O certo é que Jaime Nogueira Pinto
também
é um
apóstolo inexcedível de coragem e lucidez dos valores mais ou menos
sedimentados nas sociedades culturalmente mais evoluídas, hoje perturbadas
pelas tais causas fracturantes ditadas por zelo anárquico destruidor desses
valores estatuídos. Esta sua análise, de orientação rica e sem duplicidades, o
comprova, fazendo-nos desejar que longos anos de vida assim activamente
orientadora favoreçam a sua presença nesta nossa terra pantanosa, para que a
ajude a expulsar os parasitas do pântano.
Padre João Seabra – servo de Deus e dos Homens
Num tempo em que a doença, a
deficiência e a fragilidade se escondem e em que a morte se apressa, o João
Seabra foi exemplar na forma de viver a doença. Com uma humildade funda,
gloriosa e comovente.
JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista do Observador
OBSERVADOR, 10 jun 2022, 00:2018
O
padre João Seabra, que conheci
nos anos 60, na Faculdade de Direito, deixou-nos no dia 3 de Junho. Ao
longo deste meio século fomos e ficámos bons amigos; juntos pela vida, e nas
causas da Vida.
Quando
nos conhecemos, o João era monárquico liberal e eu nacionalista
revolucionário, mas sempre nos respeitámos e demos bem. Voltámos a
encontrar-nos no princípio dos anos 80, ele já ordenado sacerdote e eu de volta
do exílio, a começar o Futuro Presente. O
João, nessa época, procurava compreender como é que o 25 de Abril e o PREC, que
tinham sido “uma aventura divertida” para tantos da nossa geração, eram, para a
Zezinha e para mim, uma tragédia. Falávamos
disso muitas vezes, e ele foi
percebendo a importância que para nós tinha tido o fim do Império.
Sempre na linha da frente
Depois,
com o correr do tempo e a chegada à sociedade portuguesa das novas
ortodoxias políticas e de uma nova moral anti-cristã e anti-nacional em nome de
um supremo individualismo – que ia do “enrichez-vous” liberal às micro-causas aparentemente libertárias mas realmente
liberticidas – fomos
estando também unidos, não só na amizade, mas também em muitos combates: contra o Aborto, contra a Eutanásia, pela Vida, pela
Família e por valores comunitários e de proximidade capazes de promover a
liberdade, a justiça e a dignidade humana e de combater o hedonismo
generalizado.
A
guerra para impor as novas ortodoxias e a nova moral não era já feita através
da violência directa, da proibição, do autoritarismo do Estado, como o fora no
Liberalismo regalista de 34 e na Primeira República (que o João tão bem
escalpelizou na sua tese de Doutoramento), mas pela estratégia indirecta das
aparentes “boas causas”: a autonomia da mulher e a “liberdade” de dispor do seu
próprio corpo; a escolha, por cada um, do tempo e do modo da própria morte e o
dever da sociedade e dos profissionais do sistema nacional de saúde de o
“ajudarem” a concretizar essa escolha; a aceitação e a “consagração” de
uniões à la carte; a “liberdade” de autodefinição e de auto-reinvenção
longe da “tirania da biologia”.
O
padre João Seabra, como
sacerdote, como professor, como líder, como homem, esteve sempre na frente
destes “bons combates” – com
firmeza e determinação, sem ceder a modas, sem calar a verdade, sem se refugiar
na ambiguidade para agradar aos poderes públicos, à comunicação social ou à
“boa opinião” dos salões e “da rua”.
Depois,
graças à sua profunda cultura e inteligência, percebeu como ninguém a questão
real e central do problema nacional, um mal que vinha de longe mas a cada ano
agravado: a promoção da mediocridade pela deformação da
educação e do ensino, tanto nas chamadas “Ciências exactas”, onde o saber é
necessariamente cumulativo e as graves insuficiências do sistema não podem ser
compensadas pelo ocasional bom professor, como também, ou sobretudo, na área
das Ciências Humanas e da História por razões ideológicas e “corporativas”.
Porque
a formação dos espíritos não se faz nas Universidades: faz-se antes, no tempo
que vai da infância à adolescência, para se consolidar na juventude. É quando escolhemos os nossos modelos, os nossos
heróis, aquelas personagens, reais ou fictícias, com que nos queremos
identificar. Hoje o conselho dos sábios é não ser fiel a coisa
nenhuma, procurar safar-se, conseguir o sucesso, o bom emprego. E politicamente ficar naquele centrismo
rigorosamente ao centro, que é o lugar geométrico dos portaborse e
dos intelectuais de serviço ao sistema, um “centrismo” que agora acomoda no
seu mainstream o bom “activismo” pelas “causas fracturantes”.
Com grande visão, coragem, tenacidade e
fé, o padre João Seabra dedicou as últimas décadas da sua vida a criar colégios
que, além dos saberes curriculares, formassem pessoas nas convicções, nos
princípios, na verdade. E não foi fácil, como neste país nunca é fácil, estar
verdadeiramente contra a corrente.
O Poder e a Glória
A
condição de sacerdote, de padre, de ministro de Deus, o carisma de perdoar os
pecados, de consagrar o corpo de Cristo, dado a um homem, numa época de
descrença e cepticismo, foram tema de muitos e bons romances. Nos meus vinte
anos li muita dessa ficção, em que a figura do padre era central. The Power and The Glory, de Graham
Greene, nos
tempos da perseguição aos católicos no México, foi um dos que mais me tocou;
ou o Journal d’un curé de champagne, de Bernanos, com aquele jovem pároco perdido que procura os
sinais da Graça, perante o que lhe parece ser o silêncio de Deus no outrora
devoto campo francês. Lembro-me também de Les Saints vont en enfer, de Gilbert
Cesbron, que tinha
sido um sucesso dos anos 50, com a figura do “padre-operário”; sem esquecer
o Eurico o Presbítero, o Padre Amaro ou
os “Dons Camilos” rústicos de Camilo Castelo Branco.
Essas
odisseias de padres católicos na modernidade, da perseguição anti-cristã do
México dos anos 30, ou da descrença no campo francês ou nos bairros operários
das periferias urbanas, não tinham, talvez, a grandiosidade apocalíptica das
lutas entre Deus e o Demónio das narrativas
de Dostoievsky, ou do dilema
trágico de Chinmoku (Silêncio),
o romance do japonês Shusaku Endo, de que Martin Scorsese fez um grande filme. Mas o Grande Inquisidor que vai prender o próprio
Cristo reencarnado, e o padre Ferreira, que cala a fé para salvar os seus
cristãos, andam à volta desse mesmo mistério da Fé que é também um mistério
para os homens.
Estamos
hoje num tempo em que tudo parece
conjugar-se contra o mistério e empenhar-se na sua negação, ou em perseguir subtil e ambiguamente a verdade com as
armas da tolerância paternalista, do desdém cientista, e também da exploração,
nos media, dos reais pecados de alguns padres. Pecados reais de homens que também são tentados, que
também pecam como os outros, mas que, pela sua responsabilidade acrescida,
“mais lhes valera que lhes atassem uma mó de moinho ao pescoço e os atirassem
ao mar”, nas palavras do próprio Cristo a propósito dos que escandalizam
crianças. Porém, estes
pecados repugnantes – os seus protagonistas e os seus encobridores que, por
desgraça, encontraram nicho na própria Igreja – não são, de modo algum,
sinónimos da Igreja, do clero, do catolicismo, como às vezes se quer fazer
parecer ou é insinuado em parangonas para aplicar à Igreja uma regra de culpa
colectiva, de amálgama, e causar uma onda de indignação (essa sim) populista.
Como se fossem todos assim e nada mais houvesse no passado e no presente da
Igreja do que isso. É um ódio velho que não cansa…
A guerra contra a Igreja
Além da sua exemplaridade sacerdotal,
devemos ao padre João Seabra uma investigação rigorosa e fundamentada das
raízes deste ódio velho à Igreja em Portugal; um ódio que não se confunde com o anticlericalismo de
escritores como Herculano, Camilo, Eça de Queirós ou alguns neo-realistas. Foi da “erradicação do catolicismo, considerado
responsável histórico do atraso do país”, que então aqui se tratou e João
Seabra estudou o fenómeno na sua tese de Doutoramento em Direito Canónico, em
Roma, “A Lei Portuguesa da Separação do Estado das Igrejas de 20 de Abril de
1911”.
Para as esquerdas, o “atraso
português” terá sempre de dever-se a alguém de que não gostam ou ao inimigo
principal do momento; ora aos padres, ora a D. Miguel, ora a Salazar e às
sequelas do salazarismo, ora à “extrema-direita”. Passados
quase 50 anos sobre o 25 de Abril, ainda vivem a repetir os malefícios da
Censura e da PIDE, pintados com cores inquisitoriais e gestapianas. Só é curioso
que alguns destes democratas de sempre se tenham convertido à democracia pós-25
de Novembro, já que nos tempos revolucionários tinham por ídolos Lenine,
Trotsky, Mao, Pol Pot e outros conhecidos modelos de liberalidade, liberdade,
paz e bom entendimento entre os homens.
Na sua tese, João
Seabra filiou a guerra contra a Igreja em Portugal, na Dedução
Cronológica e Analítica do padre António Pereira de Figueiredo,
especificamente contra os jesuítas. A guerra intensificou-se em 1834 com a expulsão das congregações, continuou nas
anterianas “Causas da
Decadência dos Povos Peninsulares”, e,
proclamada a República, objectivou-se na Lei da Separação, cópia
servil pelas esquerdas domésticas das leis francesas do anticlericalismo básico.
Lá e cá se mataram uns padres, lá e cá
se expulsaram uns bispos e lá e cá se mediram os crânios a uns religiosos para
provar as suas lombrosianas más inclinações.
Até
hoje subsiste a questão da declaração de Afonso Costa, na sede do Grande Oriente Lusitano Unido, em 26 de
Março de 1911,
vaticinando, sobre a legislação que sairia três semanas depois que “a acção da
medida será tão salutar, que em duas gerações Portugal terá eliminado
completamente o catolicismo, que foi a maior causa da desgraçada situação em
que caiu”.
A
Primeira República, até ao sidonismo, atacou efectivamente a Igreja, colocando-a
sob tutela administrativa, vigiando-a e controlando-a, pretendendo, em nome da
liberdade, acabar com o catolicismo em Portugal. O catolicismo
popular nascido de Fátima e a reacção nacional-autoritária e popular do
sidonismo interromperam o processo, ainda na República. E depois veio o 28 de
Maio.
Hoje,
João Seabra denuncia a situação na Europa no final da sua tese: “vem-se
criando um sistema cada vez mais cerrado de limitações ao culto divino e à vida
das comunidades cristãs”, nomeadamente “nas limitações firmes à liberdade de
educar”.
Consequente
com a sua Fé e a sua inteligência, foi aqui que, nos últimos anos, João Seabra
concentrou o seu combate, o seu bom combate, corajosamente prosseguido na saúde
e na doença.
Num
tempo em que a doença, a deficiência e a
fragilidade se escondem e em que a morte futilmente se apressa, o João Seabra que era,
aparentemente, tão senhor de si – e que teria razões humanas de sobra para o
ser – foi exemplar na forma de viver a doença e a carga de sofrimentos,
limitações, incapacidades e dependências que lhe foi trazendo. Fê-lo habitualmente, no meio de nós, com uma
humildade funda, gloriosa e comovente de servo dos servos de Deus, de cristão
confiante, tanto na fortaleza como na fraqueza e na debilidade, à semelhança de
Cristo e desse outro grande exemplo de pastor e cristão, São João Paulo II.
A SEXTA
COLUNA CRÓNICA OBSERVADOR OBITUÁRIO SOCIEDADE IGREJA
CATÓLICA RELIGIÃO CATOLICISMO CRISTIANISMO
COMENTÁRIOS:
Nuno Andrade: "Porque a formação dos espíritos não se faz nas Universidades: faz-se
antes, no tempo que vai da infância à adolescência, para se consolidar na
juventude." Fui nessa fase amigo do
João e claro que continuei com a sorte de o ter visitado faz pouquíssimo tempo. jorge oliv: Obrigado pelo Texto, Jaime
Nogueira Pinto. Grande testemunho de fé e cidadania este seu texto. Laurentino
Cerdeira: Desde a sua morte no passado dia 3, tantos e tão bons
articulistas do Observador têm escrito panegíricos ao Reverendo Cónego João
Seabra, que, acredito, se tratava de um ser humano excelente! D.E.P. Graciete
Madeira: Magnífico texto.
Maria Emília Ranhada Santos: Maravilhosa crónica! Quem deseja atacar a fé
católica, vai rapidamente buscar a inquisição, mesmo sem perceber nada de
história e muito menos de Igreja! É um processo judicial que não pode terminar,
porque rende continuamente dividendos, aos opositores da Igreja e dos seus
seguidores. Seria óptimo que esses acusadores, antes de acusarem a
Igreja, se debruçassem sobre essa época histórica! Quem construiu a invejada
Civilização Ocidental? foi a Igreja, e disso ninguém duvida! ( Thomas Wood,
2005) Actualmente está montada uma forte propaganda a favor
das minorias LGBTQI...que se opõem totalmente à fé cristã, mas muito
particularmente à católica, usando símbolos de mal dizer, contra Jesus Cristo,
a SS Virgem e toda a Igreja. Usam uma enorme falta de respeito, mas como são
apoiados pelas elites dominantes, têm as costas quentes e avançam cada um
quanto mais pode, porque certamente são recompensados por esse trabalho!
Assaltaram as escolas e projectam dominar os nossos
filhos e netos em total oposição aos pais e educadores! Retiraram os símbolos
religiosos da fé de cada um, e entram abusivamente com depravações sexuais
traumatizantes e chocantes para as nossas crianças! Ninguém autorizou mas pelo
contrário, isso tem rendido luta feroz a quem se oponha aos perversos
ensinamentos dessas minorias! Não acredito que haja pessoas que entendam
essa doutrinação como um bem, porque ela é totalmente destruidora! Então
estão dominados por quem? Quem está por detrás a mandar no nosso país? Ora bem!
O que é isto senão uma tremenda inquisição? Se tens fé, ou mesmo que não
tenhas, mas se te opões à nossa doutrinação às novas gerações, que nos mandaram
destruir, para que Portugal deixe de existir, levas um processo disciplinar, és
silenciado, és despedido, és ridicularizado, assobiado, enxovalhado, acusado,
maltratado, etc...porquê? Porque quem não se submeter à nossa doutrinação,
quem pensar que ainda há liberdade, quem "deitar os corninhos de
fora", etc), para esses, temos uma forma de inquisição especial! Dizia salvo
erro, Lenine: Não exijam instrução para a juventude e dêem-lhes liberdade
sexual, e teremos tudo na mão!" Por favor, libertem-nos de quem
legisla contra a vontade do povo! Chega de legalizações fracturantes! Acorda
povo português, que com esta doutrinação estão a engolir-te e tu não estás a
dar conta disso! josé
maria: O João, nessa
época, procurava compreender como é que o 25 de Abril e o PREC, que tinham sido
“uma aventura divertida” para tantos da nossa geração, eram, para a Zezinha e
para mim, uma tragédia. A "tragédia" , que permitiu ao
"nacionalista revolucionário" e fascista Jaime Nogueira Pinto poder
denegrir do regime democrático, com a mesma facilidade com que silenciava
qualquer crítica ao regime que institui o campo de tortura do Tarrafal. A
"tragédia", que permitiu ao "nacionalista revolucionário" e
fascista Jaime Nogueira Pinto a liberdade de expressão de pensamento, que não
existia no regime autocrático que ele apoiou. Duarte Correia > josé maria: Este esteve lá no campo de tortura do Tarrafal a ser
torturado. Vê-se logo. Não deixa de ser irónico porque o campo, o lugar, tem
por designação toponímica "Chão bom". Constroem-se mitos para
respaldarem os "heróis". Conheço muitíssimo bem o lugar. Decerto ao
contrário do sr., estive lá por várias vezes. josé maria > Duarte Correia: Você esteve lá por várias
vezes, mas no papel de "nacionalista revolucionário", enquanto
carrasco ou verdugo, ou terá sido como vítima? Carminda Damiao: Excelente artigo. Fernando CE: Tocante. Um óptimo artigo ,como
sempre. Alberto
Pereira: Excelente
testemunho sobre o Padre João Seabra! Um Padre e um Homem exemplar. Paz à sua Alma. Tiago Figueiredo: "Então, sentando-se,
chamou os doze, e disse-lhes: "Se alguém quer ser o primeiro, será o
último de todos e o servo de todos." [ Marcos 9:35 ] Descanse em Paz. Américo
Silva: Muitos criticam a
igreja pela inquisição, que foi uma exigência da sociedade, deixando passar
despercebida a sua relação com a morte matada não expiatória, festivamente
aprovada nas cruzadas, na reconquista, e nos impérios coloniais europeus, entre
outros. S. Domingos queria os cátaros mortos, e S. Francisco Xavier os mouros
afogados, por isso é bom reflectir no significado da luta da igreja contra a
eutanásia, uma morte redentora. Será que querem monopolizar a morte? dos
outros. S Belo: Excelente lição. Obrigada.
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