quarta-feira, 15 de junho de 2022

Talvez o endeusasse ...

…se Paula Rego tivesse vivido a guerra de Putin em plenitude, como se diz que o fez com todas as suas pinturas. Criaria não os macacos e bichos da sua argúcia brincalhona simbolizadora, mas antes a figura de um qualquer deus majestoso ou mesmo arreliador, por exemplo, o Baco dos vinhos que tanto prejudicou o pobre do nosso Gama em várias partes do seu (do Gama, naturalmente) percurso para as Índias, as quais bem que veneravam Baco, ao que se dizia, indiferentes os hindus à anomalia de que o deus dos vinhos foi vítima, não por culpa sua, feto que era ainda, mas por morte da mãe Sémele, que Júpiter fulminou com os seus raios, acabando o escrupuloso pai Júpiter por recolher o filho numa sua perna até ao fim da gestação, facto, aliás, de somenos, no caso do Júpiter - mas também do Putin, indiferente às anomalias, e mesmo até capaz de também as produzir com requinte, como temos apreciado. Mas, enfim, o traço definitivo da nossa Paula Rego, tornada ela própria figura universal, agora que morreu - (conquanto já antes estimada e medalhada, no seu enquadramento ideológico bem “à la page”) - sempre era mais uma achega, em torno de Putin, embora Putin não precise disso para a sua imortalidade, que ninguém põe em causa, está visto. Mas como foi essencialmente sobre os despotismos de Salazar - pelos vistos, para Paula Rego, de alcance superior aos do próprio Hitler da altura - que a pintora se debruçou, com ardor e convicção artística, a sua obra bem reflecte isso, a combinar com a imagem de regozijo oponente que dele também fazem os seus – de Salazar, obviamente - "tradutori traditori" da actualidade, que em parte por esse motivo, e os outros que estão na berra das temáticas ideológicas do galardão nacional, elevam Paula Rego aos píncaros da sua fama de artista pictórica, para mais com a sanmção estrangeira sempre apetecível neste nosso país de timidez artística no julgamento próprio, mas derretendo-se em exaltação, após o apreço externo.

Estou a ler o Público de 9 de Junho, pleno de escritos encomiásticos sobre Paula Rego, morta na véspera. Nem me passa pela cabeça discutir sobre a sua criatividade, reveladora de uma imaginação desbragada, a tendência pictórica para o mundo da tropelia artística expressa tantas vezes com grosseria e fealdade, a desmascarar o mundo burguês, mais arrumado, de que soube troçar, bem à la page nas troças, por meio dos seus simbolismos, tantas vezes de orgíaca figuração, de um universo infantil ou demoníaco, ou simplesmente grosseiro.

O Grito” de Munch, uma tela ampla na paisagem envolvente e sóbria na figuração, traduz bem, nessa figura central, pavorosamente ambígua e contrastante na sua pequenez, com o espaço exterior onde ela se enquadra, o desespero humano inenarrável do nada existencial.

Quantos dos símbolos da pintura de Paula Rego se nos afiguram antes puras escapadas para a troça desbragada, própria da farsa, e não para uma ironia mais subtil, de que resulta a angústia universal, que a nobreza da tragédia, ao nível literário, mais exemplifica.

 


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