segunda-feira, 18 de março de 2019

Os bons argumentos não são para nós



Mais um bom texto de Nuno Pacheco e respectivos comentários, de quem só pode sentir tristeza por um país que assim vai morrendo, na inércia contra a ignomínia que desvirtuou a própria língua, na indiferença dos que, julgando talvez angariar, com esse rebaixamento cultural subserviente, através da “simplificação” linguística, melhores relações económicas, só se identificam com tristes traidores à sua própria pátria, o que, aliás, não lhes faz mossa, na desordem geral de princípios em que vegetamos ultimamente, pobres que somos.
Já há muito se explicou a sua insensatez de acomodação a um AO que se provou falho de lógica na desobediência a características de etimologia indispensáveis em termos da própria compreensão oral, por exemplo, e tantos outros casos sensaborões adulteradores da escrita e da fonética. Nuno Pacheco debruça-se sobre os sinais diacríticos, nomeadamente os acentos gráficos de que se semeiam tantos comentários, na indiferença ignara do desrespeito impune.

Cultura-Ípsilon: OPINIÃO
Arranjem uns assentos para os acentos, senão eles caem
PÚBLICO,  
Em 1986 havia quem propusesse para o “acordo ortográfico” a abolição (ou seria “abolicao”?) dos acentos. Não passou, mas mesmo assim há quem a pratique.

Há quem os odeie, ou baralhe, ou ignore, mas é injusto. Porque os acentos operam milagres. Alteram, com um simples traço, pais em país, e transformam uma fracção de unidade, o avo, num avô ou numa avó, consoante se escolha o acento (ou sinal diacrítico) adequado. Isto na escrita, porque na oralidade ninguém confundirá pais, país, avos ou avós. Que se saiba…
Mas, tal como se despreza a boa escrita, há muito que se começou a desprezar os acentos. O cantor e compositor brasileiro Caetano Veloso disse um dia que a língua portuguesa não tem acentos demais, tem até acentos a menos. Na sequência disso, num artigo que escreveu no jornal O Globo, em 2012, a propósito do “acordo ortográfico” de 1990 (“outra maluquice”, dizia ele), falou assim da língua: “É seguro que a ausência de acentos a torna mais fácil? A facilidade é uma virtude para uma língua? Ouço muitos malucos brasileiros dizerem que ‘o português é uma língua muito difícil’. De onde vem essa ideia? Do Ministério da Pesca?”
Sim, o Ministério da Pesca deve ter culpas. Mas antes dele deve haver, até entre escritores, quem ache que a escrita merece tudo menos cuidados e apuro. Não se trata de criatividade gráfica, que essa é também uma arte (veja-se Guimarães Rosa ou Mia Couto), trata-se de desleixo. Num interessantíssimo e acutilante texto publicado no início deste ano na revista do Expresso  (em 5 de Janeiro) e intitulado “Lixo linguístico”, Pedro Mexia lembrava que “em 1981 Vasco Graça Moura pediu a 68 poetas, ensaístas, romancistas, historiadores, académicos, críticos e jornalistas um testemunho sobre os desafios que a língua portuguesa enfrentava.” O resultado foi publicado dois anos depois pela Imprensa Nacional: 17 textos. Isto quereria dizer, concluiu então Vasco Graça Moura, que aqueles a quem endereçou tal desafio “não consideravam ‘preocupante’ ou ‘pertinente’ a questão da língua e o seu uso.”
Ainda não consideram. Ironia das ironias, acaba de chegar às lojas um volume antológico da obra completa do poeta açoriano J. H. Santos Barros (1946-1983) intitulado Alexandrina, Como Era – Todos os Poemas, editado pela mesma Imprensa Nacional, filtrado pelo “acordo ortográfico” de 1990 mas todo ele ligado, ou escrito, ou prefaciado, por gente que discorda do dito “acordo” e não o usa na escrita (António Lobo Antunes, autor do prefácio, que só escapou à acordização por não usar ali nenhuma palavra propensa a alterações; Jorge Reis-Sá, autor da nota à edição; e, pior ainda, o próprio Vasco Graça Moura, que criou a colecção onde o livro é publicado, a Plural Poesia, e era feroz adversário do “acordo”). Claro que isto não importa aos editores: o desrespeito por tais opções faz-se lei pela imposição.
Mas adiante, que ainda não chegámos aos acentos (alguns escreveriam “chegamos”, mas convém sempre distinguir o tempo verbal na escrita, para evitar confusões: aqui é passado, não presente). Em finais do ano passado, coincidiram em Lisboa dois textos exemplares quanto à não-acentuação. O primeiro, em Setembro, foi a edição nacional (igual à brasileira, como deve ser) do mais recente livro do escritor e compositor brasileiro Nelson Motta, Força Estranha. Nele, tão estranha quanto a força intrínseca do livro, estava (e está) a ausência de uma série de acentos gráficos. Podia ser estilo, e assim percebia-se, mas não é. Nem sequer é respeito pelo “acordo ortográfico” de 1990, já que, à data, ele disse ao PÚBLICO: “Achei uma bobagem esse negócio da nova ortografia, não faz o menor sentido.” O que é, então? Ele atribuiu o caso a erro de revisão. O certo é que, no livro, a par de palavras como “côro” e “idéia” acentuadas (respeitando, e bem, a ortografia brasileira pré-1990), surgem palavras sem acento como “voce” (você), “taxi” (táxi), “dificil” (difícil), “ridiculo” (ridículo) ou “Polonia” (Polónia, que é Polônia no Brasil) ou “chines” (chinês). E há incongruências como, na mesma linha (pág. 175) surgir “tablóides” e, a seguir, “escandalos” (sem acento).
Mas nada supera o que sucedeu, em Novembro, com o manifesto-convocatória da Marcha Pela Eliminação de Todas as Formas de Violência Contra as Mulheres. Já na palavra de ordem inserida na capa se lia “Basta de violencia” (sem acento). Mas no interior, num texto aliás longo, não há uma única palavra acentuada. E assim temos “sistemica”, “confortavel”, “nao”, “genero”, “assedio”, “adulterio”, “hipocrita”, “indigenas” ou sentencas”, “intencao”, “exploracao” (estas últimas sem cedilha), etc. Os promotores da malograda proposta de acordo ortográfico de 1986 devem ter pulado de gozo: também eles propunham a abolição (ou seria “abolicao”?) dos acentos, poupando-nos a essa maçadoria de uma escrita clara e fácil de entender sem memorizações ou segundas leituras. Também eles, nesse malfadado texto, escreviam “licito” (por lícito), “vocabulos” (por vocábulos) ou “grafica” (por gráfica).
Rosto e interior da convocatória para a manifestação de Novembro de 2018
Pois bem: tirem os assentos aos acentos, e eles caem; como as pessoas quando lhes tiram, sem aviso, a cadeira. E com os acentos caem as palavras, nesse lamaçal ininteligível para onde os “acordos” têm vindo a arrastá-las.
É esse o “lixo linguístico”, que tanto repugna.

COMENTÁRIOS:
JOSE RIBEIRO CASTRO, Lisboa 15.03.2019: Clap! Clap! Clap! Vozes: "Muito bem!"

mzeabranches, 14.03.2019:  Que a 'palavra' de Sophia, cujo centenário do nascimento se celebra este ano, acorde quem devia vir publicamente gritar contra o AO90, em defesa da nossa língua, e prefere calar-se e acomodar-se: «PERFEITO Perfeito é não quebrar / A imaginária linha / Exacta é a recusa / E puro é o nojo.» P.S.: Há por aqui quem confunda língua de comunicação e língua vernácula, fazendo a apologia da 'simplificação' (tipo 'inglês do aeroporto'), e esquecendo-se de «reconhecer o conteúdo cultural fundamental de cada língua», detentora «duma filosofia do mundo, dum imaginário, e mesmo de utopias, que estão inscritas no tecido da sua gramática, na estrutura das suas palavras e na organização das suas frases» (Claude Hagège, "Contre la pensée unique", que traduzi).

mzeabranches, 14.03.2019: Que «poetas, ensaístas, romancistas, historiadores, académicos, críticos e jornalistas» e professores (!!!), enfim todos aqueles que existem pela palavra, não considerem «‘preocupante’ ou ‘pertinente’ a questão da língua e o seu uso”» só se pode entender como consequência dos séculos de analfabetismo em que este país viveu! Tanta ignorância é uma vergonha! Não compro nem leio, inclusivamente artigos de opinião, que estropiem o português europeu. E este desrespeito pela nossa língua é também um ataque à democracia: quem autorizou os políticos, eleitos por nós, a apoderarem-se da língua de Portugal e a negociá-la, como se fossem donos dela? Quantas eleições houve desde 1990, sem que o tema do AO90 fosse sequer abordado? E a AR, que anda a 'fingir' grupos de trabalho inoperantes? Vergonha!!!

Mário Orlando Moura Pinto Setúbal, 14.03.2019:  Excelente!

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