Ele que escreveu
«Bucólica»
«A vida é feita
de nadas;
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;
De casas de moradia
Caiadas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;
De poeira;
De ver esta maravilha:
Meu Pai a erguer uma videira
Como uma Mãe que faz a trança à filha.» TORGA, Diário,
1941.
…um poema de amor, de construção, de
apego a tudo o que traduz amor e vida, nas coisas mais simples, em tudo,
afinal, de que a vida é reflexo … será que Torga aprovaria uma lei de
despenalização de um crime cometido em função da libertação criminal comodista
e fria de quem se acha com direito a só usufruir da vida o que esta lhe pode
oferecer de ameno e positivo? Sim, esses que desejam a lei, não se
sensibilizam, é certo, com a frugalidade do descritivo de Torga, ambiciosos de
outro tipo de diversões pessoais mais esplendorosas ou mais pacíficas.
(No caso dos velhos, ou dos muito
sofredores, todavia, talvez estes se não importem de aligeirar a vida daqueles
a quem a deram, afinal… talvez se não importem assim tanto com a chegada da
hora, quando a sentem demasiado pesada…)
Mas a crónica de Jaime Nogueira Pinto é valiosa,
de argumentação e sátira. O poema de Torga vai para ele, de encanto por ser português,
e para Maria José Nogueira Pinto, que tanto
admirei, na sua qualidade humana, a merecer continuidade, a que o destino não
correspondeu. Talvez o seu exemplo servisse a tantos desses instigadores
eutanásicos… Mas ponho isso em dúvida, é claro, já não há ocasião para se
apreciarem os exemplos, a menos que pertençam à horda dos da universalidade
ruidosa, habitual… A retórica nos funerais, quando a há, costuma ser de
sofisticação, para espectáculo, logo esquecido…
Mas ainda assim, pergunto-me por que
motivo a tal lei não é referendada… Terão os que a propõem suspeitas de que não
seria aprovada?
À falta de vida boa, a boa morte (cortesia do Estado)
Nos 90 anos do Admirável Mundo Novo de
Aldous Huxley aconselharia ler a passagem sobre a eutanásia. Vale a pena
contemplar o requintado horror – e imaginar a sórdida realidade em que pode
traduzir-se.
JAIME NOGUEIRA
PINTO Colunista do Observador
OBSERVADOR, 18 jun
2022, 05:16
A aprovação da Lei da Eutanásia, à
socapa, nas vésperas de um
fim-de-semana grande, é bem a imagem do país nesta Terceira República, com a
sua anestesiada e anestesiante classe política e a sua acomodada e distractiva
comunicação social, oscilante entre a histeria em prol das “boas causas” e a
ocultação das más notícias – que passam orwellianamente a factos que
nunca ocorreram, para evitar que promovam as “más causas” e atrasem a
construção do mundo de tolerância e inclusão que nos aguarda algures para lá do
arco-íris.
Objectividade
mediática
A
detenção pela polícia norte-americana de “um homem armado, com uma pistola, uma
navalha e outras armas” (estou a
citar do New York Times) foi um dos tais factos que “nunca ocorreram” –
e que, por isso, não mereceu aqui qualquer destaque ou menção. E, no entanto,
um homem, John
Roske, de 26 anos, foi
detido junto à casa do juiz Brett Kavanaugh, um dos juízes conservadores do
Supremo Tribunal dos Estados Unidos, tendo depois confessado à polícia que,
chocado com a informação de que o Supremo poderia reverter a legislação sobre o
aborto, quisera matar o Juiz e depois suicidar-se.
Em
Março de 2020, o líder da bancada democrata no Senado, Chuck Schumer, senador
por Nova Iorque, ameaçara num comício os juízes Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh
pelas suas posições anti-aborto:“I
want to tell you Gorsuch. I want to tell you Kavanaugh. You have released the
whirlwind and you will pay the price.” Pelos vistos foi ouvido. Só nós é que
não ouvimos nada.
É
claro que nada disto importa porque nada disto aconteceu – nem as ameaças do
Senador, nem o atentado ao Juiz –, daí o silêncio. Só teria acontecido, e aí
sim com vasto e vistoso vendaval informativo, se um senador conservador (ou
seja, “de extrema-direita”) tivesse ameaçado juízes democráticos (ou seja,
“humanistas, isentos e razoáveis”) e um paranóico (ou seja, um “agente da
direita radical”) se tivesse deslocado da Califórnia para a Costa Leste munido
de um pequeno arsenal para executar o visado. Nada de novo e nada de
especificamente nacional, a não ser no seguidismo, já que, neste como
noutros aspectos, os media portugueses se limitaram a imitar as grandes cadeias
televisivas norte-americanas – a ABC, NBC, CBS e a CNN – no silêncio que
guardaram sobre o assunto. Silêncio que só a FOX quebrou.
Bons exemplos
Os
nazis guiavam-se pela Ciência e cultivavam a higiene racial e social para que a
Volksgemeinschaft, a comunidade popular, não sofresse nem fosse importunada por
vidas incómodas, indignas, humilhantes e extremamente dispendiosas e
trabalhosas. Era de
melhorar a raça humana e de progresso social e científico que se tratava.
A
ideia tinha sido já sido desenvolvida pelo inglês Francis Galton.
Galton vinha de uma família de banqueiros, era primo de Darwin e frequentara o
King’s College e Cambridge. Interessando-se pelo estudo da hereditariedade e
inspirado pela teoria da selecção natural do primo Charles, pensara em
formas científicas de melhorar ou de apurar a raça humana, no caso, a inglesa,
evitando cruzamentos indesejáveis e promovendo os desejáveis.
Nas
sociedades anglo-saxónicas da segunda metade do século XIX, princípios do
século XX, a Eugenia – o modo de
evitar a reprodução dos “inferiores” e estimular a reprodução dos “superiores” – encontrava grande aceitação. Até Winston Churchill a endossava. A detenção dos “mentally inadequate” e a
esterilização dos “unfit”, para que não perpetuassem tendências doentias ou
criminais, era considerada uma medida adequada para proteger a sociedade.
Em 1908, nomeou-se
uma Royal Commission on the Care and Control of the Feeble-Minded para tratar
disso. Os “débeis mentais”, os “pobres de espírito”, os “deploráveis” podiam
esperar alguma coisa do Reino dos Céus, mas muito pouco do Reino Unido e dos
seus governantes. Nos Estados Unidos, as teorias de Galton também tinham
despertado grande entusiasmo, com o Estado de Indiana, em 1907, a sancionar a
esterilização dos “social
misfits”. Em 1926, vinte e três Estados da União tinham aprovado
leis de esterilização compulsiva dos “inaptos”. Mas, enfim, eram oligarquias civilizadas, com o
seu paternalismo liberal e a sua divisão de poderes e o processo podia ser
devidamente enquadrado e protegido por comissões e excepções.
Mas eis que as
consciências se vão anestesiando e as ideias se vão disseminando e extremando e
Hitler se entusiasma com a Eugenia. Além disso, em Weimar, com os
problemas sociais a agudizarem-se a partir da crise de 29, já se começara a
encorajar a esterilização dos socialmente inaptos.
Em
1929 constitui-se a Nationalsozialistischer Deutsche Ärztebund (a Liga dos
Médicos Nacionais Socialistas) e em Abril de 1933, com três meses de Hitler no
poder, os médicos judeus do sector público hospitalar eram proibidos de
exercer a profissão. Em 14 de Julho de 1933 era aprovada uma lei que
ordenava a esterilização compulsiva dos portadores de uma série de doenças
hereditárias. Os Tribunais de Saúde examinavam os pacientes e decidiam. Esses tribunais tinham três juízes – dois médicos e um
funcionário do partido, “especialista” em doenças hereditárias e em Eugenia. Nos seis anos que precederam a guerra, 300 mil
criaturas foram assim esterilizadas.
Se a Eugenia tratava de estimular
medicamente a “selecção natural” dos “bem-nascidos”, a Eutanásia tratava de
identificar os candidatos a uma “boa-morte”: os que,
não tendo sido bafejados à nascença com bons genes ou com vidas dignas e
felizes, teriam o dever de morrer, para atenuar o sofrimento social e para pôr
fim à própria miséria, impedindo que pesasse sobre os demais e se multiplicasse. Também nesta
matéria o regime nacional-socialista andou depressa. Havia, como há sempre, uns
especialistas e juristas de serviço para abençoar essas boas práticas. O livro Die Freigabe der Vernichtung Lebensunwerten
Lebens (Aprovando a destruição da vida que não vale a pena ser vivida), do
jurista Karl Binding e do psiquiatra Alfred Hoche, trouxe a base teórica e
ética para que se
instituísse, em boa consciência, o direito de matar ou de ajudar a morrer os
portadores de “vidas sem valor”.
A argumentação era do mais puro
darwinismo social: para bem de todos, a sociedade não podia nem devia sustentar
os seus “desgraçados” – os velhos, os doentes, os aleijados, os pobres de todos
os Evangelhos. Dar-lhes uma “boa-morte” era a melhor solução.
Não é minha intenção fazer aqui uma reductio
ad Hitlerum dos partidários da Eutanásia. Admito
sempre que os meus adversários ou inimigos políticos tenham as suas razões e
valores, contrários ou diferentes dos meus mas que, na sua coerência e lógica,
sejam admissíveis e certos para eles. Rejeito,
quase epidermicamente, o maniqueísmo ideológico daqueles para quem os que não
pensam da mesma forma não passam de miseráveis, indignos de respeito e de
convivência democrática; mas
parece-me útil e conveniente lembrar a génese, os caminhos e os
reveses das ideias – ou pelo menos não os esquecer.
Pioneiros
“civilizacionais”
Independentemente
de questões de princípio, uma das coisas que devia ter suscitado alguma
reflexão a uma classe política e mediática secularmente ansiosa por seguir “as
nações civilizadas” seria o facto de apenas sete países – dos quais quatro
europeus, a Suíça, a
Holanda, a Bélgica e a Espanha – permitirem a Eutanásia. Não foi o caso. Ainda que não houvesse qualquer
pressão social, tudo foi feito como que à pressão, em passo acelerado e com
caracter de urgência. Porquê? Talvez porque, para os nossos novos condes
de Abranhos e conselheiros Acácios, o acesso rápido à “civilização”, ao
“progresso” e à “modernidade” já não passe tanto por tentar copiar as “nações
civilizadas” mas por tentar ultrapassá-las, mediante a célere aplicação
de uma agenda legislativa radical avançada capaz de conferir aos legisladores
um “pioneirismo civilizacional” imediato. Um pioneirismo que não se compadece com auscultações,
reflexões ou pareceres contrários de especialistas e peritos.
Assim,
num país pobre e que este regime não enriqueceu, num país em que, em
todas as classes sociais, os mais velhos, os mais doentes, os que mais
sofrem, tendem a achar que o seu tempo já passou e que são um peso para as
famílias e para a sociedade, abre-se uma possibilidade legislativa
de morte a pedido. Dá-se
essa liberdade aos cidadãos em sofrimento, abre-se-lhes essa escolha,
propõe-se-lhes esse caminho. Para seu bem e para o bem de todos. E com a
introdução de semelhante proposta, a resposta ao sofrimento pessoal, ao
sofrimento intolerável, deixa de centrar-se na mobilização de recursos para a
mitigação da dor, na oferta de cuidados médicos e de apoios sociais, no
incentivo estatal, moral e financeiro ao esforço comunitário, solidário e
familiar para tratar, acompanhar e valorizar a vida dos que mais sofrem.
Podem
não se selecionar as vidas que já não valem a pena ser vividas, como outrora
no Terceiro Reich, mas fica a sugestão – para que quem sofre, para que quem
se sente um peso insuportável para si mesmo e para os outros, a equacione com
toda a liberdade. E quem, livremente e em consciência, decidir aceitar a
sugestão, pode então contar com o Estado; um Estado que pouco faz para lhe
proporcionar uma vida boa e digna mas que lhe passa agora a oferecer uma boa
morte, uma morte digna e rápida, uma morte moderna, higienicamente administrada
em ambiente hospitalar.
No
nosso Parlamento, dominado por “forças de esquerda” que se dizem “humanistas”,
esta conquista da esquerda unida (com a honrosa excepção do PCP) foi anunciada
e aplaudida como uma conquista
civilizacional.
Nos
90 anos da publicação do Admirável
Mundo Novo de Aldous Huxley, aconselharia
a leitura da passagem sobre a eutanásia. O
admirável mundo novo de Huxley é mesmo admirável, virado para o hedonismo e
para a felicidade; um mundo sem guerra, sem violência, sem crime, sem família;
um mundo onde o sexo é livre e as crianças nascem em série industrial. No World State, para a felicidade ser perfeita, não
há más notícias e o sofrimento não pode existir, por isso não devem ser
permitidos os “infelizes” – os velhos, os doentes, os que já não são úteis à
sociedade. A Eutanásia está garantida e oferece-se em belas e luxuosas
clínicas, com música de fundo e écrans de televisão. Vale a pena ler para
contemplar o requintado horror – e imaginar a sórdida realidade em que pode traduzir-se.
É,
por isso, importante atentar na forma
como votaram a lei da Eutanásia muitos dos que aqui também legislam sobre a
vida, a morte, a família e os valores à volta delas – que, a par das
questões das fronteiras, da unidade, da identidade e da soberania nacional, são
os valores que hoje mais contam e dividem. Para muitos, foi como se de uma
minudência económica ou fiscal ou de um “progresso civilizacional” corriqueiro,
só embargado por retrógrados e reaccionários, se tratasse.
A
favor, totalmente a favor, votaram o Bloco
de Esquerda e a Iniciativa Liberal,
confirmando o parecer de alguns de que, tirando a Economia (que depende mais do
BCE, da Comissão de Bruxelas e da guerra da Ucrânia que dos partidos locais),
partilham muitos dos valores e ideais disponíveis no hipermercado global. Contra, totalmente contra, votaram o Chega e o PCP
que, curiosamente, aqui convergem
na defesa da dignidade da vida e na recusa em abrir portas social e
civilizacionalmente perigosas (para grande satisfação de alguns “centristas”
que, vendo-se aqui longe dos “extremos”, se acharam justificados na
normalização da sua radicalidade). A grande maioria do partido do poder, o PS,
votou a favor, com sete honrosas excepções; a grande maioria do PSD votou
contra, com meia dúzia de excepções.
Os
eleitores que também se preocupam com o rumo das coisas no que é
verdadeiramente importante, deverão, para o futuro, ter presente esta votação.
COMENTÁRIOS:
Rui Lima: Fiquei
de olhos nesta frase .“ num país pobre e que este regime não enriqueceu “Acima
de tudo pobre nos valores . Mas para ter valores tem de haver quem os ensine. ‘Há
quem resista contrariando os ventos do tempo. (…) S Belo: Excelente, como sempre. Coronavirus corona: Clap clap clap. Excelente texto. Devia ser lido
em todas as escolas, para que as crianças vissem como a história rima. Para que
possam ver, através do passado, para onde está a ser conduzido o futuro. Vou deixar aqui um excerto de um livro para que fechem
os olhos e imaginem quem usaria este tipo de argumentos na nossa AR "Seria
muito mais nobre que ambas as igrejas cristãs, em vez de importunarem os povos
autóctones de África com missões que estes não desejam nem compreendem,
ensinassem aos europeus, com gestos bondosos, mas com toda seriedade, que é
agradável a Deus que os pais não sadios tenham compaixão das pobres criancinhas
sadias e que evitem trazer ao mundo filhos que só trazem infelicidade para si e
para os outros." (Adolf Hitler num momento ternurento em Mein Kampf, p.
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