sábado, 4 de junho de 2022

Franqueza de ira


Foi o que me pareceu este texto do Dr. Salles, ao explorar, uma vez mais, as motivações daqueles que defendem o indefensável, movidos por lógicas saudosistas de poderios ditatoriais, quando estes se expandiram e continuam a querer expandir-se, está visto, não abdicando de um desejo de omnipotência avassaladora, merecedor de afectos externos grandiloquentes ou subservientes, apesar dos crimes subjacentes a essa pesporrência de pura toleima bárbara. E tudo isso mau grado os nomes poderosos dos seus escritores, compositores e demais artistas criadores dos seus espaços físicos que ficarão como exemplo de valentias e valores fora do comum. Custa, pois, a crer que um país campeão de tantas provas olímpicas e espaço de tão poderosos mentores da criatividade humana esteja reduzido ao designativo de terceiro-mundismo que lhe aplica o Dr. Salles, julgo que na sua ira de pessoa justa e equilibrada que segue os parâmetros de uma democracia de “lógica humanista”, mas que sabe pegar os touros pelos cornos.

DA LÓGICA HUMANISTA E DO SEU CONTRÁRIO - 2

HENRIQUE SALLES DA FONSECA

A BEM DA NAÇÃO, 03.06.22

Lógica humanista é a que subjaz às democracias pluripartidárias em que o ser humano é o actor principal em toda a cena política e o Estado o seu servidor.

Liberdade é conceito unicitário, não admite fracções nem plurais.

* * *

O nosso, ocidental, culto da liberdade leva-nos a admitir no nosso seio quem quer condicionar a própria liberdade. Ou seja, a nossa lógica dá cabimento ao seu próprio contrário.

Eis por que aceitamos entre nós quem usa a liberdade para a destruir, os não-democratas que ocupam as franjas dos hemiciclos em que predomina a nossa lógica.

Nesta guerra por que passamos, essa 5ª coluna é doutrinariamente heterogénea e quase se lhe poderia chamar «clube dos amigos de Putin». A única característica comum que lhes encontro é da nostalgia da grande Rússia. Há-os que continuam a sonhar com a defunta URSS e há-os nostálgicos da corte de S. Petersburgo, do ballet do Bolshoi ou das páginas de Tolstoi. Toda esta nostalgia vê em Putin o reencarnador dos seus fantasmas e não vêem o desprezo que esse autocrata nutre pelas pessoas, não quer ver que a Rússia apenas exporta matérias brutas e que tem um PIB p.c. inferior ao índice homólogo mais baixo na União Europeia, o da Bulgária. Esses nostálgicos de fantasmas não querem saber que a Rússia só não é considerado um país miserável do terceiro mundo porque tem poder nuclear.

A esses nostálgicos de fantasmas eu digo que gosto muito de Bach, Mahler ou de Nietzsche e Thomas Mann e nada disso faz de mim um remoto admirador de Hitler ou de qualquer memória nazi – pelo contrário, toda a grande Cultura Alemã me afasta de anormalidades monstruosas.

A esses nostálgicos do Hermitage eu sugiro que «caiam na real» e olhem para o drama por que estão a passar os russos sob a tirania de um megalómano para quem não existe humanismo.

Desculpem os meus leitores por hoje ter referido uma pessoa (Putin), por ter referido um facto (a guerra na Ucrânia) e de ter voado depressa sobre os conceitos.

Lisboa, 2 de Junho de 2022

Henrique Salles da Fonseca

Tags:política

COMENTÁRIOS

Anónimo 03.06.2022 12:52: Sobre a guerra, abstenho, por ora, de mais comentários, pois considero que já os fiz em número suficiente. Mas fixo-me à parte inicial do teu post que evidencia aspetos da Liberdade. E sobre ela, Henrique, vou dar voz a Albert Camus quando ele, a propósito da invasão da Hungria, em outubro de 1956, pelo Pacto de Varsóvia, transmitiu uma mensagem, em novembro, numa reunião de solidariedade com o povo húngaro, organizada pela Associação dos Franceses Livres, em Paris (páginas 242/3 do livro “Conferências e Discursos”, recentemente editado). “Hoje, apesar das traições sucessivas e das calúnias com que os intelectuais de todos os lados a cobriram, a liberdade, e ela em primeiro lugar, continua sendo a nossa razão de viver. (…). Traída por aqueles cuja vocação era defendê-la, espezinhada pelos nossos clérigos perante povos em silêncio, acreditei na sua morte definitiva, razão pela qual me pareceu, por vezes, que a falta de dignidade do nosso tempo se sobrepunha a todas as coisas. Mas a juventude húngara, a de Espanha ou de França, a de todos os países, veio provar-nos hoje que não é assim e que nunca haverá nada que derrube esta força violenta e pura que leva os homens e os povos a reivindicar a dignidade de viver de pé. Todos vós, que começais agora a fazer parte da nossa história, não esqueçais isto. Não o esqueçais em qualquer época ou lugar! E se puderdes aceitar discutir tudo com lealdade, nunca aceiteis que a liberdade, de espírito, do indivíduo, da nação, seja alguma vez posta em causa, ainda que provisoriamente e nem por um segundo. Já deveis saber que quando o espírito é aprisionado, o trabalho é escravizado, que o escritor é amordaçado, quando o operário é oprimido e que quando a nação não é livre, o socialismo não liberta ninguém e subjuga toda a gente”. Abraço. Carlos Traguelho

Henrique Salles da Fonseca 03.06.2022 17:55: Henrique, corrijo: a invasão da Hungria foi pelo exército vermelho. Pelo Pacto de Varsóvia foi a da Checoslováquia. As minhas desculpas. Abraço. Carlos Traguelho

Adriano MIRANDA LIMA 03.06.2022 17:38: Sr. Dr., creio que, não obstante existirem “os nostálgicos da corte de S. Petersburgo”, com o que ele tinha de opulência em chocante distanciamento do mundo dos miseráveis da plebe, do campesinato quase escravo ou do operariado da insipiente e frágil industrialização russa, nada impede que admiremos um Fiódor Dostoiévski, um Tolstoi, um Tchekov ou um Tchaikovsky. Estão à altura dos citados por si − Bach, Mahler ou de Nietzsche e Thomas Mann – uns e outros na galeria dos universais. Em comum, a lógica do humanismo foi o alicerce das suas criações, e a liberdade do espírito sem qualquer freio interior permitiu-lhes penetrar na alma humana e tentar compreendê-la, com os seus abismos, complexidades e contradições, e nisto Dostoievski merece referência especial pela simplicidade mas também pela profundidade com que trata as temáticas humanas. Mas o calibre espiritual desses espíritos privilegiados não impediu que surgissem criaturas que interpretaram as razões do Estado e seus interesses vitais segundo as suas visões pessoais e lançaram o mundo na mais extrema barbárie. Dir-se-á então que há uma diferença abismal entre a solidão do ambiente em que o criador medita sobre o homem e o mundo e atinge visões que o ser comum não alcança, e as situações tumultuosas em que os homens normais se aglomeram para se tornarem instrumento de violência e destruição, quase sempre em nome do que se designa por revoluções. Todas elas deixaram manchas irreparáveis na história da humanidade, mesmo a francesa. Sr. Dr., não é facilmente que os homens “caem na real” quando submetidos ao medo e à repressão, porque aí a liberdade não funciona senão para acicatar a confusão e o pânico e anular a personalidade e a alma. Caso contrário, aos russos não seria indiferente que tenham um PIB de todo incompatível com as suas potencialidades energéticas naturais, enquanto o seu “megalómano” líder investe desmesuradamente sonhando com um passado sem qualquer hipótese de regresso. Estranho é não haver quem lhe faça ver que está no século XXI e os instrumentos de domínio mudaram significativamente. Muito obrigado e um abraço amigo. Adriano Lima

Adriano Miranda Lima 03.06.2022 22:14: Tem razão, Dr. Salles, a lógica da liberdade que subjaz à democracia tal como ela é concebida e vivenciada no mundo ocidental, até permite que se dê “cabimento ao seu contrário”, quer dizer, que os que a negam ou duvidam das suas virtudes, tenham igual possibilidade de se submeterem a escrutínio para terem assento onde possam demonstrar a validade das suas teses demolidoras dos valores da democracia. O que só é possível nos regimes pluripartidários, pois de outro modo não haveria democracia. Na actualidade, no mundo ocidental e nos regimes democráticos, que eu saiba, e por enquanto, nenhuma força política logrou anular por via legal a democracia. Século XX, conseguiu-o Hitler pela via eleitoral e outros, como Salazar, por falseamento eleitoral. Marie Le Pen é possível que não descarte essa intenção, mas é duvidoso que o consiga. Na Hungria e outros países, a opção é por uma democracia musculada que tem sido designada por iliberal. Na Rússia de Putin, é o que se sabe, a Constituição foi alterada para a perpetuação no poder das mesmas pessoas, e criou-se um cenário de submissão adequado – a Duma e o Soviete. A conclusão é que a democracia liberal é a única que dá garantia de eleger o poder mediante escolha livre pelos cidadãos e é o regime em que os direitos individuais são respeitados. Apesar dos seus defeitos e eventuais limitações é a única que nos tranquiliza. Por alguma razão, as antigas repúblicas da URSS procuraram descolar-se da união o mais depressa possível. Daí a minha estranheza de haver comunidades russófonas restantes em algumas dessas repúblicas que anseiam incorporar-se na Rússia ou pelo menos aparentam esse desejo, como é o caso das de Bondass. Tenho dificuldade em compreender. A não ser nos casos das gerações mais idosas que viram as suas vidas viradas do avesso com a implosão do sistema (desvalorização acentuada das suas pensões e do seu modo de vida modesto) Adriano Lima

António Justo 03.06.2022 22:39: Prezado Dr Henrique Salles Fonseca Obrigado pela clareza dos seus textos e também pela pertinência que expressa neles e deste modo me obriga também a mim a pensar! Creio que o liberalismo democrático, que como ocidentais tanto afirmamos, poderá ter a sua lógica linear como método de resposta à diversidade de problemas e exigências mas não resolve os próprios problemas sociais por ele criados e menos ainda outros que este liberalismo aberto e sem fronteiras cria. Creio que o problema da razão numa tentativa de alinhamento lógico se torna num pau de dois bicos ao apostar numa narrativa de perspectiva unilateral e mais ainda quando se lhes dão nomes. Talvez se encontre além dos nostálgicos da OTAN e dos nostálgicos da Rússia, os nostálgicos de uma cultura europeia com estratégia própria que não se deixe reduzir a uma economia própria mas que elabore uma geoestratégia própria com política cultural própria! Embora os aspectos económicos e militares sejam determinantes no desenvolvimento da História, não se revelarão como suficientes para fundamentarem uma atitude anglo-saxónica ou uma atitude “União Soviética” que pretenda dar resposta a uma história de desenvolvimento cultural milenar e que agora o episódio (de confronto entre dois blocos queridos rivais) se pretenda negar da Rússia o que ela tem de europeia! Eu aposto mais num valor de sustentabilidade que é o cultural (a cultura europeia de que faz parte também a Rússia)! Eu não faço parte de uma quinta coluna seja ela americana ou russa. Cordialmente  António da Cunha Duarte Justo

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