante o parto fica para depois. E note-se que motivos para decepção não lhe faltam. Só neste fim-de-semana o Hospital de Braga fecha a urgência de obstetrícia; o Centro Hospitalar de Torres Vedras não deve ter condições para receber utentes na urgência de Pediatria até às 9h00 de domingo. No Algarve, as grávidas referenciadas para Portimão vão ser desviadas para Faro até segunda-feira enquanto as crianças vão de Faro para Portimão… Mas valha-nos o Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, que reabriu a urgência ontem, sábado, e o Supremo do EUA que trouxe à cena o mundo como deve ser: republicanos maus versus democratas bons. A somar a esta divisão temos agora um Supremo super-vilão. É com decepções destas, longínquas e maniqueístas, que iludimos os nossos falhanços.

Mas vamos ao aborto. Por razões que remontam a um caso com meio século, o direito ao aborto era consagrado pelo Supremo dos EUA “até à viabilidade do fetoou seja até às 23 semanas de gravidez. Ora hoje quatro em cada 10 bebés nascidos com 23 semanas de gestação sobrevive. E foi quando o estado do Mississipi resolveu adaptar os prazos legais da interrupção de gravidez à realidade do século XXI aprovando em 2018 uma lei que proibia o aborto a partir das 15 semanas, que se iniciou o processo que agora acabou no Supremo.

Há em toda esta polémica um tom de contrassenso: quando se pensava que a generalização da contracepção ia tornar o aborto algo excepcional eis que aí o temos como grande tema como se tivéssemos feito uma viagem no tempo. Quando se esperava (ou esperava eu quando defendi a descriminalização do aborto) que a descriminalização levasse a que as interrupções acontecessem mais cedo eis que pelo contrário se alargam os prazos. Em países como a Colômbia passou-se quase directamente da criminalização para a legalização até às 24 semanas: o Tribunal Constitucional da Colômbia ao contrário do Supremo dos EUA entendeu que tinha competências para decidir nesta matéria dispensando os eleitores mas mediaticamente falando o Supremo dos EUA está contra a democracia e o Tribunal Constitucional da Colômbia a favor. Paulatinamente passámos da descriminalização do aborto para a afirmação do direito ao aborto como se se tratasse de mais um direito humano e não de uma opção que devendo ser possível deve ser excepcional.

Entendamo-nos o Supremo dos EUA não proibiu o aborto, pelo contrário entendeu que não devia legislar sobre o aborto e devolveu aos eleitores de cada estado o direito de decidirem sobre esta matéria. Alguns irão proibi-lo completamente (do que discordo). Outros permiti-lo em tempos de gestação que podem ir das seis às quinze semanas. Outros até às 24. Deste lado de cá do Atlântico as discussões são por agora outras. Menos mediáticas, menos democráticas mas igualmente importantes: em vários países procura-se cercear o direito à objecção de consciência no caso do aborto por parte de médicos e enfermeiros. O Parlamento Europeu aborda regularmente o assunto. Mas nós vamo-nos entretendo com o Supremo dos EUA. É mais fácil e dá mais emoção.

A bruxa. A mulher vai a descer as escadas ladeada por vários polícias. De repente parece tropeçar. Depois levanta-se e segue. A multidão grita. Há dias que ela é “a bruxa” ou mais concretamente uma das pessoas suspeita de ter sequestrado e maltratado Jessica. Os jornais enchem-se com detalhes sobre a vida da mãe da criança assassinada. Também sabemos dos homens com que se relacionou. Sabemos muito menos sobre “a bruxa”. Há contudo um elemento patente nas fotografias e em algumas declarações de terceiros que não se escreve nem pronuncia mas se sugere: o facto de a mulher que é apresentada como bruxa ser cigana. Ou mais exactamente parecê-lo. O dicionário duplo actualmente em vigor para falar dos ciganos é de um paternalismo insustentável: se for para dar conta da exclusão na escola ou no acesso a qualquer serviço insiste-se na necessidade de dar visibilidade aos ciganos. Já se os mesmos ciganos praticarem crimes essa sua identificação é omitida sob risco de acusação de racismo. Outras vezes sugere-se essa identificação através de designações como clan (como sucede nas notícias sobre a angariação em Portugal de pessoas fragilizadas para redes de trabalho escravo geralmente em Espanha) ou grupos rivais para referir conflitos entre ciganos e africanos pois quando não há um branco para culpar o racismo desaparece e passa a rivalidade. Igualmente grave é a banalização da violência entre ciganos através de conceitos como a tradição ou os ajustes de contas. A bruxa em Setúbal mostra-nos como os nomes se tornaram uma espécie da verdade possível em cada circunstância e consoante a identidade dos protagonistas.

ANTÓNIO COSTA  POLÍTICA  RACISMO  DISCRIMINAÇÃO  SOCIEDADE  COMUNICAÇÃO SOCIAL  MEDIA

COMENTÁRIOS:

Sérgio: Fabuloso.             Henrique Frazão: É isso mesmo!!               LJ ®: O Observador tem alguns jornalistas, mas a maioria são activistas incapazes de se porem nos sapatos dos outros, de fazerem um real contraditório e de pensar. E mesmo apenas como comentadores, a quantidade que são, estão longe de representar a pluralidade de pensamento da sociedade portuguesa. Continuo a acreditar no projecto do Observador, mas por vezes interrogo-me se vai chegar a bom porto. Só a Helena Matos e o José Manuel Fernandes me fazem ter esperança, ainda que nem sempre esteja de acordo com eles. E ainda bem.          Filipe Costa: Cuidado, chamar cigano a um cigano é perigoso, vai ser chamada de racista, xenófoba e o que der na cabeça dos wokes.             Manuel Martins: Concordo com quase tudo. Temos uma paranóica subserviência aos EUA. Quero lá saber do que decide o tribunal dos americanos, preocupa-me são as decisões e não decisões dos nossos. Também fiquei atónito com a limpeza generalizada da nossa comunicação social aos verdadeiros culpados deste assassínio horrível. Está tudo a tentar desviar atenções, culpando ou a segurança social, os tribunais, o ministério público, até os vizinhos, mas esquecendo que este é um caso excepcional causado por uns animais...             Maria araujo: Crónica brilhante. Costa fala para o seu eleitorado, gente medíocre que lhe batem palmas que não percebem que Costa mente e deturpa tudo, que fomenta a mediocridade, a ignorância, veja-se as nódoas que estão à frente da educação e da saúde....mas o resto do governo não é melhor, e o País a definhar… Absolutamente trágico!!!          Obi-Wan kannabis: Muito bem Dra. Matos, as suas preocupações em relação à situação, são as minhas também.             Simplesmente Maria: Relato do retrocesso civilizacional que nos assola. Obrigada Helena Matos.            Português indignado: Os governantes do PS e a sua máquina de propaganda são especialistas em desviar as atenções para outros assuntos menos comprometedores. Só para aqueles que votaram no PS e lhes deram a maioria absoluta : o Hospital de Braga, nos 10 anos em que funcionou em regime de parceria público privada nunca encerrou a sua urgência de obstetrícia e ginecologia. Nunca. Agora com gestão 100 % pública é quase dia sim, dia não com a urgência encerrada. Estão orgulhosos de vocês??              Carlos Silva > Português indignado: A oposição a usar os "cuidados paliativos" para fazer face à maioria. A sorte do PS é que a "velha" da DGS tem formação imperialista! Henrique Frazão > Português indignado: O problema é que os do PSD são iguaizinhos.           vitor Manuel: Impecável.           antonyo antonyo: O evitar a referência aos ciganos é uma constante com o rabo de fora . Todos percebemos de quem se está a falar mas o cancelamento do termo é para os jornalistas muito importante.           Laurentino Cerdeira: Sempre atenta e assertiva! Se o ridículo matasse, quase não haveria políticos em Portugal, Obrigado.          Liberales Semper Erexitque: Helena Matos hoje está no seu melhor, malhar na esquerda sem piscadelas de olhos a um certo grupúsculo de extrema-direita. Gostei particularmente da abordagem da autora à questão do aborto, moderada, razoável, sem "água benta" da paróquia. Estou de acordo com ela, o aborto legal deve ter um prazo que não permita margem para dúvidas acerca da humanidade da vida suprimida, ou seja, deve ser feito no início da gestação, salvo algumas situações médicas excepcionais e bem caracterizadas.           Liberales Semper Erexitque > Lourenço de Almeida: A moral não é "universal", nunca foi, nunca será. Há alguns princípios que podemos dizer universais, como ser errado matar outrem, outra pessoa. Só que não somos obrigados a reconhecer que um embrião é já dotado de humanidade, ou usando a expressão que mais leio, que aquele é um ser humano. Ter os cromossomas de um ser humano não faz dele um ser humano, com as características que associamos universalmente (?) a ser humano.              Francisco Tavares de Almeida: Duas notas. O caso de Jéssica estava sinalizado desde que a criança tinha um ano. A mãe já tinha duas outras filhas institucionalizadas. No entanto quando o caso foi judicializado - e assim terminado o acompanhamento por outros órgãos de apoio social - a sentença deixou na prática a criança sem qualquer protecção extra-familiar. Baseou-se o tribunal no facto de, por emigração, ter terminado o quadro de violência conjugal. O resto seriam "fragilidades" (sic) que poderiam ser supridas com o acompanhamento da avó materna. Não compreendo e revolta-me que imprensa e PR guardem o "prudente silêncio" sobre a responsabilidade de um sistema judicial que, clarissimamente, consentiu este trágico desfecho.

Roe vs. Wade instituíu o direito constitucional ao aborto como decorrente do direito à privacidade. Isto é claramente legislar. Nada a ver com a função do Supremo Tribunal que é interpretar a Constituição. Ninguém de senso comum acredita que de uma constituição redigida há mais de dois séculos por indivíduos profundamente religiosos - mais que os europeus à época - se possa concluir pelo direito ao aborto. Foi claramente um activismo político da maioria democrática dos juízes. E com três graves erros: 1. Deduzir o direito ao aborto como desenvolvimento do direito à privacidade é, passe a expressão, um aborto em racionalismo legal. 2. Fere o princípio da separação de poderes de Montesquieu, talvez a mais importante base da democracia, pois usurpa um poder que cabe apenas ao legislativo. 3. Fere a própria Constituição, pois usurpa para um órgão federal, um poder de decisão que, na Constituição, cabe aos Estados. Este terceiro ponto é crucial e muitissimamente mais importante do que a questão do direito ao aborto. Há anos que os órgãos federais norte-americanos vêm a evidenciar uma tendência centralizadora que acabaria por desvirtuar os EUA como uma federação de estados. Não me cabe a mim dizer se isso é certo ou errado, benéfico ou maléfico mas também não o cabe a nenhuma maioria ocasional de 9 juízes. Isso é matéria reservada ao congresso, senado e câmara baixa.        João Floriano > Francisco Tavares de Almeida: Comentário muito valioso e esclarecedor. A questão do direito a abortar ou despenalização do acto vai no entanto continuar a ser um assunto gerador de enorme controvérsia, porque por muitas bases legais que sejam invocadas, a questão do aborto será sempre um problema de ética e de liberdade individual.        Joaquim Almeida > Francisco Tavares de Almeida: Excelente comentário. Fundamentar no direito de privacidade o direito de abortar e ceifar uma vida não passou de uma pura cretinice, que já tem cinquenta anos.              Tiago Figueiredo > Francisco Tavares de Almeida: Foi claramente um activismo político da maioria democrática dos juízes. À época, o Supremo era constituído por 9 juízes, 5 democratas e 4 republicanos, sendo o Chief Justice Republicano. O resultado da votação foi 7-2, tendo votado contra 1 Republicano e 1 Democrata. 3 Republicanos votaram a favor, incluindo o Chief Justice. O autor da opinião votada era um Republicano. Em 1973, era Presidente Richard Nixon, Republicano, que apoiou o uso do aborto como ferramenta de combate ao comunismo.          Carla Goncalves: excelente artigo! parabéns HM é um privilégio ler o que escreve.          Célia Soares: Enquanto houver esmolas para dar a Portugal, os governantes vão brincando!... Brincando com coisas muito sérias...por acaso alguém viu Marcelo a beijar o caixão da criança assassinada depois de terem arquivado o seu processo? Alguém viu a Graça Feitas a distribuir bacalhau á Braz às populações com fome, nomeadamente às famílias monoparentais que se desmultiplicam em número e em esforços para sobreviver neste país? Não!.. nada disso, vivem numa bolha elitista, onde o melhor que conseguem fazer é dar conselhos absurdos aos portugueses, para não adoecerem durante as férias, porque é esse o objectivo das pessoas quando vão de férias, é adoecer...para não comerem ovos...como se, a avaliar pelo preço dos alimentos, se pudessem evitar os ovos...e andar com uma mala grande cheia de garrafas de água para resistir ao tempo de espera nas urgências, em média de 9 horas, com sorte...cito...caso surja um ataque de salmonelas! Nem os Monty Python fariam melhor!!! Tudo isto é demasiado cómico e absurdo para ser real...Acordem-me, por favor, devo estar a sonhar ou nalguma realidade paralela!!!          João Alves > Célia Soares: Sousa de Belém: a banalidade … da banalidade.           MPSRRS > Célia Soares: Muito bem! isto se não fosse tudo tão grave, seria uma comédia ou tragicomédia. Andam a gozar connosco e à descarada! Muita lata e muita falta de vergonha na cara! Censurado sem razão: A Helena Matos a mostrar de forma brilhante o kindergarden em que Portugal se transformou. Mas reparem na ironia. Um kindergarden de velhos. Magistral! E ambicionamos e dizemos com orgulho que somos os melhores do mundo. Quanto ao aborto começa a ser cansativo dizerem que a mulher é que manda no seu corpo. Isso é verdade. Ela é que decide se quer ter relações sexualidade ou não, com quem tem ou com o que tem. É-me indiferente. A partir do momento em que tem um ser humano a desenvolver-se no seu útero, ela já não está a mandar no seu corpo, mas sim no corpo de outro ser humano. Dá para entender isto ou é preciso fazer um desenho tipo kindergarden? Já há muita maneira de evitar uma gravidez. O aborto não é planeamento familiar nem método contraceptivo. Perceberam agora?        Censurado sem razãoCensurado sem razão: Quando dizemos que o aborto é um direito das mulheres, estamos a dizer que elas passam a ter o direito de decidir sobre a vida de outro ser humano. Que eu saiba, em Portugal não existe pena de morte. E quem mata outro ser humano é o quê?           Carlos Silva > Censurado sem razão: Olha, olha. A sorte do Costa. Se as mães dos que votaram nele tivessem abortado, não haveria maioria e o CDS ainda mexia!

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