Brilhante - de Helena
Matos. Mas não nos corrige os cinismos. Nem a lorpice.
E não entendo a desresponsabilização da
família de Jessica no caso.
As coisas pelos nomes
Casos da semana: a directora que
confundiu a DGS com a Rua Sésamo. A decepção do primeiro-ministro não com os
partos em Portugal mas sim com o aborto nos EUA. Por fim, quem é a bruxa de
Setúbal?
OBSERVADOR, 26 jun 2022
A directora. Portugal é um caso único no mundo. Nos outros
países os governantes empenham-se em desmentir que fizeram isto ou aquilo
(Boris Johnson todas as semanas cumpre mais um patamar desse calvário). Pois
por aqui é precisamente ao contrário: os nossos governantes têm de se esforçar
para nos convencer que aquilo que dizem ou fazem é mesmo verdade. A frase “Sim,
é mesmo verdade!” faz agora parte das nossas vidas. Mal nos convencemos que
afinal é verdade algo que segundo os até então nossos parâmetros jamais
toleraríamos, logo outra verdade nos põe à prova. Esta
semana, ainda mal refeitos da constatação de que sim, é mesmo verdade que o Presidente da República anda por aí a beijar barrigas
de grávidas, tivemos de admitir que sim, é mesmo verdade que temos
uma directora-geral da saúde cujas
intervenções públicas estão ao nível das rubricas didácticas do Poupas na Rua Sésamo.
Ao
contrário do que afirmou o primeiro-ministro os portugueses não são cépticos.
Pelo contrário são duma crendice que impressiona: afinal acreditam e querem
acreditar de tal forma nos seus dirigentes que perante as imagens e declarações
que provam o total desrazoamento e mediocridade desses mesmos dirigentes,
reagem os crentes portugueses descrendo automaticamente da realidade. Mas para
nossa desgraça é tudo verdade.
A decepção. Costa “decepcionado” com decisão do Supremo dos EUA sobre
direito ao aborto. Primeiro-ministro diz que sempre defendeu “que não se
podem criminalizar questões da consciência política, religiosa e ética“.
Nem mais! Costa está decepcionado com o Supremo dos EUA que segundo afirma
“abre caminho à ilegalização do aborto”. Já
mostrar-se decepcionado com o seu governo que está a impedir o acesso aos
cuidados de saúde durante o parto fica para depois. E note-se que motivos para decepção não lhe faltam. Só neste fim-de-semana o Hospital de Braga fecha a
urgência de obstetrícia; o Centro Hospitalar de Torres Vedras não deve ter
condições para receber utentes na urgência de Pediatria até às 9h00 de domingo.
No Algarve, as grávidas referenciadas para Portimão vão ser desviadas para Faro
até segunda-feira enquanto as crianças vão de Faro para Portimão… Mas
valha-nos o Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, que reabriu a urgência ontem,
sábado, e o Supremo do EUA que trouxe à cena o mundo como deve ser:
republicanos maus versus democratas bons. A somar a esta divisão temos agora um
Supremo super-vilão. É com decepções destas, longínquas e maniqueístas, que
iludimos os nossos falhanços.
Mas vamos ao aborto. Por razões que remontam a um caso com meio século, o
direito ao aborto era consagrado pelo Supremo dos EUA “até à viabilidade do feto” ou
seja até às 23 semanas de gravidez.
Ora hoje quatro em cada 10 bebés nascidos com 23 semanas de gestação
sobrevive. E foi quando o estado do
Mississipi resolveu
adaptar os prazos legais da interrupção de gravidez à realidade do século XXI
aprovando em 2018 uma lei que proibia o aborto a partir das 15 semanas, que se
iniciou o processo que agora acabou no Supremo.
Há
em toda esta polémica um tom de contrassenso: quando se pensava que a
generalização da contracepção ia tornar o aborto algo excepcional eis que aí o
temos como grande tema como se tivéssemos feito uma viagem no tempo. Quando se esperava (ou esperava eu quando defendi
a descriminalização do aborto) que a descriminalização
levasse a que as interrupções acontecessem mais cedo eis que pelo contrário se
alargam os prazos. Em países
como a Colômbia passou-se quase directamente da
criminalização para a legalização até às 24 semanas: o Tribunal Constitucional da Colômbia ao contrário do
Supremo dos EUA entendeu que tinha competências para decidir nesta matéria
dispensando os eleitores mas mediaticamente falando o Supremo dos EUA está
contra a democracia e o Tribunal Constitucional da Colômbia a favor. Paulatinamente passámos da descriminalização do aborto
para a afirmação do direito ao aborto como se se tratasse de mais um direito
humano e não de uma opção que devendo ser possível deve ser excepcional.
Entendamo-nos o Supremo
dos EUA não proibiu o aborto, pelo contrário entendeu que não devia legislar sobre
o aborto e devolveu aos eleitores de cada estado o direito de decidirem sobre
esta matéria. Alguns
irão proibi-lo completamente (do que discordo). Outros permiti-lo em tempos de
gestação que podem ir das seis às quinze semanas. Outros até às 24. Deste lado de cá do Atlântico as discussões são por
agora outras. Menos mediáticas, menos democráticas mas igualmente importantes:
em vários países procura-se cercear o direito à objecção de consciência no caso
do aborto por parte de médicos e enfermeiros. O Parlamento Europeu aborda
regularmente o assunto. Mas nós vamo-nos entretendo com o Supremo dos EUA. É
mais fácil e dá mais emoção.
A bruxa. A mulher vai a descer as escadas ladeada por vários
polícias. De repente parece tropeçar. Depois levanta-se e segue. A multidão
grita. Há dias que ela é “a bruxa” ou mais concretamente uma das pessoas
suspeita de ter sequestrado e maltratado Jessica. Os jornais enchem-se com
detalhes sobre a vida da mãe da criança assassinada. Também sabemos dos homens
com que se relacionou. Sabemos muito menos sobre “a bruxa”. Há contudo um
elemento patente nas fotografias e em algumas declarações de terceiros que não
se escreve nem pronuncia mas se sugere: o facto de a mulher que é apresentada como bruxa ser
cigana. Ou mais exactamente parecê-lo. O dicionário duplo actualmente em vigor para falar dos
ciganos é de um paternalismo insustentável: se for para dar conta da exclusão
na escola ou no acesso a qualquer serviço insiste-se na necessidade de dar
visibilidade aos ciganos. Já se os mesmos ciganos praticarem crimes essa sua
identificação é omitida sob risco de acusação de racismo. Outras vezes sugere-se essa identificação através de
designações como clan (como sucede nas notícias sobre a angariação em Portugal de pessoas
fragilizadas para redes de trabalho escravo geralmente em Espanha)
ou grupos rivais para referir conflitos entre ciganos e africanos pois quando não há um branco para culpar o racismo
desaparece e passa a rivalidade.
Igualmente grave é a banalização da violência entre ciganos através de
conceitos como a tradição ou os ajustes de contas. A bruxa em Setúbal mostra-nos como os nomes se
tornaram uma espécie da verdade possível em cada circunstância e consoante a
identidade dos protagonistas.
ANTÓNIO COSTA POLÍTICA RACISMO DISCRIMINAÇÃO SOCIEDADE COMUNICAÇÃO
SOCIAL MEDIA
COMENTÁRIOS:
Sérgio: Fabuloso. Henrique
Frazão: É isso mesmo!! LJ ®: O Observador tem alguns
jornalistas, mas a maioria são activistas incapazes de se porem nos sapatos dos
outros, de fazerem um real contraditório e de pensar. E mesmo apenas como
comentadores, a quantidade que são, estão longe de representar a pluralidade de
pensamento da sociedade portuguesa. Continuo a acreditar no projecto do
Observador, mas por vezes interrogo-me se vai chegar a bom porto. Só a Helena
Matos e o José Manuel Fernandes me fazem ter esperança, ainda que nem sempre
esteja de acordo com eles. E ainda bem. Filipe Costa: Cuidado, chamar cigano a um
cigano é perigoso, vai ser chamada de racista, xenófoba e o que der na cabeça
dos wokes. Manuel
Martins: Concordo com quase
tudo. Temos uma paranóica subserviência aos EUA. Quero lá saber do que decide o
tribunal dos americanos, preocupa-me são as decisões e não decisões dos nossos.
Também fiquei atónito com a limpeza generalizada da nossa comunicação social
aos verdadeiros culpados deste assassínio horrível. Está tudo a tentar desviar
atenções, culpando ou a segurança social, os tribunais, o ministério público,
até os vizinhos, mas esquecendo que este é um caso excepcional causado por uns
animais... Maria
araujo: Crónica
brilhante. Costa fala para o seu eleitorado, gente medíocre que lhe batem
palmas que não percebem que Costa mente e deturpa tudo, que fomenta a
mediocridade, a ignorância, veja-se as nódoas que estão à frente da educação e
da saúde....mas o resto do governo não é melhor, e o País a definhar…
Absolutamente trágico!!!
Obi-Wan kannabis: Muito bem Dra. Matos, as suas preocupações em relação à situação, são as
minhas também. Simplesmente Maria: Relato do retrocesso
civilizacional que nos assola. Obrigada Helena Matos. Português indignado: Os governantes do PS e a sua
máquina de propaganda são especialistas em desviar as atenções para outros
assuntos menos comprometedores. Só para aqueles que votaram no PS e lhes deram
a maioria absoluta : o Hospital de Braga, nos 10 anos em que funcionou em
regime de parceria público privada nunca encerrou a sua urgência de obstetrícia
e ginecologia. Nunca. Agora com gestão 100 % pública é quase dia sim, dia não
com a urgência encerrada. Estão orgulhosos de vocês?? Carlos Silva > Português indignado: A oposição a usar os
"cuidados paliativos" para fazer face à maioria. A sorte do PS é que a
"velha" da DGS tem formação imperialista! Henrique
Frazão > Português indignado: O problema é que os do PSD são
iguaizinhos. vitor
Manuel: Impecável. antonyo antonyo: O evitar a referência aos
ciganos é uma constante com o rabo de fora . Todos percebemos de quem se está a
falar mas o cancelamento do termo é para os jornalistas muito importante. Laurentino Cerdeira: Sempre atenta e assertiva! Se o
ridículo matasse, quase não haveria políticos em Portugal, Obrigado. Liberales Semper Erexitque: Helena Matos hoje está no seu melhor, malhar na
esquerda sem piscadelas de olhos a um certo grupúsculo de extrema-direita.
Gostei particularmente da abordagem da autora à questão do aborto, moderada,
razoável, sem "água benta" da paróquia. Estou de acordo com ela, o
aborto legal deve ter um prazo que não permita margem para dúvidas acerca da
humanidade da vida suprimida, ou seja, deve ser feito no início da gestação,
salvo algumas situações médicas excepcionais e bem caracterizadas. Liberales Semper
Erexitque > Lourenço de Almeida: A moral não é
"universal", nunca foi, nunca será. Há alguns princípios que podemos
dizer universais, como ser errado matar outrem, outra pessoa. Só que não somos
obrigados a reconhecer que um embrião é já dotado de humanidade, ou usando a
expressão que mais leio, que aquele é um ser humano. Ter os cromossomas de um
ser humano não faz dele um ser humano, com as características que associamos
universalmente (?) a ser humano. Francisco Tavares
de Almeida: Duas notas.
O caso de Jéssica
estava sinalizado desde que a criança tinha um ano. A mãe já tinha duas outras
filhas institucionalizadas. No entanto quando o caso foi judicializado - e assim
terminado o acompanhamento por outros órgãos de apoio social - a sentença
deixou na prática a criança sem qualquer protecção extra-familiar. Baseou-se o
tribunal no facto de, por emigração, ter terminado o quadro de violência
conjugal. O resto seriam "fragilidades" (sic) que poderiam ser
supridas com o acompanhamento da avó materna. Não compreendo e revolta-me que imprensa e PR guardem o "prudente
silêncio" sobre a responsabilidade de um sistema judicial que,
clarissimamente, consentiu este trágico desfecho.
Roe vs. Wade instituíu o direito constitucional ao
aborto como decorrente do direito à privacidade. Isto é claramente legislar.
Nada a ver com a função do Supremo Tribunal que é interpretar a Constituição.
Ninguém de senso comum acredita que de uma constituição redigida há mais de
dois séculos por indivíduos profundamente religiosos - mais que os europeus à
época - se possa concluir pelo direito ao aborto. Foi claramente um activismo
político da maioria democrática dos juízes. E com três graves erros: 1. Deduzir
o direito ao aborto como desenvolvimento do direito à privacidade é, passe a
expressão, um aborto em racionalismo legal. 2. Fere o princípio da
separação de poderes de Montesquieu, talvez a mais importante base da
democracia, pois usurpa um poder que cabe apenas ao legislativo. 3. Fere
a própria Constituição, pois usurpa para um órgão federal, um poder de decisão
que, na Constituição, cabe aos Estados. Este terceiro ponto é crucial e
muitissimamente mais importante do que a questão do direito ao aborto. Há anos
que os órgãos federais norte-americanos vêm a evidenciar uma tendência
centralizadora que acabaria por desvirtuar os EUA como uma federação de
estados. Não me cabe a mim dizer se isso é certo ou errado, benéfico ou
maléfico mas também não o cabe a nenhuma maioria ocasional de 9 juízes. Isso é
matéria reservada ao congresso, senado e câmara baixa. João Floriano > Francisco Tavares de Almeida: Comentário muito valioso e
esclarecedor. A questão do direito a abortar ou despenalização do acto vai no
entanto continuar a ser um assunto gerador de enorme controvérsia, porque por
muitas bases legais que sejam invocadas, a questão do aborto será sempre um
problema de ética e de liberdade individual. Joaquim Almeida > Francisco Tavares de Almeida: Excelente comentário.
Fundamentar no direito de privacidade o direito de abortar e ceifar uma vida
não passou de uma pura cretinice, que já tem cinquenta anos. Tiago Figueiredo
> Francisco Tavares de Almeida: Foi claramente um activismo
político da maioria democrática dos juízes. À época, o Supremo era constituído
por 9 juízes, 5 democratas e 4 republicanos, sendo o Chief Justice Republicano.
O resultado da votação foi 7-2, tendo votado contra 1 Republicano e 1
Democrata. 3 Republicanos votaram a favor, incluindo o Chief Justice. O autor
da opinião votada era um Republicano. Em 1973, era Presidente Richard Nixon,
Republicano, que apoiou o uso do aborto como ferramenta de combate ao
comunismo. Carla
Goncalves: excelente artigo!
parabéns HM é um privilégio ler o que escreve. Célia Soares: Enquanto houver esmolas para
dar a Portugal, os governantes vão brincando!... Brincando com coisas muito
sérias...por acaso alguém viu Marcelo a beijar o caixão da criança assassinada
depois de terem arquivado o seu processo? Alguém viu a Graça Feitas a
distribuir bacalhau á Braz às populações com fome, nomeadamente às famílias
monoparentais que se desmultiplicam em número e em esforços para sobreviver
neste país? Não!.. nada disso, vivem numa bolha elitista, onde o melhor que
conseguem fazer é dar conselhos absurdos aos portugueses, para não adoecerem
durante as férias, porque é esse o objectivo das pessoas quando vão de férias,
é adoecer...para não comerem ovos...como se, a avaliar pelo preço dos
alimentos, se pudessem evitar os ovos...e andar com uma mala grande cheia de
garrafas de água para resistir ao tempo de espera nas urgências, em média de
9 horas, com sorte...cito...caso surja um ataque de salmonelas! Nem os
Monty Python fariam melhor!!! Tudo isto é demasiado cómico e absurdo para ser
real...Acordem-me, por favor, devo estar a sonhar ou nalguma realidade
paralela!!! João Alves > Célia Soares: Sousa de Belém: a banalidade … da banalidade. MPSRRS > Célia Soares: Muito bem! isto se não fosse tudo tão grave, seria uma
comédia ou tragicomédia. Andam a gozar connosco e à descarada! Muita lata e
muita falta de vergonha na cara! Censurado sem razão: A Helena Matos a mostrar de
forma brilhante o kindergarden em que Portugal se transformou. Mas reparem na
ironia. Um kindergarden de velhos. Magistral! E ambicionamos e dizemos com
orgulho que somos os melhores do mundo. Quanto ao aborto começa a ser cansativo
dizerem que a mulher é que manda no seu corpo. Isso é verdade. Ela é que decide
se quer ter relações sexualidade ou não, com quem tem ou com o que tem. É-me
indiferente. A partir do momento em que tem um ser humano a desenvolver-se no
seu útero, ela já não está a mandar no seu corpo, mas sim no corpo de outro ser
humano. Dá para entender isto ou é preciso fazer um desenho tipo kindergarden?
Já há muita maneira de evitar uma gravidez. O aborto não é planeamento familiar
nem método contraceptivo. Perceberam agora? Censurado sem razãoCensurado sem razão: Quando dizemos que o aborto é
um direito das mulheres, estamos a dizer que elas passam a ter o direito de
decidir sobre a vida de outro ser humano. Que eu saiba, em Portugal não existe
pena de morte. E quem mata outro ser humano é o quê? Carlos Silva > Censurado sem razão: Olha, olha. A sorte do Costa. Se as mães dos que votaram nele
tivessem abortado, não haveria maioria e o CDS ainda mexia!
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