Também achamos que os britânicos são um
povo que ostenta uma postura que se impõe pelo respeito democrático pelo outro,
mas nem toda a gente assim pensa, considerando-os distantes e superiores, talvez
por timidez nossa, que somos irremediavelmente um povo dado ao lazer, por via
do sol, mesmo no capítulo dos estudos, e das várias burocracias que tramam
estupidamente o nosso progresso em quaisquer tentativas nossas para funcionar
ou desenvolver capazmente. Mas essa característica de superioridade deles até talvez
seja irrepreensivelmente praticada pelos vários povos frios das regiões frias europeias,
a quem esse frio exige esforço para o combaterem, e por tal motivo trabalham
melhor, estudam melhor, superiorizam-se mais, e o carisma vem depois. Para
obterem as suas benesses, não deixam, contudo, de matar bem, tanto na
literatura como na vida real. A Maria Stuart foi das suas vítimas e as páginas
de Shakespeare são também prova de que não se ensaiavam para satisfazer os seus
direitos ou os seus caprichos. É verdade que mais cedo que ninguém, criaram uma
Magna Carta, já defensora de ideais igualitários, Churchill tem razão no que
afirma, além da Távola Redonda para os pares. Por mim, confirmo o discurso de João Carlos Espada, relativamente à figura serena da
Rainha, e direi com todos os que assim dizem: God save the Queen, e o futuro
King também. Mas nunca se pode prever.
God Save the Queen
Nas celebrações do Jubileu de Platina da Rainha Isabel
II, foi unânime a homenagem ao seu sentido de dever e à sua dedicação ao
equilíbrio e moderação que há muito dis tinguem a vida política britânica
JOÃO CARLOS ESPADA
OBSERVADOR, 06 jun 2022
1Todos assistimos, ou pelo menos fomos informados sobre
as imponentes celebrações do Jubileu de Platina da Rainha Isabel II (que
tiveram lugar de quinta-feira a domingo passados). Todos pudemos observar a
rigorosa ‘pompa e circunstância ‘ das celebrações— acompanhada por imensa
adesão popular.
Como
explicar esta surpreendente convergência entre celebração da Monarquia e
intensa adesão popular?
De
acordo com a pluralista e muito variada imprensa britânica, as respostas são
relativamente unânimes: a Rainha dedicou os seus 70 anos de reinado ao sentido
de dever, à dedicação à causa pública, em detrimento do egoísmo pessoal ou de
preferências pessoais.
Nas
ilhas britânicas, as expressões ‘sentido de dever’ e ‘causa pública’ têm um
entendimento consensual, supra-partidário e constitucional. Não estou seguro de que tenham o mesmo entendimento
em certos sectores das culturas políticas continentais.
2Escrevendo no conservador ‘Telegraph‘ de Londres, o
conservador Alistair
Health sustentou:
“Crucialmente,
o papel central da Monarquia na vida britânica consiste em moderar a nossa
política e a nossa sociedade. A nossa Monarquia tem servido como trincheira
contra o extremismo, contra demagogos, tiranos, fascistas, comunistas e woke
cancellers. A nossa Monarquia reduz dramaticamente a ameaça do extremismo, da
violência ou dos excessos ideológicos — uma qualidade que o resto do mundo
reconhece no Reino Unido.” (Quinta-feira, 2 de Junho, p. 16).
Poderá
ser dito que esta resposta não é surpreendente, vinda de um conservador. Mas
talvez seja interessante ouvir uma outra resposta, vinda do líder do Partido
Trabalhista, Sir Keir Starmer, também no ‘Telegraph’ de Londres:
“Que
a Grã-Bretanha tenha sempre rejeitado o extremismo é em não pequena parte
devido à nossa ideia sobre quem somos como povo: uma ideia nascida de um
sentido de estabilidade que não pode existir sem instituições fortes. […] Tal
como a Rainha nos tem liderado ao longo dos últimos 70 anos, tudo o que ela nos
tem ensinado — sobre o dever, a tolerância, a humildade e a responsabilidade —
continuará a guiar-nos na próxima era. Nós somos um país melhor e mais luminoso
por causa dela.”
(Quarta-feira, 1 de Junho, p. 16).
3Talvez
não seja deslocado sublinhar esta confluência da direita e da esquerda
britânicas na comum adesão à Monarquia constitucional e na comum condenação dos
extremismos da esquerda e da direita. O último terceiro-mundista
revolucionário a tentar romper esse consenso foi o sr.
Corbyn— que ostensivamente se recusava a cantar “God Save the
Queen” em cerimónias oficiais.
Entretanto, perdeu democraticamente a liderança do Partido
Trabalhista, bem como, a seguir, a filiação no partido. Continua obviamente
Membro do Parlamento e livre de pregar a quem quiser — mas não em nome do
Partido Trabalhista.
Esta
aversão britânica a revoluções e contra-revoluções foi motivo de admiração e de
estudo no continente europeu, desde pelo menos a Revolução (chamada Gloriosa)
de 1688 — uma revolução que ostensivamente declarou como principal objectivo restaurar as antigas liberdades constitucionais da Magna
Carta e, por essa via, tornar desnecessárias outras revoluções.
O historiador francês Elie Halévy chamou “milagre
da Inglaterra moderna“ a essa
excêntrica capacidade britânica de evitar as revoluções e contra-revoluções em
que o continente europeu esteve mergulhado após a revolução francesa de 1789. A historiadora
norte-americana Gertrude Himmelfarb
precisou o alcance desse “milagre
inglês“:
“O verdadeiro ‘milagre da Inglaterra
moderna’ (a famosa expressão de Halévy) não está em ter sido poupada à
revolução, mas em ter assimilado tantas revoluções — industrial, económica,
social, política, cultural — sem recorrer à Revolução “.
4Vale a pena recordar que também Winston Churchill — o
primeiro dos 14 Primeiro-Ministros que a Rainha acompanhou em reuniões semanais
— sublinhou esse milagre reformista da cultura política britânica. Evocando a
disposição política de seu pai, o conservador Lord Randolph Churchill, disse
Winston:
“Ele não via razão para que as velhas
glórias da Igreja e do Estado, do Rei e do país, não pudessem ser reconciliadas
com a democracia moderna; ou por que razão as massas do povo trabalhador não
pudessem tornar-se os maiores defensores destas antigas instituições através
das quais tinham adquirido as suas liberdades e o seu progresso. É esta união
do passado e do presente, da tradição e do progresso, esta corrente de ouro [golden
chain] nunca até agora quebrada, porque nenhuma pressão indevida foi exercida
sobre ela, que tem constituído o mérito peculiar e a qualidade soberana da vida
nacional inglesa”.
5Vulgares
agitadores da esquerda e da direita radicais — como os camaradas Lenine e Staline, ou o Cabo Hitler, ou o ex-comunista Mussolini— chamaram a esta ‘corrente
de ouro’ reformista uma simples camuflagem dos interesses da “oligarquia
burguesa capitalista e globalista britânica”. Churchill não hesitou em responder:
“Não
temos nós uma ideologia — se tivermos de usar essa palavra horrível, ideologia
— não temos nós uma ideologia própria na liberdade, numa Constituição liberal,
no Governo democrático e parlamentar, na Magna Carta e na Petição de Direitos?”
E,
para o caso muito provável de os camaradas ignorarem o significado da Magna
Carta ou da Petição de Direitos, Winston teve a amabilidade de precisar:
“Como
poderemos nós, criados como fomos num clima de liberdade, tolerar ser
amordaçados e silenciados; ter espiões, bisbilhoteiros e delatores a cada
esquina; deixar que até as nossas conversas privadas sejam escutadas e usadas
contra nós pela polícia secreta e todos os seus agentes e sequazes; ser detidos
e levados para a prisão sem julgamento; ou ser julgados por tribunais políticos
ou partidários por crimes até então desconhecidos do direito civil? […] Pois eu
afirmo que devemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para não termos de
nos submeter a tal opressão!”
6Os
“camaradas” na altura retorquiram que essa era a “propaganda de guerra” que
convinha à oligarquia capitalista e globalista chefiada por Churchill — um
pouco à semelhança do que hoje novos “camaradas” atribuem à “propaganda de
guerra” do Ocidente, da NATO e da União Europeia contra a invasão da Ucrânia
pela Rússia.
Acontece
todavia, embora naturalmente os “camaradas” ignorem, que os ideais da Monarquia
constitucional britânica não foram inventados por Churchill nem pela Rainha
Isabel II. Em Março de 1763 (ainda antes da revolução americana de 1776 e muito
antes da revolução francesa de 1789) disse no Parlamento o então
primeiro-Ministro britânico William Pitt (the Elder):
“O homem mais pobre pode na sua
‘cottage’ desafiar toda a força da Coroa. A ‘cottage’ pode ser frágil; o seu
telhado pode abanar; o vento pode soprar através dele; as tempestades podem
entrar, a chuva pode entrar — mas o Rei de Inglaterra não pode entrar; todas as
suas forças não se atrevem a atravessar as fronteiras da habitação em ruínas”.
Post
Scriptum: Homenagem a Padre João Seabra A notícia da morte de Padre João Seabra, na passada
sexta-feira, atingiu e comoveu todos os que tiveram o privilégio de o conhecer,
mesmo que fugazmente. Na cerimónia de entrega do Prémio Fé e Liberdade pelo
Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, em Junho de
2017 no decorrer da 25ª edição do Estoril Political Forum, o premiado foi
apresentado por Guilherme de Almeida e Brito, vice-director da Católica Lisbon
School of Business and Economics. As suas palavras exprimem o sentimento de
profunda saudade de todos nós:
“Para
além das três dimensões que mais me tocaram — a dependência de Deus e a
fidelidade à Igreja, a valorização de cada instante como decisivo e o foco no
destino de cada pessoa, e finalmente a capacidade de gerar comunidades — há
toda uma série de dimensões que dão um colorido próprio à presença do Padre
João: uma cultura vastíssima e uma inteligência arguta, uma capacidade
pedagógica para explicar de forma clara e completa temas complexos, uma enorme
facilidade linguística, a facilidade de relacionamento com pessoas muito
diversas, a sua reverência e o seu humor”.
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