Valentina era uma moldava que trabalhou
em minha casa. Tinha uma filha, Vitória, que namorava um turco. Valentina
costumava dizer que os “Turcos eram gente
má”. Creio que a Vitória não foi avante com o seu turco, e Valentina
descansou do seu pesadelo de mãe preocupada. O pesadelo europeu mantém-se
ainda, que Erdogan é turco de gema, seguidor da definição de Valentina. Como
Putin, de resto, seu amigo – de Erdogan, não de Valentina, mas o V. P é mais um “russo”, da velha guarda imperial
dominadora, embora eu julgue que não fará questão nas alianças com o turco,
pois sempre se disse que os amigos são para as ocasiões … O pesadelo a ocidente
também é disso consequência - ANA KOTOWICZ bem o relata, no extenso resumo dos
pormenores que por nós passaram… e passarão ainda… Isto, no caso da ligação turco-russa.
Quanto ao tal artigo 5º, não sei o que diria a Valentina.
Provavelmente, que os amigos não são para as ocasiões… Ou que a época dos
escuteiros já lá vai…
Um ataque a um é um ataque a todos. A
NATO morre se rasgar o artigo 5.º
Albânia, Turquia, Letónia, Polónia,
Alemanha, EUA. A Aliança Atlântica defenderá da mesma maneira todos os seus
membros, como está previsto no artigo 5.º? Ou uns valerão mais o risco que
outros?
ANA KOTOWICZ: Texto
OBSERVADOR, 11
jun 2022
Índice
Se Trump deixou de pôr em risco o
artigo 5.º, Erdogan ainda é um perigo
Estocolmo e Helsínquia na NATO? Todos
os caminhos têm ido dar ao “não” de Ancara
Europeus pouco interessados em
defender a Turquia
Se o artigo 5.º for invocado, deve
ser a América a ajudar (na opinião dos europeus)
Diga o que disser o povo, os
políticos não podem ignorar o artigo 5.º
O que dizem os líderes? Tratado é
para cumprir
A ironia final: Putin fez mais pela
coesão da NATO do que qualquer aliado
Kaliningrado. Tem 15 mil quilómetros quadrados de
território russo, mas está longe da Rússia. A terra, que já foi alemã e
é quase do tamanho da Irlanda do Norte, está rodeada pela Polónia, pela
Lituânia, e pelo mar Báltico. Este pedaço do país de Vladimir Putin é bem
real, mas vamos acrescentar-lhe um pouco de faz de conta. Faz de conta
que o Presidente russo quer criar uma ponte terrestre a ligar Kaliningrado a
Moscovo. Um algoritmo dá-nos a resposta que queremos: são 16 horas
de caminho (quase 1.300 quilómetros), atravessando a Letónia e, depois, a
Lituânia .Um caminho alternativo,
mais longo, seria atravessar a aliada Bielorrússia e beliscar um pedaço de
território à Polónia. Nestes dois cenários hipotéticos, em que o Kremlin
avança pelos países da NATO adentro, a resposta da Aliança Atlântica
deveria ser a mesma: um ataque a um membro da NATO é considerado um ataque a
todos, segundo o artigo 5.º do Tratado do Atlântico
Norte. Mas será?
A mudança na presidência dos Estados
Unidos, com a eleição de Biden, trouxe um acréscimo de segurança e é mais fácil
acreditar que a NATO voltou a usar o lema “um por todos”, ao contrário do que aconteceu
com a administração Trump.
Durante
a anterior administração norte-americana, a incerteza era grande. Trump
disse-o com todas as letras, em 2016, numa entrevista ao The New York Times: os EUA não devem defender automaticamente um aliado em
caso de ataque. Se a
Rússia atacasse algum dos países bálticos — Estónia, Letónia e Lituânia —,
Trump iria avaliar se esses países “cumpriram as suas obrigações”, antes de os
ajudar militarmente. As obrigações eram financeiras: o objetivo de cada membro
consagrar 2% do respetivo PIB a despesas em defesa. Curiosamente, os dados de
2021 indicam que esses três países fazem parte do grupo de oito membros da NATO
que ultrapassaram o valor da despesa acordada.
O mesmo
Presidente norte-americano chegou a dizer que a NATO era obsoleta — mais tarde, em 2017, disse que já não eram — e o Presidente francês considerou, em 2019, que a aliança estava em morte cerebral. As palavras de Emmanuel Macron, que criticava o
comportamento unilateral da Turquia na Síria, incomodaram a então chanceler
alemã, Angela
Merkel, e mostravam bem a divisão que existia entre os signatários do Tratado
do Atlântico Norte.
O
Presidente turco respondeu a Macron, na mesma semana, a poucos dias de uma
cimeira crucial da NATO: “Examina em primeiro lugar a tua própria morte cerebral”, disse Recep
Tayyip Erdogan.
As
divisões sobre a Síria não estão sanadas na NATO e, nos últimos dias, voltaram
a ser tema de conversa. Mas, com a eleição de Joe Biden, houve uma mudança na
escola de pensamento em Washington e os EUA voltaram a defender a
importância da NATO na ordem mundial. Foi
como água na fervura, mesmo que sem efeito duradouro.
“Sou daqueles que entendem que, se porventura
Donald Trump tivesse sido reeleito, teríamos começado a discutir a verdadeira
sobrevivência da Aliança Atlântica”, diz ao Observador o professor catedrático
Luís Tomé.
“Desse
ponto de vista, o alargamento putativo àqueles que foram convidados em 2008
— como a Ucrânia e a Geórgia — não se colocaria”, defende, e isso era um
argumento a menos para Putin, já que não se estaria a discutir a possibilidade
de alargamento da NATO a outros países naquilo que, até à década de 1990, era
espaço de influência soviética. “Se calhar teríamos começado a discutir a
própria existência da Aliança Atlântica”, sublinha o diretor do Departamento de
Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa.
▲Soldados
belgas na Alemanha, em 2022, para um treino da Força de Resposta Rápida da NATO
GETTY IMAGES
Se Trump deixou de pôr em risco o
artigo 5.º, Erdogan ainda é um perigo
“Há
algum receio quando ouvimos alguém como o antigo Presidente norte-americano,
Donald Trump, dizer que não sabe muito bem se vai cumprir o artigo 5.º. Foi a
primeira vez que um candidato presidencial ou um Presidente americano disse
isso”, sublinha Bruno Cardoso
Reis ao Observador. “Depois
acabou por recuar nessas declarações e até veio dizer que, afinal, a NATO já
não erma obsoleta”, recorda o historiador, doutorado em estudos de guerra.
Durante
a administração Trump, as divergências transatlânticas, “que são cíclicas e
algumas se mantêm”, agravaram-se muito, defende, por seu lado, Luís Tomé. “As desconfianças entre europeus e administração
Trump agravaram-se de tal maneira que já tínhamos uma espécie de crise de
identidade na Aliança Atlântica. Durante o período de Donald Trump começámos a
questionar se, de facto, pertencíamos à mesma comunidade de valores e de
princípios e à mesma comunidade de segurança.”
O
problema, acredita o professor catedrático, ficou resolvido com a tomada de
posse de Joe Biden. “A administração
Biden aparece a dizer não apenas que ‘America is back’, mas ‘NATO
is back’. Volta a valorizar
a Aliança Atlântica, volta a valorizar as relações com os seus aliados europeus
e a dar sucessivas garantias de que, na ótica dos EUA, com esta administração,
os aliados NATO são cruciais e a estrutura NATO é fundamental na visão que os
EUA têm para a ordem internacional.”
Se
Trump deixa de ser um problema, e
parece ser (novamente) verdade que atacar um será como atacar todos, o
Presidente turco voltou a revolver águas que pareciam estar tranquilas. Afinal,
estavam só estagnadas.
Numa
conversa muito recente com Putin, Erdogan terá detalhado o seu plano
para uma nova ofensiva na Síria, ao
mesmo tempo que discutiam, ao telefone, a atual invasão
da Ucrânia. Desde o
final do mês passado, ficou claro o que vai na cabeça do Presidente turco: uma
grande operação militar para repelir os combatentes curdos sírios e conseguir a
desejada zona tampão de 30 quilómetros na Síria, na mesma zona que a Turquia
atacou em 2019. Objetivo? Proteger a fronteira turca de movimentos terroristas.
▲ Soldados
noruegueses combatem soldados britânicos durante um exercício da NATO, na
Noruega, em 2018
GETTY
IMAGES
O timing de Erdogan é péssimo e preocupa
os Estados Unidos. John Kirby,
porta-voz do Pentágono, assumiu que “aumentar a atividade militar”
representa perigo para a segurança dos civis na Síria, mas não só. Pode ter
impacto na luta contra o Estado Islâmico que é encabeçada pelas Forças
Democráticas Sírias (FDS) — aliança armada dominada pelos curdos, apoiada pelos
Estados Unidos, mas considerada uma organização terrorista pela Turquia.
Em
2019, sob a égide de Trump, os EUA
retiraram as suas tropas da Síria — país liderado por Bashar al-Assad
que tem o apoio da Rússia —, o que permitiu à Turquia atacar os
curdos que combatiam o Estado Islâmico. Na
altura, quando falava da morte cerebral da NATO, Macron questionava o futuro da
Aliança. “Como
funcionará o artigo 5.º no futuro? Se
o regime de Bashar al-Assad decidir retaliar contra a Turquia, os Estados da
NATO envolvem-se? Isto é uma questão real.”
O Presidente francês relembrava
o empenho em combater o Estado Islâmico, e não percebia a posição dos colegas
da NATO. “O
paradoxo é que a decisão dos EUA e a ofensiva turca têm, em ambos os casos, um
mesmo resultado: o sacrifício dos nossos parceiros no terreno que se bateram
contra o Daesh — as Forças Democráticas da Síria (FDS).”
Agora, tal como em 2019, a Síria divide
os parceiros da NATO.
"Se
imaginarmos um cenário em que há uma agressão directa da Rússia contra um país
membro da NATO e se, porventura, não se actua em conformidade com o artigo 5.º,
então a NATO desaparece. Nem tem
razão de ser. A própria credibilidade dos EUA ruiria. Creio que não era só o
sistema de alianças na Europa, era o sistema global dos EUA que estaria em
causa. Obviamente, a Aliança Atlântica não teria condição nenhuma de sobrevivência."
Luís Tomé, director do Departamento de Relações Internacionais da Universidade
Autónoma de Lisboa: Estocolmo
e Helsínquia na NATO?
Todos
os caminhos têm ido dar ao “não” de Ancara
A
Suécia e a Finlândia bateram à porta da NATO, mas, para conseguirem entrar, os
30 membros que a compõem têm de dizer “sim” em uníssono. A Turquia, por causa da Síria, ou dos curdos
sírios, prepara-se para se colocar de braços abertos à porta da Aliança
Atlântica — não para receber os potenciais novos parceiros mas para
obstaculizar a entrada de qualquer um dos países. De Ancara, Erdogan já o
disse, só chegará um enorme “não” — ou um “nej”, “ei”, “numara”, consoante a
língua de quem o ler.
Para mudar de posição, a Turquia exige
que Suécia e Finlândia terminem com o que considera ser uma política
de acolhimento de organizações terroristas,
referindo-se a alguns grupos de militantes curdos. Vladimir
Putin, que começou
por dizer que era um erro os dois países juntarem-se à aliança, acabaria por
dizer que não tinha problemas com estes dois Estados em concreto, a não ser que a
NATO colocasse armas e bases militares naqueles territórios. Saberia, de
antemão, que a Turquia ia impedir o uso da política de porta aberta da Aliança
Atlântica? Só os dois presidentes saberão a resposta certa.
Quanto
à ofensiva na Síria, depois de prometer “limpar Tal Rifaat e Manbij de
terroristas”, Erdogan deixa um recado aos parceiros: “Vamos ver quem apoia as operações de segurança
legítimas da Turquia e quem tenta opor-se a elas.”
A posição de Washington é clara: “Iremos
opor-nos a qualquer escalada na Síria”, disse Anthony Blinken, secretário de Estado
norte-americano, durante uma conferência de imprensa conjunta com o
secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg.
Os
problemas da Turquia com aliados da NATO não terminam com a questão Síria. O governo da Grécia, em abril passado, decidiu não reatar as relações de
confiança com Ancara, como estava previsto, depois de denunciar 126 violações
do seu espaço aéreo, num único dia, por militares
turcos. A Turquia “mina a coesão da NATO num momento particularmente crítico na região”, defendeu,
em comunicado o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Grécia. O secretário-geral
da NATO foi avisado destas “novas provocações” da Turquia.
Por
tudo isto, entre analistas e comentadores internacionais
há cada vez que se levantam contra a Turquia e a lógica de mantê-la
na NATO. Não há,
no entanto, nenhuma forma simples e directa de expulsar um membro,
a não ser que ele queira sair pelo próprio pé, conforme previsto no artigo 13.º
— o que Erdogan dificilmente fará.
▲ Soldado norte-americano
durante o exercício Spring Storm, 2014. Estónia, Letónia, Lituânia, EUA, Reino
Unido, Polónia, Bélgica e Dinamarca participaram GETTY IMAGES
Europeus pouco
interessados em defender a Turquia
Se
depender do povo, e não do poder político, os europeus não irão correr em
auxílio da Turquia e poucos se importam em cumprir, neste caso, o artigo 5.º do
Tratado do Atlântico Norte. Uma sondagem recente, feita
em março (já depois da invasão russa da Ucrânia), mostra que Ancara está no fundo da tabela de países que os
europeus correriam a salvar. As
perguntas, feitas pela empresa YouGov, foram colocadas a britânicos, espanhóis,
franceses, italianos, alemães e polacos.
Nos
seis países da NATO, menos de metade da população inquirida concorda em cumprir
o artigo 5.º para defender a Turquia de uma ameaça militar. Os piores
resultados chegam da Alemanha e da França, onde apenas 22% dos inquiridos
consideram que o seu país deveria socorrer Ancara. Em Itália, há uma subida ligeira (24%) e o melhor
resultado é conseguido com as respostas dos espanhóis (40% favoráveis à
ajuda militar). Polónia e Grã-Bretanha (Irlanda do Norte não foi
incluída) empatam com 39% de respostas positivas a um eventual pedido de
ajuda.
O
oposto acontece com França. Neste
caso, em todos os seis membros da NATO, mais de metade da população acredita
que é dever do seu país ajudar os franceses ao abrigo do artigo 5.º. No
limite inferior surge a posição dos italianos, com 51% de respostas positivas.
Na Alemanha e na Polónia, 56% dos inquiridos defendem a ajuda à França, na
Grã-Bretanha 60%. E o valor mais alto chega de Espanha: 71% dos inquiridos
consideram que o seu país deveria ajudar o vizinho em caso de ataque.
Em
Itália, os inquiridos mostram muito pouca vontade de ver o artigo 5.º cumprido—
as respostas afirmativas são sempre menos de metade, excepto quando é a
França que está em risco. Mesmo assim, só 51% dos inquiridos ajudariam os
franceses. Na Alemanha, o cenário é semelhante. França é o país que mais
alemães aceitariam ajudar (56%), seguido da Polónia (51%),,ambos países com os
quais a Alemanha faz fronteira. Para todos os outros, é sempre menos de
metade dos inquiridos que concorda com a ativação do artigo 5.º, mesmo quando a
ajuda se destina aos Estados Unidos (43%).
Os Estados Unidos, aliás, mesmo sendo a
maior potência militar da NATO (ou talvez por isso), não têm solidariedade garantida
no caso de serem atacados. Da parte da Polónia,
há maior disponibilidade de ajuda (61%), seguindo-se uma velha aliada dos EUA,
a Grã-Bretanha (57%) e, depois, Espanha (54%). Em França, Itália e na Alemanha, menos de metade da
população ajudaria o parceiro atlântico:
49%, 43% e 42%, respetivamente.
Apesar
disso, a única vez em que o artigo 5.º foi invocado foi depois dos ataques
terroristas às Torres
Gémeas, em Nova
Iorque. Aconteceu um dia depois, a 12 de setembro de 2001, e estava em causa
uma agressão contra os Estados Unidos por um actor não estatal.
Em 2019 e em 2020, outra empresa de
estudos de mercado, a PEW Research, publicou os resultados da análise à imagem
que a população de alguns dos Estados-membros da NATO tem da Aliança Atlântica.
Também aqui a questão do artigo 5.º foi levantada.
Nos resultados de 2019, o país mais disponível para usar força militar para
ajudar um país da NATO envolvido num conflito grave com a Rússia eram os Países
Baixos, com 64% dos inquiridos a responderem “sim”. Os Estados Unidos
vinham logo atrás, com 60% de respostas afirmativas.
Em
sentido oposto, seguia a Bulgária. Só
12% dos inquiridos se mostraram a favor de cumprir o disposto no artigo 5.º,
caso fosse invocado. Itália e Grécia tiveram ambas 25% de respostas
positivas, a Eslováquia e a Turquia chegaram as duas aos 32%.
Canadá,
Reino Unido e Lituânia são os restantes países em que mais de metade dos
inquiridos concordou em ajudar outro membro da NATO atacado pela Rússia (56%,
55% e 51%, respetivamente). Alemanha e França? Os alemães só dão 34% de
respostas positivas, os franceses dão 41%.
Se o artigo 5.º for invocado,
deve ser a América a ajudar (na opinião dos europeus)
No estudo divulgado em 2020, há uma
pergunta que se acrescenta. Além de
querer saber se a população de alguns Estados-membros vê com bons olhos ajudar
outro país ao abrigo do artigo 5.º, perguntou-se também o que deveriam fazer os
Estados Unidos. Em todos os casos, as respostas “sim, os EUA devem ajudar”
foram superiores às “sim, o meu país deve ajudar”. E, em alguns países, a
diferença é grande.
Em
Itália, onde, tal como em 2019, só um quarto dos inquiridos eram favoráveis à
ideia de o seu país ajudar outro Estado em caso de ataque, 75% dos italianos
— ou seja, três vezes mais — defendiam que os Estados Unidos deviam ajudar
outros membros da NATO ameaçados pela Rússia. Na Grécia, a situação é quase
copiada a papel vegetal, com valores de 25% para a primeira pergunta e 65% para
a segunda.
Na Hungria e na República Checa a coerência é maior:
são muito baixos os valores de quem defende que o seu país ou os Estados Unidos
devem recorrer à força militar para ajudar um país da NATO atacado pelos
russos: entre os húngaros, as respostas são de 33% e 39%, respetivamente. Entre os checos, de 36% e
de 41%.
Diga o que disser o povo, os políticos
não podem ignorar o artigo 5.º
Voltemos
a Kaliningrado e ao hipotético ataque de
Moscovo a um dos países bálticos, membros da NATO. Poderiam os membros da Aliança ignorar os
desígnios do artigo 5.º, caso ele fosse invocado, ou teriam mesmo de ajudar o
parceiro em aflição?
“Se a NATO não o fizesse, desaparecia”, vaticina Luís Tomé. “Se imaginarmos um cenário em
que há um ataque, uma agressão directa, da Rússia contra um país que é membro
da NATO e não se actuar em conformidade com o artigo 5.º, então a NATO
desaparece.Nem tem razão de ser.”
A
própria credibilidade dos EUA ruiria, defende o professor da UAL, que acredita
que o embate iria além do sistema de alianças na Europa. “O sistema global dos EUA estaria em causa. Obviamente,
a Aliança Atlântica não teria condição nenhuma de sobrevivência.” Luís Tomé recorda que não existe uma aliança formal dos
EUA com Taiwan, que não é sequer reconhecido como
Estado, mas apenas uma lei interna, o Taiwan Relations Act. Apesar disso, “Biden
veio dizer que, no caso de uma agressão, os EUA actuarão militarmente”.
"O grande problema dos tratados e da lei internacional
é que, sendo claro do ponto de vista formal que é essa a obrigação, não é
garantido que os Estados cumpram. E sabemos que os Estados violam os tratados.
Aliás, a Rússia assinou um tratado em 1994 a garantir a integridade territorial
da Ucrânia, e violou-o por duas vezes, em 2014 e agora. No fundo, é sempre uma questão de prova de confiança.
Há aqui uma convergência de interesses, há uma durabilidade desta aliança, que
ajudam a dar credibilidade a essa garantia. Mas não podemos ter nunca certezas
absolutas.
Bruno
Cardoso Reis, historiador, doutorado em estudos de guerra: No caso da NATO, explica, o artigo 5.º foi criado exactamente para dissuadir uma agressão
contra um aliado europeu e não se pode colocar outra hipótese que não seja
cumpri-lo.
“O
grande problema dos tratados e da lei internacional é que, sendo claro do ponto
de vista formal que é essa a obrigação, não é garantido que os Estados cumpram.
E sabemos que os Estados
violam os tratados”, diz, por
seu turno, Bruno Cardoso Reis.
O
historiador aponta o exemplo da invasão russa da Ucrânia a 24 de fevereiro. “A Rússia
assinou um tratado em 1994, a garantir a integridade territorial da Ucrânia, e
violou-o por duas vezes, em 2014 e agora. No
fundo, é sempre uma questão de prova de confiança. Há aqui uma convergência de
interesses, há uma durabilidade da Aliança Atlântica, que ajudam a dar
credibilidade a essa garantia. Mas não podemos nunca ter certezas absolutas.”
No
entanto, frisa que a estabilidade
da NATO seria muito abalada se ela falhasse em ajudar um dos aliados. “Agora, a
alternativa não é entre não fazer nada e a Terceira Guerra Mundial. A própria doutrina da NATO há muitas décadas que
passa por dar uma resposta graduada, proporcional ao ataque que for feito.
Haver aqui algum tipo de resposta não implicava estar a usar todo o tipo de armamento
contra a Rússia e partir para uma Terceira Guerra Mundial — que, provavelmente,
seria nuclear”, frisa Bruno Cardoso Reis.
Ou
seja, há alternativas à guerra total. “Aquilo que a NATO transmite, até publicamente,
também tem uma função de aviso aos potenciais adversários ou inimigos: ‘Atenção, nós não deixaremos de dar uma resposta’, mas
será proporcional ao ataque feito. Essa é um bocadinho a regra da base de
dissuasão”, sublinha o
historiador.
Já
o artigo 5.º tem poder de atracção, explica Luís Tomé, principalmente num
momento como o actual. “No
contexto da guerra na Ucrânia, mais países se sentem directamente ameaçados
pela Rússia e mais sentem a necessidade de estar protegidos pela garantia do
artigo 5.º. Até alguns, que eram neutrais, agora procuram essa mesma garantia
porque se sentem ameaçados pela Rússia.”
É o caso da Suécia e da Finlândia.
▲Soldados
britânicos num exercício da Aliança Atlântica nos anos 1990 GETTY IMAGES
O que dizem os líderes? Tratado é
para cumprir
A 24 de março, quando a guerra na
Ucrânia somava 29 dias, os 30 signatários do Tratado do Atlântico Norte tomaram
uma posição comum. Num longo comunicado sobre a invasão russa, em que condenavam os actos de
Vladimir Putin, referiam-se ao
artigo 5.º: “Continuaremos a tomar todos os passos necessários para
proteger e defender a segurança das populações dos nossos aliados e cada
centímetro do território aliado. O nosso compromisso com o artigo 5.º do
Tratado de Washington é couraçado.”
O
primeiro a lançar o
aviso à Rússia
foi Joe Biden, dias antes de a guerra começar, e, desde então, já
repetiu várias vezes que os aliados irão defender cada pedaço do território da
NATO. Uma dessas alusões aconteceu durante uma visita à Polónia, a 26 de março, quando, dirigindo-se a Putin, o
Presidente norte-americano afirmou: não
pense sequer em mover-se “um único centímetro” no território dos aliados. A consequência? “Temos
uma obrigação sagrada sob o artigo 5.º de defender cada centímetro do
território da NATO com toda a força do nosso poder colectivo.”
Também
em março, numa entrevista à LBC,
Sajid Javid, ministro da Saúde do governo de Boris
Johnson, foi claro
sobre a posição
britânica: “Se uma simples biqueira russa tocar em território da
NATO, haverá guerra com a NATO.”
Mais
recentemente, a 7 de junho,
foi o chanceler
alemão quem se
referiu ao artigo que é uma das pedras basilares da Aliança. “Em caso de ataque, defenderemos todos os centímetros
do território da NATO”, disse Scholz.
Muitos
criticaram quando Biden assumiu que os EUA e a NATO não iam fazer nada porque a
Ucrânia não era membro da NATO, mas ele sempre disse que responderia a qualquer
agressão, a qualquer centímetro que a Rússia ousasse atacar países membros da
NATO. A linha
vermelha ficou traçada. É por isso, que
temos países neutrais que querem entrar na NATO. Consideram credível que, se houver uma agressão
contra eles, a NATO responderá. Desse ponto de vista, não pode haver qualquer
dúvida e, hoje, há menos dúvidas de que sim, a NATO reagiria, do que quando a
administração Trump estava no pode. Luís
Tomé, director do Departamento de Relações Internacionais da Universidade
Autónoma de Lisboa
Por tudo isto, Bruno Cardoso Reis e Luís Tomé
acreditam que, no momento actual, a Aliança Atlântica irá cumprir os seu compromissos,
se chegarmos a isso. “Havendo um ataque a um país da NATO, haverá uma retaliação solidária,
na medida das possibilidades, claro, dos outros Estados-membros. E é isso
também que ajuda a explicar porque é que a Rússia, apesar de todas as ameaças e
da retórica, teve cuidado para evitar algum tipo de ataque a um país da NATO,
apesar de haver um conflito activo junto à fronteira de vários países da NATO e
de se saber que esses países estão a ter um papel muito importante no apoio ao
esforço de guerra da Ucrânia”, diz Bruno Cardoso Reis.
Luís Tomé lembra que muitos criticaram Biden por ter assumido
que os EUA e a NATO não iam fazer nada uma vez que a Ucrânia não era membro da
NATO. No entanto, sempre disse que responderia a qualquer centímetro que a
Rússia ousasse atacar em países membros da NATO. “A linha vermelha ficou
traçada. É por isso que temos países neutrais que querem entrar na NATO.
Consideram credível que, se houver uma agressão contra eles, a NATO responderá.
Desse ponto de vista, não pode haver qualquer dúvida e, hoje, há menos dúvidas
de que sim, a NATO reagiria, do que quando a administração Trump estava no
poder.”
A ironia final:
Putin fez mais pela coesão da NATO do que qualquer aliado
Para que o artigo 5.º fosse invocado, testando a união da NATO, era
preciso que, primeiro, um dos aliados fosse atacado. Neste momento, o agressor
mais provável é a Rússia. Mas seria Vladimir Putin capaz de atacar militarmente
a Aliança?
“Raciocinamos na base de que a dissuasão nuclear, que funcionou durante a
Guerra Fria, é suficiente para actores credíveis não arriscarem, ou sequer
ponderarem, um cálculo errado que provoque o Holocausto”, defende Luís Tomé. “É evidente que russos, chineses, americanos e outros sabem que, começando
um conflito militar directo entre Rússia/NATO, há o risco de escalar para todas
as capacidades militares que têm. Isso significa o risco, não apenas de se
destruírem mutuamente e à Europa, mas ao próprio planeta. Os EUA e a Rússia juntos têm capacidade para
destruir o planeta não uma vez, mas 15 ou 16 vezes.”
É por isso que as mensagens dos EUA e da NATO têm sido
muito fortes. Se Putin estiver convencido de que qualquer agressão que faça contra um
país da Aliança irá dar origem a uma retaliação, correndo o risco de a Rússia
ser destruída, mesmo que possa destruir o adversário, Luís Tomé acredita que
o Presidente russo não o fará. “Da mesma forma, Putin tem sido muito enfático em dizer que qualquer envolvimento para lá
daquilo que é admissível por parte dos EUA e da NATO na Ucrânia poderá levar a
uma retaliação da Rússia, com todos os efeitos negativos que estão
em causa.”
Na opinião do professor catedrático, é por isso que,
quando os EUA e o Reino Unido entregam à Ucrânia sistemas de lançamento
múltiplo de rockets, têm o cuidado de dizer que o alcance máximo é de 80
quilómetros e que o acordo é que esse armamento não seja usado contra o
território da Federação Russa. “Exactamente para não dar pretexto a Putin para
utilizar isso para escalar a guerra contra territórios da NATO onde estão a ser
colocados estes dispositivos para depois entrar na Ucrânia”, concretiza.
▲Exercício da NATO na Polónia,
2021. Caças F-16 pilotados por militares turcos ANADOLU AGENCY VIA GETTY IMAGES
O momento actual
não é fácil.
“A situação é bastante sensível e arriscada. É
preciso muita racionalidade para evitar mal entendidos que podem ser uma
catástrofe”, diz Luís Tomé, que acredita que há um risco real de avançarmos para uma guerra mundial se houver uma
escalada na Ucrânia. Essa escalada poderá acontecer, na sua perspetiva, se a Rússia
entender como acto de guerra a entrega de certo tipo de armamento na Ucrânia
que seja usado contra o território da Federação Russa.
“Como ainda estamos neste
patamar de escalada, não podemos pôr de parte o cenário de esta guerra, que por
enquanto está limitada ao território da Ucrânia, se alargar a outras áreas. Ainda por cima, há um
território russo separado do resto da Rússia geograficamente, Kaliningrado. Um incidente, ou acto
propositado, pode fazer deflagrar reacções, porque neste momento já ninguém tem
margem para recuar. Se um caça de um país NATO
abater um avião russo porque violou o espaço aéreo de um país aliado, como fez a Turquia em 2015 quando abateu
aquele avião da Rússia, acho que dificilmente escaparíamos à escalada da
guerra”, detalha Luís Tomé.
O contrário também é verdade. A Rússia, sentindo-se acossada, pode sentir-se tentada a lançar mísseis
estratégicos para certos paióis que estejam na Polónia e a NATO não pode deixar
de responder, defende o professor. “Não tem margem para recuar. Da mesma forma que
Putin não pode deixar de responder a algo que seja considerado mais hostil,
porque também não pode perder a face. Como não há margem para recuar, estamos
no limite dos riscos. É preciso muita racionalidade e tacto para não dar
pretexto.”
Esse, acredita
Luís Tomé, é um dos motivos pelo qual a Ucrânia ainda não declarou guerra à
Rússia, o que poderia levar Putin a fazer uma mobilização geral de tropas e a
usar certo tipo de equipamentos que ainda não usou.
No final, a
estratégia do Presidente russo equivaleu a um tiro a sair pela culatra. “Acho que essa é uma das ironias deste conflito. Putin tinha como grande objectivo
enfraquecer, demonstrar a impotência, intensificar as divisões no seio da NATO,
travar aquilo que ele chama a expansão da NATO e é exactamente o inverso que
acontece. A NATO nunca esteve tão coesa, tirando aqueles picos de crise durante o
período da Guerra Fria”, defende Bruno Cardoso Reis — apesar de continuarem a
existir divergências entre os aliados, que sempre existiram e que vão continuar
a existir.
“Há aqui uma enorme coesão, e o
resultado mais provável, no curto prazo, é que haja um novo alargamento da
NATO. Na Suécia e na Finlândia, países historicamente neutros, a opinião
pública mudou completamente e, depois da invasão da Ucrânia, passou a achar
mais vantajoso e mais seguro, em vez de confiar na neutralidade e nas garantias
de segurança de Moscovo, serem membros da NATO e beneficiarem da garantia de
segurança do artigo 5.º”, conclui Bruno
Cardoso Reis.
GUERRA NA UCRÂNIA
UCRÂNIA EUROPA MUNDO
COMENTÁRIOS
Xico Nhoca: Eu só conheço a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte). Agradeço a utilização da lingua Portuguesa na comunicação social. Cabral Paula: Já vai tarde! bento guerra: A Nato tem sido uma cobertura para as políticas hegemónicas, por vezes agressivas, dos States André Mesquita > Manuel Mestre: O propósito da NATO sempre foi proteger a Europa do avanço do comunismo. Os comunas odeiam os EUA por dois motivos: a NATO e o plano Marshall, que ajudou a reconstruir a Europa e a livrar um continente falido da influência soviética. Ah Pois: O propósito da NATO sempre foi proteger os EUA criando uma barreira à distância, e dividindo despesas com outros. Mas tudo assenta no princípio de ser uma guerra convencional. Ou seja, a Rússia atacaria a Europa, os EUA folgavam a ver de longe, fingiam que estavam a fazer um esforço enorme enviando tropas e material e seria uma enorme vitória à maneira da 2ª Guerra Mundial. A Rússia nunca iria atacar os EUA no seu própriao país, em termos de guerra convencional, está muito distante e é um país enorme. Esta é a perspectiva dos EUA, pelo menos a única que faz sentido. A perspectiva da Rússia é logicamente diferente. A Rússia vê os EUA como o verdadeiro inimigo e os paises NATO na Europa como meros lacaios sem vontade própria. A Rússia não é estupida para lançar uma guerra convencional pela Europa fora. Isso não só nunca lhes passou pela cabeça, como seria cair na esparrela que os EUA montaram. A Rússia disse claramente, mais claro não podia ser (e os professores de faculdade e comentadores televisivos podem continuar a receber as suas avenças para dizer o contrário), que o envolvimento da NATO implicará a utilização do seu forte armamento nuclear. Isso muito logicamente levará à destruição do planeta e de toda a humanidade, incluindo a vida dos senhores escribas e papagaios televisivos. Conta calada:O Artigo 5º não existe, desde que os beligerantes sejam ambos membros da Nato. Ver caso Grécia verso Turquia. António Silva: Desde de 1999 que nato deixou de ser uma org. defensiva. Manuel Mestre: Por curiosidade fui ler esse famoso artigo 5º: As Partes concordam em que um ataque armado contra uma ou várias delas na Europa ou na América do Norte será considerado um ataque a todas, e, consequentemente, concordam em que, se um tal ataque armado se verificar, cada uma, no exercício do direito de legítima defesa, individual ou colectiva, reconhecido pelo artigo 51.° da Carta das Nações Unidas, prestará assistência à Parte ou Partes assim atacadas, praticando sem demora, individualmente e de acordo com a acção que considerar necessária, inclusive o emprego da força armada, para restaurar e garantir a segurança na região do Atlântico Norte. Qualquer ataque armado desta natureza e todas as providências tomadas em consequência desse ataque serão imediatamente comunicados ao
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