domingo, 19 de junho de 2022

Outra espécie de banho


Que nos oferece AG, banho de cultura musical explosiva, de cultura rock, que revela conhecer bem, por a ter vivido, como jovem entusiástico na altura do sucesso daquela e que, no caso que aponta, de McCartney, sente a desilusão da sua extinção, num desses ídolos dos Beatles, cuja criatividade esmoreceu, mas que perdurará nas obras-primas que criou. Fugindo aos temas políticos habituais, Alberto Gonçalves presta assim homenagem a um dos seus ídolos da juventude, na decepção pela “morte” criativa desse ídolo, mas grato pelas obras-primas que aquele soube criar. Alberto Gonçalves também um senhor, na sua clareza e elegância de pensamento, em que a mordacidade não falha, expressa na habitual forma desinibida, tão aprazível, quer se trate de política, quer de outros sectores culturais, em que o visado é, naturalmente, o ser humano.

Paul McCartney, morto aos 27 anos, vivo aos 80

McCartney tem o direito de fazer as porcarias que faz como, em teoria, os restantes mortais teriam o dever de fazer uma fracção das maravilhas que ele fez, e não fizemos.

ALBERTO GONÇALVES Colunista do Observador

OBSERVADOR, 18 jun 2022, 00:2152

Há uma filmagem breve, em 8 ou 16 mm, que mostra Paul McCartney a passear pelas ruas de uma cidade talvez mediterrânica, cerca de 1966. É um indivíduo bonito, obviamente jovem, com o penteado impecável, um impecável fato claro e aquele impecável ar de simplicidade e vaga surpresa que lhe deu um trabalhão a conseguir. Essas imagens, que vi em tempos e nunca revi, pedem que se imagine o que seria ser McCartney naquela idade, no apogeu de uma carreira de dimensão impensável, beneficiário de uma mistura de popularidade e prestígio sem grandes precedentes.

As luminárias intelectuais da época não lhe recusavam o convívio. As suas canções eram interpretadas pela nata, de Sinatra a Ella, de Bing Crosby a Sarah Vaughan. McCartney era um símbolo sexual, da moda, da cultura e da contra-cultura. À escala da música popular, era igualmente um símbolo cimeiro de talento. Num determinado instante, que durou meia dúzia de anos, McCartney era o “maior”. E, sob a simpática ligeireza que afectava, ele sabia-o. E nem assim endoideceu. E isso, a ausência de loucura, é sobretudo o que o distingue dos parceiros de fama, quase todos menos famosos e quase todos um bocadinho avariados.

Ao contrário de Brian Wilson, o único contemporâneo seu concorrente em competência melódica, McCartney não se enfiou deprimido na cama por uma década ou duas. Ao contrário de Elvis, a única celebridade comparável, não se refugiou no peculiar conforto de Vegas e dos hambúrgueres. Ao contrário de inúmeros outros, não morreu de overdose, nem adoptou 17 esquimós, nem aderiu a um culto, nem apoiou terroristas, nem destruiu “suites” por desfastio. Ao contrário desse em que vocês estão a pensar, não se devotou a uma “artista” sem competências discerníveis e a clichés “contestatários” próprios da pré-adolescência. É verdade que, por pirraça, McCartney teimou em conceder à mulher um papel público que nada justificava. É verdade que se tornou vegetariano militante. É verdade que, para exibir com desfastio as credenciais do ofício, se viu preso no Japão por posse de marijuana. Insignificâncias, pois. Aos 80 anos completados hoje, 16 além dos 64 da lenda, crivado de homenagens e reverência, é possível dizer que McCartney foi um sujeito bastante “normal” para a vida anormalíssima que viveu. E demasiado normal depois que “morreu”.

Se calhar por irritação face à imaculada aura da criatura, em 1967 espalhou-se a história de que McCartney morrera meses antes num acidente de carro. De facto, a inveja mata, embora apenas num boato lançado por um radialista americano. E se há boatos que extrapolam um acontecimento prévio, este antecipou-o. De certa maneira, McCartney finou-se apenas dois ou três anos depois. Aí por 1970, o autor de boa parte dos “standards” da segunda metade do século XX abriu falência criativa, que se mantém em vigor em 2022.

De 1970, data do último semi-clássico,“Junk”, para cá, McCartney compôs, gravou e publicou centenas de canções, na maioria banais, às vezes confrangedoras. Das vinte ou trinta que se salvam, nenhuma é indispensável. O mundo seria exactamente o mesmo sem “Calico Skies” (de 1997) ou “Here Today” (de 1982). Mas o mundo não seria exactamente o mesmo sem “Penny Lane”, “Mother Natures’s Son”, “I Will”, “Please, Please Me”, “Michelle”, “Paperback Writer”, “Here, There and Everywhere”, “For No One”, “Blackbird”, “Helter Skelter”, “She’s Leaving Home”, “Your Mother Should Know”, “Eleanor Rigby” e, apesar da enjoativa exposição, “Yesterday”, “Hey Jude” e “Let It Be”.

Para explicar a crise de inspiração, o fim da competição directa com John Lennon é uma tese interessante. Não me parece a tese acertada. É costume os principais “songwriters” da era do “rock and roll” gozarem de uma musa breve. Os pedaços da obra que realmente interessam em Joni Mitchell, Smokey Robinson, Leonard Cohen, Lou Reed, Tim Buckley, Paul Simon e Brian Wilson foram concebidos ao longo de dez anos, no máximo. Bob Dylan, o génio do bando, espremeu a mais fulgurante colecção de canções da contemporaneidade entre 1963 e 1966. Em entrevista muito posterior, Dylan falou do “lugar” de onde essas canções surgiam, um “lugar” que, confessava, ele já não era capaz de localizar e visitar.

E então? Assisti a um espectáculo de Dylan em 1993. Passei um terço do dito com os olhos semicerrados, a tentar substituir o senhor de meia-idade pela mítica figura escanzelada que indignara os comunistas no festival de Newport, em 1965. Se pudesse, semicerraria os ouvidos para não notar a tortura a que ele sujeitou “Just Like a Woman” e “The Lonesome Death of Hattie Carroll”. Jamais quis assistir a um espectáculo de McCartney, celebração postiça em pavilhões idem, para evitar novas figuras tristes.

Tristeza” é o termo, a tristeza de descobrir que os heróis são terrenos e a tristeza de não o aceitarmos. Sem qualquer razão, exigimos às pessoas que admiramos a iluminação, a consistência e a “pureza” que não exigimos a nós próprios. A troco de um punhado de belas canções, criamos um ideal e definimos os critérios sob os quais o ideal é atraiçoado. Dos Wings até ao disco desgraçado que editou há ano e pouco, com raríssimas excepções pelo meio, McCartney gravou uma impressionante quantidade de produtos medíocres e indignos do seu nome. Mas o ponto é esse: McCartney dispõe de um nome a preservar, e nós, adeptos da preservação alheia, não dispomos. McCartney tem o direito de fazer as porcarias que faz como, em teoria, os restantes mortais teriam o dever de fazer uma fracção das maravilhas que ele fez, e não fizemos.

O melhor é calarmo-nos. E ouvi-lo: em 1963, 1964, 1965, 1966, 1967, 1968, 1969, 1970 e chega. E sobra. Para nós, ainda bem que Paul McCartney existiu. Para ele, ainda bem que continua a existir, e sempre a fingir ser o tipo normal que não é. Ou não foi.

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COMENTÁRIOS:

Seknevasse: Não será por acaso que na matemática os prémios "nobel", ou mais exactamente Fields, só se atribuem a menores de 40 anos. Ou consegues criar/descobrir algo brilhante antes dos 40 ou já não vais conseguir... (ok, mandem daí as excepções!)             Pontifex Maximus: A falta de assunto começa a campear por aqui, é sobre o paul poderia ser sobre Mary… parece que o covid afinal também atacou o Alberto.          José Ramos: Um kadish sublime para o McCartney de então e para The Beatles, desaparecidos em 1970, o último ano da década mítica. Vou ouvir as músicas enumeradas por Alberto Gonçalves e algumas outras. Que melhor sujestão para eu próprio, que sinto que partirei muito em breve apesar de ter direito ao "melhor SNS do mundo"; porém com os "constrangimentos" que a infame propaganda deste regime postiço, de faz de conta, diz que tem. Obrigado, AG. A Day in the Life já ninguém me tira.          Carlos Silva > José Ramos: A beleza do "Kadish Yatom" no seu esplendor. Que ilumine o teu caminho !          Dr. Feelgood > Carlos Silva: Olha que 2 a desabrocharem! Afinal são seguidistas do Yom Kipur e mais o Ben Guriano e mais o cacete ! 'Inté se acariciam aqui em plenitudes, my goshs ! 'Est mun stá perdide, numbale a pena.              João Eloi: A Teoria Universal da Vida, do Sick Boy, nunca falha. "Quando o tens, tens. E quando o perdes, perdes para sempre.". Aceito completamente isso. Apenas exijo a qualquer músico, uma boa música, ou um bom cover. Um bom disco já é demais. E aquelas raridades que conseguem mais que um bom disco... Fora essas pérolas, por mim podem fazer as porcarias que quiserem. O que quero já cá canta, para sempre!! Quanto ao Paul... Um gajo que fez dum Hey Jude a um Revolution 9, e a tudo o resto pelo meio... Acho que só com muita ignorância (e há muita ignorância em relação aos Beatles), e muita má vontade, não se mete o homem no Olimpo dos Músicos. Ele até pode andar há 50 anos a não fazer nada de especial, o que ele fez antes foi muito mais do que suficiente            Armando Almeida: Excelente artigo! Parabéns             Paixao: assino por baixo.               Luís Vieira: Grande artigo. Emocional até. O Paul é um gajo fixe 👍 P.S. (salvo seja) Quem não gosta do Alberto é bigot.       Valquíria: De facto nunca entendi bem porque de todas as 7 artes a música é a que sofre mais com o avançar da idade dos seus protagonistas - com exclusão da dança 😅, a fonte de inspiração seca-se e raramente volta, há sempre um período áureo que normalmente se situa na juventude a que se segue quase sempre um período penoso… para os seus fãs 🙂 Na Arquitectura, Escultura, Pintura, Literatura e Cinema (excluo a Dança) é normal encontrar grandes vultos com mais de 50 anos a produzir obras-primas, na música, apesar de existirem, são muito poucos.         Liberales Semper Erexitque > Valquíria: João Sebastião Bach morreu a compor a Arte da Fuga. Literalmente! Na obra de dimensão sobrenatural dele nunca houve a mais pequena decadência, nem mesmo doente às portas da morte. Mas claro, Bach era o Super-Homem!              Meio Vazio > Valquíria: O que diz é mais evidente na "música não erudita". E McCartney é um bom exemplo, como bem o ilustra o nosso sempre lúcido A.G. Em 1969, e após anos de genialidade, a sua veia parece ter secado nesse derradeiro e sublime álbum do quarteto fabuloso. De então para cá salvam-se o que seriam pérolas mas num criador menor (Mull of Kintyre de 1977, algumas faixas de Tug of War, 1982, uns minutos de Flowers in the Dirt, 1989). Entretanto, um ou outro patético encosto a quem dava comercialmente cartas no momento - Costello, Gilmour, Wonder, Jackson, Rihanna. Sem necessidade: a humanidade, que muito lhe deve, dispensava vê-lo em ceroulas.           Isabel Bravo: Caro AG, excelente como sempre. Mas quando diz "ao contrário de Brian Wilson, o único contemporâneo seu concorrente em competência melódica" tenho que protestar bem alto: e o icónico Barry Gibb, o único irmão sobrevivente dos Bee Gees? Talvez se possa redimir se lhe dedicar um próximo artigo. Ah, e obrigada por nos distraír deste país onde somos esmagados diariamente pela mentira e a falta de vergonha de quem nos "governa".            Meio Vazio > Isabel Bravo: Desses, o que contava (Robin) já partiu.            klaus muller: Por entre a "velhada" daquela época, prefiro os Stones aos Beatles. AG, escreva também sobre o velho Jagger. Ainda um dia destes fui vê-los a Madrid e fiquei espantado com o speed de Jagger.           Marcio Sousa > klaus muller: Nunca achei piada aos drogados dos Beatles. Levados ao colo pelos hippies viciados em coca. Rowling Stones são de longe superiores.           Maria da Conceição Gaivão > Marcio Sousa: Coca? Se não me engano nos 60’s imperava o LSD e Heroína, não esquecendo a marijuana. A Cocaina e a Morfina são algo anteriores, transição do século XIX e XX. Voltou nos 80’s com a terrível  pandemia do “crack”. Agora está instalada nos workaholics, yuppies, e wokies (?).            Cogito E > Marcio Sousa: Stones? Nem jogam na mesma liga, ou orbitam a mesma galáxia dos rapazes de Liverpool!!! The Beatles??? Sem sequer comparação!! Nem com os Pink Floyd, os que mais se aproximam!  Mas, claro, gostos não se discutem! Até há quem seja fã do Zé Cabra. Ou dos Milli Vanilli! Ou Tóquio Hotel! Ou Madonna! Ou… Ou…Ou…, portanto…           Pobre Portugal: Para quem estava à espera de uma “análise política”, que não se desiluda. Basta extrapolar este tempo de duração de um artista, de “dez anos, no máximo”, para os nossos actuais políticos. Há quanto tempo está Costa agarrado à política? E Marcelo? Só dois exemplos.           advoga diabo: Brilhante dissecação do talentoso, despeitado, amargurado e vingativo PM! Acabam sempre a cavar a sua sepultura! AG sabe do que fala!               João Ramos: Já repararam que este princípio aqui definido por AG, isto é em relação à idade e à capacidade de realizar coisas extraordinárias, como é o exemplo de Paul McCartney, pessoa que muito admiro aliás, mas se esse princípio for aplicado aos políticos talvez nos possa explicar a miséria em que estamos inseridos…            José Tomás: Nunca comento os artigos do AG, porque fico invariavelmente esmagado por eles. Este não é excepção. Todavia, desta vez, discordo de um ponto: é que entre Songs of Leonard Cohen e The Future passaram 25 anos e não 10. Maria da Conceição > GaivãoJosé Tomás: Leonard Cohen foi a excepção que confirma a regra. Outro carácter, outro patamar, outra arte!              Seknevasse Maria da Conceição Gaivão: Ficava muito melhor de Nobel do que o Dylan !!! E a música de despedida, da vida, Genial !! Já agora acrescentaria aqui outra divergência, de AG, pelo menos para mim que fui consumidor dos Abba (já sei que é outra onda e outras decadas), mas para um grupo ao fim de 40 anos conseguirem juntar-se e voltar a compor, está muito bem, está mesmo incrível, embora a maioria das faixas esteja mediana, duas ou três ao seu melhor nivel!!     QUEREMOS RICARDO SALÓ DE VOLTA: Este artigo só na aparência é apenas sobre Paul MacCartney.          Antonio Marques Mendes: É verdade que a maioria morre aos 33, mas não é verdade que não se possa estar vivo aos 80 seja na música ou na ciência.           Liberales Semper Erexitque > Antonio Marques Mendes: Pode, mas é mais difícil. E depois há fenómenos do outro mundo, como Manoel de Oliveira, com 105 anos em plena forma artística.         José Dias: E muitos outros exemplos poderiam aqui ser trazidos. Não creio que alguém consiga honestamente afirmar que os últimos anos das "carreiras" de Paulo de Carvalho ou Simone de Oliveira - e só para citar 2 casos nacionais - são algo que vai ficar na História. É pena que alguns não saibam quando é tempo de parar e outros nunca encontrem as condições que o permitam!          António Lamas: Brilhante. Uma lufada de ar fresco num tempo que só apetece mesmo bater no Costa e na Marta Fartura.       Cupid Stunt: Também neste tema estou, genericamente, de acordo com AG.         Manuel Martins: Não sou especialmente fã de Paul, mas não creio que a carreira após 1970 tenha necessariamente sido um zero. Não teve o impacto do tempo dos Beatles, mas fez umas coisas posteriores que são dignas, alguns duetos interessantes (por exemplo com Michael. Mas muitos outros artistas passaram pelo mesmo. Que músicas de Madonna passam nas rádios, e aqui, que músicas do Chutos levam o povo aos concertos? A verdade, e é apenas a minha opinião, é que não há música como a dos anos 60 a 90. Peçam a um jovem de 20 anos para cantar meia dúzia de músicas que goste, e a um de 50, e comparem...         Meio Vazio: Uma das melhores descrições do génio que dá pelo nome James Paul McCartney que já li. E li centenas. Um colosso que se finou no fabuloso ano de 1969, nesse canto de cisne que foi Abbey Road. Ter-nos-ía dado mais se o seu "irmão" não tem pirado? Nunca o saberemos. Em todo o caso, brindou-nos com mais do que seria sua obrigação. God bless you, Sir Paul.

 

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