quinta-feira, 9 de junho de 2022

O silêncio é de ouro


E a palavra de prata, pelo menos em casos pontuais. Mas a palavra escrita de Antero, conforta. Adapta-nos. Para mais com a protecção da eutanásia, em vias de prática festiva.

Deixá-la ir, a ave, a quem roubaram
Ninho e filhos e tudo, sem piedade...
Que a leve o ar sem fim da soledade
Onde as asas partidas a levaram...

Deixá-la ir, a vela, que arrojaram
Os tufões pelo mar, na escuridade
Quando a noite surgiu da imensidade,
Quando os ventos do sul se levantaram...

Deixá-la ir, a alma lastimosa,
Que perdeu fé e paz e confiança,
À morte queda, à morte silenciosa...

Deixá-la ir, a nota desprendida
Dum canto extremo... e a última esperança...
E a vida... e o amor... deixá-la ir, a vida
        
Antero de Quental

 

Porque ficamos calados?

O #vaificartudobem foi um mito que o governo explorou à exaustão, para ocultar os seus erros na gestão da pandemia. Mas há um escrutínio por fazer, verdades por apurar e responsabilidades por atribuir

ALEXANDRE HOMEM CRISTO

OBSERVADOR, 09 JUN 2022, 00:211

Os partidos portugueses são viciados em mitos, que instalam no debate público para enviesar a nossa percepção da realidade. Não é de agora. Por exemplo, se há talento que se reconhece a José Sócrates, era precisamente o de manipular os factos para os encaixar em histórias virtuais de sucesso e, posteriormente, desresponsabilizar-se quando tudo desmoronou. Ora, uma das responsabilidades do jornalismo ou de quem comenta a actualidade assenta precisamente no contrariar desses mitos e no recolocar dos factos na linha da frente.

Um dos mitos que vigora desde há dois anos é este: o governo fez uma boa gestão da pandemia. Acontece que isto não é verdade. Não é verdade na Educação, como já descrevi num artigo anterior. Não é verdade na Cultura, onde os agentes culturais ficaram à mercê da solidariedade entre pares e onde o Estado fracassou nos eventos-piloto. Não é verdade na economia, onde a recuperação será lenta e verá Portugal a afundar-se na cauda europeia. E, claro, não é verdade na Saúde, onde a degradação dos serviços públicos é indesmentível e os indicadores de excesso de mortalidade comprovam os erros nas estratégias adoptadas nos últimos dois anos.

A DGS reconhece-o. Em 2020, identificaram-se seis picos de mortalidade, sendo que a Covid-19 apenas explica directamente dois. Isto significa que, em 2020, a pandemia teve um impacto indirecto muito significativo, seja porque houve doentes que não tiveram acesso a cuidados de saúde por incapacidade de resposta dos serviços, seja porque o medo instalado afastou muitos utentes dos hospitais, seja porque os confinamentos geraram mais complicações e menos diagnósticos. No total, em 2020, houve um aumento de 14% da mortalidade, dos quais a Covid-19 apenas explica directamente 5,9 p.p. — menos de metade. Traduzindo: milhares de portugueses morreram porque o  combate à Covid-19” interferiu com os seus cuidados médicos.

Onde estão as análises a 2021? Ainda não estão em lado nenhum, pois a DGS só agora lançou a sua análise aos dados de 2020 — um ano e meio depois, o que é incompreensível. Infelizmente, a expectativa para 2021 não é melhor. Aliás, o efeito prolongado da ausência de cuidados médicos resultará numa onda de óbitos causados por diagnósticos tardios, tratamentos adiados ou acompanhamentos inexistentes. E não é por falta de alertas: desde 2020, dezenas de especialistas têm assinalado as consequências nefastas e o preço a pagar por se orientar os serviços de saúde para a Covid-19.

Quererá o país discutir estes números, debater estas opções, escrutinar o seu governo? Talvez não queira. Em Janeiro passado, os partidos rejeitaram incluir balanços da gestão da pandemia na campanha eleitoral. E, apesar de tudo isto, Marta Temido é a ministra com maiores índices de popularidade no governo. O #vaificartudobem passou de mantra para resignação e mitoum mito que o governo explorou à exaustão, para em grande medida ocultar os seus erros na gestão da pandemia. Não, não vai ficar tudo bem. Os erros existiram, tiveram consequências e merecem ser discutidos. Há um escrutínio por fazer, verdades por apurar e responsabilidades por atribuir. Vamos mesmo ficar calados?

MITOS  SOCIEDADE  MORTALIDADE  PANDEMIA  SAÚDE

COMENTÁRIOS:

Américo Silva: Pois, também podia perguntar porque falou demais, a imprensa esteve na vanguarda da histeria com o covid, e já agora apontar o país ou sociedade modelo de gestão da pandemia. Morreu Pinto Monteiro sem ter sido confrontado com a vileza do seu comportamento, ainda bem por ele, mal pela sociedade. Pelo menos Rendeiro morreu face a face com o que produziu, este escapou-se subtilmente.                 Carlos Silva: Concordo em parte. Não haja dúvidas que em certas "cenas", estar calado é ser poeta !            Antónia Cadavez: Está muito bem a exposição dos factos que aqui faz. Não me parece contudo que a gravidade da matéria requeira somente discussão. Isto é matéria sim, mas é para um inquérito de natureza judicial, visando apurar responsabilidades. Tanto mais se à matéria a apurar se juntar, como indispensável, o atropelo aos direitos fundamentais e o abuso grotesco sobre as pessoas. Julgo mesmo que em democracias civilizadas tal já se está ou irá passar.

 

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