Ou conversa para boi dormir. Um texto
impecável de seriedade crítica, de PAULO
TUNHAS. Nunca chegará “A HORA”, neste “NEVOEIRO” não
dissipável.
Morrer pelos princípios dos outros
Não digo que Marcelo não goste de
Portugal – estou certo que gosta – nem que não seja um homem dotado de
inteligência e graça – obviamente é. Mas faltam-lhe claramente ideias
orientadoras para o país.
PAULO TUNHAS
OBSERVADOR, 16
jun 2022, 07:12
Vi,
na televisão, um bocado das cerimónias do 10 de Junho em Braga. Em particular,
vi o discurso do Presidente, com as suas partes sobre a nossa história e o
seu elogio ao povo. Como de costume, para Marcelo, somos óptimos.
Não abusou, é verdade, da invocação da história para nos fazer esquecer as
agruras do presente. Não nos pôs a todos em espírito no lugar imaginário de uma
glória que ininterruptamente nos banharia. Limitou-se a dizer que o nosso povo
é excelente e cheio de virtudes. Nada contra, evidentemente. Além de tudo, faz
parte da retórica tradicional destas celebrações e não se esperaria uma grande
inovação no capítulo.
No
entanto, ao ouvir aquelas palavras, deu-me para uma certa tristeza. E ela
aumentou quando o vi mais tarde, na metade das celebrações que teve lugar em
Londres, repetir o elogio das nossas várias excelências. A tristeza
vinha de um certo sentimento de vazio. Toda
aquela conversa parecia calculada para adormecer o nosso sentimento do presente
e para nos mergulhar numa espécie de intemporalidade tépida que nos protegeria
de uma consciência excessiva da palpável decadência do nosso dia-a-dia. E aumentou a tristeza quando o vi responder a uma
pergunta sobre o fecho das urgências de obstetrícia. O que disse Marcelo em
Londres? Disse que estávamos em presença de “um ponto crítico específico”.
Isto é: esvaziou de sentido um fenómeno que nada tem, de resto, de muito
singular, visto que se repete variadas vezes aqui e ali, com consequências
comprovadamente danosas para o tal “povo” que ele tanto prazer teve em elogiar.
O
mesmo esvaziamento de sentido teve lugar ontem na conferência de imprensa da ministra da Saúde, Marta Temido, que era suposto anunciar uma solução para o caos que se
vive nas ditas urgências e no SNS em geral. Naquele estilo tão original que a
caracteriza, em que os sorrisos postiços aparecem amiúde, como uma espécie de
erro de sintaxe, no meio da referência a problemas graves, Marta Temido
revelou-nos a sua solução mágica para o problema do encerramento das urgências:
a criação de uma “comissão de acompanhamento” que
resolveria doravante os problemas que o ministério que dirige desde há longos
anos não conseguiu até agora resolver. Nenhuma referência à destruição das PPP na Saúde, por
ela activamente promovida, que limitaram grandemente a decadência do SNS
enquanto existiram. Por exemplo:
a do Hospital de Braga, onde Marcelo celebrou o Dia de Portugal,
aparentemente um sucesso que a ministra se empenhou em destruir. Resultado:
agora, também a sua urgência de obstetrícia é obrigada a encerrar por falta de
médicos.
As
culpas de Marcelo e do Governo, particularmente da ministra da Saúde, nestas
coisas são obviamente muito diferentes. A culpa da ministra é a de um erro que
é talvez o mais indesculpável em matéria política: aquele que tem origem numa
cegueira ideologicamente motivada. O ódio aos privados – ao “negócio da saúde”, que
também não sai da boca do Bloco e do PC – conduziu o SNS ao impasse no qual
presentemente vive e do qual, com esta ministra, é impossível sair. Não digo que as PPP sejam demonstravelmente
salvíficas, mas obviamente representam uma solução razoável para uma boa parte
dos nossos problemas, uma solução que é criminoso recusar. Acontece que uma tal solução é anátema para o governo
socialista e para os seus antigos parceiros da “geringonça”. Admito que em certas circunstâncias seja valoroso
morrer por respeito pelos nossos princípios. Duvido que alguma vez seja
aconselhável morrer por causa dos princípios dos outros – dos princípios de Marta Temido, Catarina Martins ou
Jerónimo de Sousa, neste caso.
A culpa de Marcelo é muito diferente.
É a culpa de um Presidente que não tem nenhuma ideia para Portugal. Não digo
que não goste de Portugal – tenho a certeza que gosta – nem que não seja um
homem dotado de inteligência e graça – obviamente é. Mas faltam-lhe
decididamente ideias orientadoras para o país, falta essa que o torna inerme
face aos preconceitos ideológicos mais primitivos que o governo exibe em várias
áreas. E a maneira
que ele tem de compensar esse defeito – e é um defeito terrível para quem ocupa
aquele cargo – é a exibição pública permanente da sua própria pessoa, como
se a sua pessoa fosse em si mesma uma ideia, e aquela mania quase patológica de
nos assegurar que, quando queremos, somos os “melhores do mundo”, como se um
puro acto de vontade – o querer – tivesse o mágico condão de nos transportar
para a realização dos nossos desejos. Marcelo, aparentemente, acredita na
omnipotência do pensamento, na ideia de que o próprio pensamento, sem
necessidade de mediação alguma, pode directamente agir de modo eficaz sobre a
realidade.
Por
mim, aconselhava-o a reler a polémica célebre
entre Eça de Queiroz e Pinheiro Chagas em
torno do patriotismo, nomeadamente aquela passagem em que Eça distingue duas
formas de patriotismo. Uma delas é aquela
que vive exclusivamente da lembrança das glórias passadas e canta à pátria
“lânguidas serenatas”. É o
patriotismo que “sobe à
tribuna do Parlamento ou ao artigo de fundo, e de lá exclama, com os olhos em
alvo e o lábio em luxúria: Oh pátria! Oh filha! Ai querida! Oh pequena! Que
linda que és! – exactamente como tinha dito na véspera, no restaurante Mata, a
uma andaluza barata”. A
segunda forma de patriotismo, aquela que Eça aprova, parte de uma atitude crítica. Preocupa-se com
a verdade. Os patriotas, segundo Eça, não “adulam” a pátria, “não a iludem: não
lhe dizem que é grande porque tomou Calecute, dizem-lhe que é pequena porque
não tem escolas. Gritam-lhe sem cessar a verdade rude e brutal”.
Não
pretendo que o Presidente pertença exactamente à primeira escola de pensamento,
apostada na permanente recordação de passados gloriosos. De facto, quando
Marcelo fala do passado até encontra geralmente um tom justo. Mas propõe uma variante dela projectada para o futuro. Propõe uma espécie de voluntarismo igualmente acrítico
e estranhamente destituído de justificação empírica: como se, por um puro acto
de vontade, todas as nossas potencialidades escondidas pudessem plenamente
realizar-se à plena luz do dia. Quando queremos, como ele diz, somos
os melhores do mundo, maiores do que todos os outros. E que povo,
podendo tal, não desejará participar de tal feito?
O
problema de tão mágica convicção é que, ao contrário de suscitar entusiasmo,
nos mergulha, sem paradoxo nenhum, na indiferença, de que só uma atitude
crítica nos poderia talvez salvar. É um patriotismo triste, um patriotismo
tristíssimo, aquele que o Presidente nos sugere. E um patriotismo que nos torna vulneráveis aos
delírios ideológicos que, por exemplo, nos levam a morrer em obediência aos
princípios de uns quantos iluminados. E são estes os dias de Portugal, dias
de indiferença e desmazelo trágico, que o último Dia de Portugal não contribuiu
em nada para melhorar.
PRESIDENTE MARCELO POLÍTICA SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE PAÍS
10 DE JUNHO
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