Talvez não venha ao caso, mas, para além
de uma pintura toda tendente a recriar um mundo de boçalidade e fealdade que
sobretudo a inspira, como meio de mostrar a sua vertente trocista, que me
parece fútil e pouco séria, lembro apenas, como confirmação desse sentimento de
repulsa, a atitude apatetada de Paula Rego, quando lhe foi entregue a última
medalha, o seu ar de falso deslumbramento - ante as palavras da jovem que lha
entregou - ciente da insignificância do facto, mas fingindo um ar de
encantamento traquina, de falsa alegria. Traquinice é, de resto, a palavra que
me surge na definição dos seus bonecos e essa designação distancia-se bem de
tantos outros artistas que souberam definir as tragédias do mundo. O próprio
quadro de Degas, “Les Repasseuses”, tema simples, popular, marca um mundo de
crítica social, na reprodução de duas figuras – uma passando a ferro – a fundo
- outra com uma garrafa de vinho na mão – reveladoras do fatigante de um
trabalho de escravatura feminina – que merece não a troça mas a piedade do
pintor como do observador.
A junção destes vários factores – uma personalidade
apatetada, uma pintura atrevida – fazem-me concordar com a crítica do P.
Gonçalo P. de Almada.
Paula Rego e O Retrato de Dorian Gray
Todos os quadros são, de algum modo,
um autorretrato: o pintor, quando se expressa na tela, também nela retrata o
seu estado de alma.
P. GONÇALO PORTOCARRERO
DE ALMADA: Colunista
OBSERVADOR, 25 jun
2022, 00:1529
Paula
Rego era, sem dúvida, a pintora portuguesa contemporânea mais famosa, não
apenas em Portugal, mas no mundo inteiro. Por isso, o Presidente da República,
por ocasião da morte da artista, a 8-6-2022, decidiu honrá-la, a título
póstumo, com o Grande Colar da Ordem de Camões, e o Governo decretou que o
próximo dia 30 de Junho será, em sua memória, dia de luto nacional.
Não
sendo apreciador da sua pintura, reconheço, contudo, mestria na sua execução:
se o objectivo que se propunha era chocar, as suas obras foram muito
conseguidas, porque os seus quadros são, por regra, incomodativos. De
facto, as personagens de Paula Rego parecem saídas de um filme de terror: nas
mulheres que pinta não há graça nem beleza, não há elegância nem feminilidade,
mas um ar boçal, abrutalhado, que gera desconforto e, até, repulsa. Os
esgares dessas personagens monstruosas são aflitivos, mas não são menos
medonhas as suas poses, em que sobressai a crueza das posições, que
produzem até uma espécie de vergonha alheia, como se olhar de soslaio para
aquelas representações fosse já uma imperdoável falta de pudor.
Paula
Rego, ou Maria Paula de Figueiroa Rego, era oriunda de uma família com
tradição. Segundo o Anuário da Nobreza de Portugal, trata-se de uma “família
descendente, por varonia, dos Regos de Barcelos, através de Manuel do Rego de
Magalhães, Cavaleiro Fidalgo da Casa Real, Vereador da Câmara e Provedor da
Misericórdia da então vila de Torres [Vedras], e de sua mulher D. Catarina de
Figueiroa, filha herdeira de João de Figueiroa, Cavaleiro Fidalgo da Casa Real,
Escrivão proprietário da Câmara da dita vila […], e de sua mulher D.
Isabel de Aguiar Leitão. Daquele casal foi filho João de Figueiroa
Rego […], o qual foi Fidalgo de Cota de Armas, Capitão de auxiliares e de
ordenanças da comarca de Torres Vedras, Procurador às Cortes de Lisboa de 1642,
etc.”, oitavo avô, pela varonia, da pintora.
A
Wikipédia diz que Paula Rego nasceu “no seio de uma família da alta
burguesia, de tradição liberal e republicana, com ligações à cultura inglesa e
francesa”. Seu pai, José Fernandes de Figueiroa Rego, era um engenheiro
electrotécnico, que lhe proporcionou um ambiente familiar certamente mais culto
e cosmopolita do que o da maioria das famílias portuguesas. Também sua
mãe tinha mundo porque, recém-nascida a pintora, os seus pais deixaram-na
entregue aos cuidados dos avós paternos, para regressarem a Inglaterra, “a fim
de terminarem os seus estudos académicos”.
Não
obstante o nível social e cultural da família de Paula Rego, a sua pintura
reflecte uma atitude atormentada e ressabiada em relação à cultura portuguesa,
também no que se refere aos valores religiosos. As telas que pintou para a capela do palácio de
Belém, a pedido de Jorge Sampaio, são tão inconvenientes que roçam a blasfémia.
Essas
pinturas, colocadas no interior de uma capela, mesmo que sem culto, não só
ferem a sensibilidade dos católicos, como não estão acessíveis ao público.
Talvez o actual inquilino do palácio de Belém pudesse providenciar a sua
transferência para um espaço cultural de livre acesso, para benefício de quem
aprecia a sua obra plástica, e em atenção ao desconforto que a sua presença,
num espaço religioso, causa aos crentes.
Quando
há tantos exemplos magníficos da beleza feminina, bem como do encanto da maternidade,
nomeadamente na arte cristã – são inumeráveis as belíssimas imagens de Maria
com Jesus ao colo! – as figuras grotescas de Paula Rego dão que pensar. Por
que razão são tão sórdidas as mulheres que retrata?! Por que é tudo penoso,
senão mesmo doloroso, nos seus quadros?! Por que não há um vislumbre de graça,
ou de alegria, nas suas obras?! Por que motivo a sua pintura é tão
desesperada?! Por que falta, na sua obra, uma mensagem de esperança e de vida?!
Oscar
Wilde respondeu a estas perguntas em O retrato de Dorian Gray. O retratado protagonista do romance, não obstante a sua
modesta origem, recebe uma avultada herança. Para imortalizar a sua juventude e
beleza, Hallward decide pintá-lo e o retrato resulta ser uma verdadeira
obra-prima. Dorian Gray, ao abandonar a sua amante, não só provoca o seu
suicídio como, num acesso de raiva, mata Hallward. Depois, ao contemplar o seu
retrato, desfigurado pelos crimes por ele cometidos, descobre que se convertera
num monstro e, quando procura assassinar a sua imagem, é a si próprio que se
mata.
Neste
seu magistral romance, Oscar Wilde exemplifica como o verdadeiro retrato de
alguém é, sobretudo, a sua consciência. Quem a outros retrata, também de
si mesmo se confessa: o pintor, quando executa a sua obra, nela se expõe,
retratando, consciente ou inconscientemente, o seu estado de alma.
Não
é preciso ser discípulo de Freud para interpretar a pintura de Paula Rego neste
sentido: através da sua arte, a pintora, inadvertidamente, exorciza os seus
próprios fantasmas e manifesta os seus traumas e frustrações. As
características das suas personagens são análogas ao modo como o retrato de
Dorian Gray também espelhava a sua desesperada consciência.
Não
é estranha, portanto, à pintura de Paula Rego, a sua dramática experiência de
vida, que a própria confessou: “Fiz vários abortos” (Jornal Económico,
9-6-2022). Não só, por várias vezes, abortou, como se empenhou politicamente
nesta tristíssima causa. Com efeito, em resposta ao referendo que, em 1997,
em Portugal inviabilizou a legalização da eufemisticamente apelidada
‘interrupção voluntária da gravidez’, realizou a obra Aborto (1997-99), como
manifesto artístico de intervenção política, em defesa do que o Concílio
Vaticano II considerou ser um crime abominável (Gaudium et Spes, 51 e 27) e
que, anos mais tarde, foi liberalizado no nosso país.
A
pintura de Paula Rego e o retrato de Dorian Gray são, afinal, duas expressões
dramáticas do que São João Paulo II chamou, em contraposição ao Evangelho da
vida, a cultura da morte. Por mais que a retórica política tente
justificar o aborto, ou a eutanásia, a consciência nunca poderá legitimar tais
actos. Por isso, é em vão que Dorian Gray
arremete contra a sua imagem desfigurada, como não é possível encontrar beleza,
nem graça, nas atormentadas personagens femininas de Paula Rego. Paz à sua
alma.
COMENTÁRIOS:
Luís Barreto: A obra de
Paula Rego - que é uma figura maior, mesmo a nível internacional - já foi
objeto de análise psicanalitica, como facilmente se vê na internet. E a autora,
honra lhe seja feita, não só nunca fugiu ao tema como se interessava por ele,
procurando encontrar o seu eu desconhecido de si própria na sua pintura. Os
abortos que fez também a marcaram, como a qualquer mulher que os faz. Mas a
viagem que fez pelo grotesco tem a ver já com a sua infância (certamente não
marcada por abortos). Gosto muito do Padre Almada, com quem concordo pouco,
pelo estilo e inteligência argumentativa. Mas desta vez, se não me leva a mal,
foi um bocado simplista demais. Fernando CE: As obras de Paula Rego , retratam as mulheres como
pequenos monstros , tudo tão grotesco, que fazem pensar sobre a idiossincrasia
da pintora. Acho-a com um toque de génio, mas não aprecio a sua pintura e a sua
visão do mundo e da vida. Por outro lado, já vi entrevistas suas na TV e
pareceram-me as suas respostas e análises algo infantis, completamente
desconcertantes. O
Malandro da Ópera: Misturar arte
com política não é coisa de bom senso, principalmente quando o azedume torna
revelador que não percebe patavina, nem de uma, nem de outra! Amen... Fernando Soares Loja: Análise admirável. Mais chocante que as referidas
obras "de arte" é o estilo grotesco e grosseiro de alguns comentários
intolerantes. Será que não conseguem discordar sem serem agressivos e
mal-educados? José Miranda: Os críticos do Padre Gonçalo
Portocarrero manifestam sempre um grande azedume. Terão problemas semelhantes aos
apontados a Pauta Rego klaus
muller: Convém não
exagerarmos, P. Almada. Paula Rego era sem dúvida a pintora mais conhecida em
Portugal, mas também duvido que alguma vez a maior parte do resto do mundo
venha a saber quem ela foi. Caiamos na real. Isabel silva: As pinturas do horrível de
Paula Rego e de Bosch interpelam...cumprem uma das funções da arte. Reflectem
nomeadamente os horrores da Igreja Católica, a sua hipocrisia, o oposto entre a
pregação e da sua mórbida realidade- condenação da homosexualidade, abuso de
menores... klaus
mullerIsabel silva: Pelos vistos a Isabel acordou
revoltada... E, por amor da santa, até eu, que não percebo nada de
pintura, fico chocado quando a vejo comparar Paula Rego e Bosch. Tenha dó... João
Alves > Isabel silva: Não equipare a pintura de
sarjeta de Paula Rego com a pintura sublime de Bosch. Fernando CE > Isabel silva: Saberá que o abuso de menores
na sociedade , como outros crimes sexuais , ocorrem maioritariamente fora da
igreja , e sobretudo no seio familiar e de amigos próximos ? Já lá vai o tempo
em que a Igreja católica dominava condicionava o comportamento da sociedade,
com condutas mais positivas e outras menos. E não se esqueça que a igreja somos
todos os católicos, que vamos evoluindo nas mentalidades. Hipócritas somos
todos ,uns mais outros menos. Sou culturalmente católico, “não praticante”. Maria Melo: Finalmente, alguém fala sobre
os monstros de Paula Rego. Sem dúvida que Paula Rego era grandemente dotada para
a pintura, mas os temas e figuras recorrentes são terríveis. Só pode ser uma
catarse… Tenho pena que não tenha utilizado o seu dom e técnica para fazer
pinturas menos chocantes. Maria
Nunes: PR é uma pintora
brilhante. No princípio não apreciava os seus quadros, pois tentava ver beleza
na sua pintura e não a encontrava. Comecei então a ler sobre o significado dos
seus quadros. Vi um filme sobre a sua vida que o seu filho realizou, e onde
relata diversos episódios até então secretos. Os seus próprios filhos
desconheciam-nos. Comecei então a compreender a sua obra e a admirá-la. Quanto
à representação da Virgem Maria na capela de Belém acho-a abominável. Além de
ser uma falta de respeito para com os católicos. Para uma pessoa que se preocupava
tanto com as liberdades... bento
guerra: Paula Rego e o
retrato de Jorge Compaio
Maria Correia: Concordo em
relação às pinturas na capela de Belém mas a Paula Rego não foi só isso e tudo
o que fez usando os bichos foi extraordinário, divertido, leve e sem a
brutalidade do realismo posterior. advoga
diabo: Tal como interpretou superficialmente a
grande obra de Óscar Wilde, seria surpreendente um espírito quadrado, redutor e
essencialmente mesquinho, alcançar a beleza consubstanciada no traço
forçosamente "inestético" e grotesco quando se retrata a imperfeita
alma humana! Jose Luis
Salema: Muito obrigado pelo texto Padre Gonçalo. Em duas pinceladas retratou a "artista" do
regime e que o regime merece. Alberto
Pereira: Mais uma vez um excelente artigo! Totalmente de acordo. bento guerra: Eu não gosto da pintura da PR, que me parece rudimentar
e de obsessão a roçar a de doente mental, o que é mais evidente quando fala. Discípula
de um outro estranho desviado, o Lucian Freud, cujos quadros valem fortunas. Mas,
daí ao descaramento deste padreca que .de caridade cristã tem pouco, tal o
veneno que destila nos seus escritos Madalena
Sa: Excelente artigo! De acordo com a sua
detestável pintura, Paula Rego como pessoa devia ser um monstro! O dia de luto
nacional e a condecoração são mais uma aberração das muitas que, por este
triste País, acontecem todos os dias! As imagens da capela do Palácio de Belém,
que não conheço, nem quero conhecer, devem ser de acordo com as 2 mentes, de
quem mandou fazer e de quem as fez! Pedra
Nussapato: Dá vontade de rir as voltas que o Sr
padre dá só para poder criticar o activismo de Paula Rego. E já agora Sr padre,
não deverei errar muito se disser que mais de metade da arte mais brilhante que
o mundo já viu foi produzida por mentes "conturbadas" e
"ressabiadas", mesmo aquela que vai de encontro aos gostos do Sr
padre. Enfim... Francisco
Garcia: Desta vez concordo com o padre
Portocarrero. Bem pensado e bem escrito. manuel
rodrigues: Duas ou três pinceladas muito úteis para
completar a biografia da pintora. Tinha esquecido essas da capela no palácio.
Poderiam na verdade transferi-las para um museu de arte contemporânea, Chiado,
Cascais, Serralves... O povo ia adorar. É só uma ideia. João Paulo Reis: Na arte, em todas as suas formas de expressão, sou um
básico, quando gosto, gosto e dispenso dissertações, quando não gosto, não
gosto e sinto-me imune às opiniões dos entendidos. Já me aconteceu gostar e
deixar de gostar e vice-versa, sei que sou básico, mas não quadrado. Paula Rego
não gosto e não creio venha a mudar de opinião. Coronavirus corona:
Excelente artigo. Há muitos exemplos semelhantes, sendo
um dos mais conhecidos Friedrich Nietzsche.
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