Mais um bom texto de Nuno Pacheco e respectivos comentários, de quem só
pode sentir tristeza por um país que assim vai morrendo, na inércia contra a
ignomínia que desvirtuou a própria língua, na indiferença dos que, julgando talvez
angariar, com esse rebaixamento cultural subserviente, através da “simplificação”
linguística, melhores relações económicas, só se identificam com tristes
traidores à sua própria pátria, o que, aliás, não lhes faz mossa, na desordem
geral de princípios em que vegetamos ultimamente, pobres que somos.
Já há muito se explicou a sua insensatez
de acomodação a um AO que se provou falho de lógica na desobediência a
características de etimologia indispensáveis em termos da própria compreensão
oral, por exemplo, e tantos outros casos sensaborões adulteradores da escrita e
da fonética. Nuno Pacheco debruça-se
sobre os sinais diacríticos, nomeadamente os acentos gráficos de que se semeiam
tantos comentários, na indiferença ignara do desrespeito impune.
Cultura-Ípsilon: OPINIÃO
Arranjem uns assentos para os acentos,
senão eles caem
PÚBLICO,
Em 1986 havia quem propusesse para o
“acordo ortográfico” a abolição (ou seria “abolicao”?) dos acentos. Não passou,
mas mesmo assim há quem a pratique.
Há
quem os odeie, ou baralhe, ou ignore, mas é injusto. Porque os acentos operam
milagres. Alteram, com um simples traço, pais em país, e transformam uma
fracção de unidade, o avo, num avô ou numa avó, consoante se escolha o acento
(ou sinal diacrítico) adequado. Isto na escrita, porque na oralidade ninguém
confundirá pais, país, avos ou avós. Que se saiba…
Mas,
tal como se despreza a boa escrita, há muito que se começou a desprezar os
acentos. O cantor e
compositor brasileiro Caetano Veloso disse um dia que a língua
portuguesa não tem acentos demais, tem até acentos a menos. Na sequência disso,
num artigo que escreveu no jornal O Globo, em 2012, a propósito do
“acordo ortográfico” de 1990 (“outra maluquice”, dizia ele), falou assim da
língua: “É seguro que a ausência de acentos a torna mais fácil? A facilidade é
uma virtude para uma língua? Ouço muitos malucos brasileiros dizerem que ‘o
português é uma língua muito difícil’. De onde vem essa ideia? Do Ministério da
Pesca?”
Sim, o Ministério da Pesca deve ter
culpas. Mas antes dele deve haver, até entre escritores, quem ache que a
escrita merece tudo menos cuidados e apuro. Não se trata de criatividade
gráfica, que essa é também uma arte (veja-se Guimarães Rosa ou Mia Couto),
trata-se de desleixo. Num
interessantíssimo e acutilante texto publicado no início deste ano na revista
do Expresso (em 5 de Janeiro) e intitulado “Lixo
linguístico”, Pedro Mexia lembrava que “em 1981 Vasco Graça Moura pediu a 68
poetas, ensaístas, romancistas, historiadores, académicos, críticos e
jornalistas um testemunho sobre os desafios que a língua portuguesa
enfrentava.” O resultado foi publicado dois anos depois pela Imprensa Nacional:
17 textos. Isto quereria dizer, concluiu então Vasco Graça Moura, que aqueles a
quem endereçou tal desafio “não consideravam ‘preocupante’ ou ‘pertinente’ a
questão da língua e o seu uso.”
Ainda não consideram. Ironia das
ironias, acaba de chegar às lojas um volume antológico da obra completa do
poeta açoriano J. H. Santos Barros (1946-1983) intitulado Alexandrina,
Como Era – Todos os Poemas, editado pela mesma Imprensa Nacional, filtrado pelo
“acordo ortográfico” de 1990 mas todo ele ligado, ou escrito, ou prefaciado,
por gente que discorda do dito “acordo” e não o usa na escrita (António Lobo
Antunes, autor do prefácio, que só escapou à acordização por não usar ali
nenhuma palavra propensa a alterações; Jorge Reis-Sá, autor da nota à edição;
e, pior ainda, o próprio Vasco Graça Moura, que criou a colecção onde o livro é
publicado, a Plural Poesia, e era feroz adversário do “acordo”). Claro que isto
não importa aos editores: o desrespeito por tais opções faz-se lei pela
imposição.
Mas
adiante, que ainda não chegámos aos acentos (alguns escreveriam “chegamos”,
mas convém sempre distinguir o tempo verbal na escrita, para evitar confusões:
aqui é passado, não presente). Em finais do ano passado, coincidiram em Lisboa
dois textos exemplares quanto à não-acentuação. O primeiro, em Setembro, foi a
edição nacional (igual à brasileira, como deve ser) do mais recente livro do
escritor e compositor brasileiro Nelson Motta, Força Estranha. Nele, tão
estranha quanto a força intrínseca do livro, estava (e está) a ausência de
uma série de acentos gráficos. Podia ser estilo, e assim percebia-se, mas não
é. Nem sequer é respeito pelo “acordo ortográfico” de 1990, já que, à data, ele
disse ao PÚBLICO: “Achei uma bobagem esse negócio da nova ortografia, não faz o
menor sentido.” O que é, então? Ele atribuiu o caso a erro de revisão. O certo
é que, no livro, a par de palavras como “côro” e “idéia” acentuadas
(respeitando, e bem, a ortografia brasileira pré-1990), surgem palavras sem
acento como “voce” (você), “taxi” (táxi), “dificil” (difícil), “ridiculo”
(ridículo) ou “Polonia” (Polónia, que é Polônia no Brasil) ou “chines”
(chinês). E há incongruências como, na mesma linha (pág. 175) surgir
“tablóides” e, a seguir, “escandalos” (sem acento).
Mas
nada supera o que sucedeu, em Novembro, com o manifesto-convocatória da
Marcha Pela Eliminação de Todas as Formas de Violência Contra as Mulheres.
Já na palavra de ordem inserida na capa se lia “Basta de violencia” (sem
acento). Mas no interior, num texto aliás longo, não há uma única palavra
acentuada. E assim temos “sistemica”, “confortavel”, “nao”, “genero”,
“assedio”, “adulterio”, “hipocrita”, “indigenas” ou sentencas”, “intencao”,
“exploracao” (estas últimas sem cedilha), etc. Os promotores da malograda
proposta de acordo ortográfico de 1986 devem ter pulado de gozo: também eles
propunham a abolição (ou seria “abolicao”?) dos acentos, poupando-nos a essa
maçadoria de uma escrita clara e fácil de entender sem memorizações ou segundas
leituras. Também eles, nesse malfadado texto, escreviam “licito” (por lícito),
“vocabulos” (por vocábulos) ou “grafica” (por gráfica).
Rosto
e interior da convocatória para a manifestação de Novembro de 2018
Pois bem: tirem os assentos aos
acentos, e eles caem; como as pessoas quando lhes tiram, sem aviso, a cadeira.
E com os acentos caem as palavras, nesse lamaçal ininteligível para onde os
“acordos” têm vindo a arrastá-las.
É esse o “lixo linguístico”, que
tanto repugna.
COMENTÁRIOS:
mzeabranches, 14.03.2019: Que a 'palavra' de Sophia, cujo centenário do
nascimento se celebra este ano, acorde quem devia vir publicamente gritar
contra o AO90, em defesa da nossa língua, e prefere calar-se e acomodar-se:
«PERFEITO Perfeito é não quebrar / A imaginária linha / Exacta é a recusa / E puro
é o nojo.» P.S.: Há por aqui quem confunda língua de comunicação e língua
vernácula, fazendo a apologia da 'simplificação' (tipo 'inglês do aeroporto'),
e esquecendo-se de «reconhecer o conteúdo cultural fundamental de cada língua»,
detentora «duma filosofia do mundo, dum imaginário, e mesmo de utopias, que
estão inscritas no tecido da sua gramática, na estrutura das suas palavras e na
organização das suas frases» (Claude Hagège, "Contre la pensée
unique", que traduzi).
mzeabranches, 14.03.2019: Que «poetas, ensaístas, romancistas, historiadores,
académicos, críticos e jornalistas» e professores (!!!), enfim todos aqueles
que existem pela palavra, não considerem «‘preocupante’ ou ‘pertinente’ a
questão da língua e o seu uso”» só se pode entender como consequência dos
séculos de analfabetismo em que este país viveu! Tanta ignorância é uma
vergonha! Não compro nem leio, inclusivamente artigos de opinião, que estropiem
o português europeu. E este desrespeito pela nossa língua é também um ataque
à democracia: quem autorizou os políticos, eleitos por nós, a apoderarem-se da
língua de Portugal e a negociá-la, como se fossem donos dela? Quantas eleições
houve desde 1990, sem que o tema do AO90 fosse sequer abordado? E a AR, que
anda a 'fingir' grupos de trabalho inoperantes? Vergonha!!!
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