Parecem truques de prestidigitação dos
nossos tempos de exaltação q.b. Esperemos que saiam apenas coelhos da cartola.
Ou pombinhas a voar. Mas os textos – o de Helena Matos sobre as novas responsabilidades que pendem sobre as
crianças, (que dantes também participavam, plantando árvores para a floresta,
mas sem a arrogância oratória de hoje) – o de Rui Ramos sobre o Brexit provisoriamente gorado – são, de
facto, aprazíveis, para a nossa meditação domingueira. O problema é se não há cartola. E rede, é claro.
I - CRÓNICA: Os
meninos à roda da propaganda /premium
O menino que em 2012 chorava porque a mãe
não tinha dinheiro para comprar bolachas agora quer salvar o planeta. O que mudou? A cor política do Governo.
As bolachas, essas continuam iguais.
Sempre
que uma nova causa nos é apresentada lá está ele: o jornalismo activista.
(Obviamente também está Catarina Martins enquadrando a “nova luta” “num dia
histórico” mas isso não é propriamente um assunto que valha a pena ser
comentado, é mais o nosso fado.)
Voltando
ao jornalismo activista, em 2012 os meninos portugueses choravam porque as mães
não Sobre mudançaslhes podiam comprar bolachas. Nem fiambre. Nem flocos.
Afiançadamente as crianças e os jovens não conseguiam concentrar-se nas aulas
porque tinham fome. Fizeram-se concertos e emissões especiais nas televisões e
rádios para apoiar as crianças com fome. Eram os tempos dos meninos da lágrima
porque não havia dinheiro para bolachas, chorados em textos como “O menino que Gaspar não conhece”, publicado pelo Expresso em
Novembro de 2012: “Supermercado do centro comercial das Amoreiras, fim da tarde
de terça-feira. Uma jovem mãe, acompanhada do filho com seis anos, está a pagar
algumas compras que fez: leite, manteiga, fiambre, detergentes e mais alguns
produtos. Quando chega ao fim, a empregada da caixa revela: são 84 euros. A mãe
tem um sobressalto, olha para o dinheiro que traz na mão e diz: vou ter de
deixar algumas coisas. Só tenho 70 euros. Começa a pôr de lado vários produtos
e vai perguntando à empregada da caixa se já chega. Não, ainda não. Ainda
falta. Mais uma coisa. Outra. Ainda é preciso mais? É. Então este pacote de
bolachas também fica. Aí o menino agarra na manga do casaco da mãe e fala:
Mamã, as bolachas não, as bolachas não. São as que eu levo para a escola. A
mãe, meio envergonhada até porque a fila por trás dela começava a engrossar,
responde: tem de ser, meu filho. E o menino de lágrima no canto do olho a
insistir: mamã, as bolachas não. As bolachas não.”
Lembrei-me
do “menino que Gaspar não conhece” quando esta semana li por essa imprensa
fora os textos que noticiavam a dita greve climática, nomeadamente no
mesmo Expresso uma espécie de panfleto intitulado “Trazem flores nos olhos para
mudar o planeta“. Comecei a ler aquelas linhas que redimem
José Jorge Letria daquela prosa em verso que levou muita gente a desistir do
PREC: “Numa manhã quente de inverno foram eles e elas — muitas e muitas elas —
que nesta sexta-feira encheram as ruas do centro de Lisboa de cor e sons. De
cartazes toscos e simples. De luz e crença de que ainda há tempo e de gritos de
que é possível tirar o planeta da lixeira e criar-lhes um futuro” e
constatei que os meninos que não podiam comer bolachas em 2012 cresceram e
agora querem salvar o planeta mesmo que para tal tenham de fechar fábricas, as
de bolachas incluídas.
Com
um imaginário algures entre a Disney e as “Brumas de Avalon” empunham-se
cartazes (por sinal de papel) pedindo o fim dos eucaliptos. Fazem-se
declarações contra o plástico, agora transformado em inimigo público nº 1 (já
agora, qual é o substituto para o plástico descartável nos hospitais?)
Inevitavelmente lá temos o pedido do fim do capitalismo (Será lapso meu mas
parece-me que nunca em manifestação alguma destas tão bem intencionadas, tão
apolíticas, tão avançadas… se viu um cartaz a pedir o fim do comunismo, o que,
no que ao planeta diz respeito, seria particularmente adequado se se tiver em
conta o saldo ambientalmente desastroso que o comunismo deixou nos países em
que se impôs.)
Valha
a verdade que já tinha percebido que os meninos agora não comem bolachas, não
porque as mães não tenham dinheiro, mas sim porque desde que em 2015 o
país passou a descrispar e a beneficiar dos efeitos de uma governação
esclarecida, as bolachas se tornaram num símbolo da comida processada, logo são
responsáveis pela obesidade das crianças, pela desflorestação do planeta e pela
poluição da Mãe Natureza (devidamente maiusculada nos cartazes da dita greve
climática). Resumindo e concluindo, as crianças imbuídas desta consciência
(outrora os conscientes liam Marx agora soletram calorias e tabelas de
conservantes) deixaram de pedir bolachas.
Podia
pensar-se que o jornalismo activista se teria interessado pelas crianças que em
2017, 2018, 2019… viram os seus tratamentos médicos adiados. Ou perderam vários
dias de aula por causa das várias greves. Mas não, nada disso aconteceu. Esses
meninos ninguém os viu. O menino que em 2012 chorava porque queria bolachas deu
lugar, mediaticamente falando, em 2019, ao jovem a quem sobra vontade
para salvar o planeta.
Agora
os meninos são recebidos pelo Governo que se cola a todas as iniciativas de
combate, luta e contestação aos antagonistas da moda: o plástico ou Trump. O
heteropatriarcado e as alterações climáticas. Em termos internos não se
questiona, afastam-se os que dão mostras de independência, os procedimentos
estão cada vez mais opacos… mas o que conta é a presença do governos nestas contestações-evento.
E não duvido de que a discussão do voto aos 16 anos aí estará mais dia menos
dia. Há sempre uma fogueira-propaganda à nossa espera.
II- Não se riam do Reino Unido, para o
resto do mundo não se rir de vós /premium
O Brexit revelou os limites da democracia
numa Europa perplexa perante um mundo que lhe escapa. Não se riam do Reino
Unido, para o resto do mundo não se rir de vós.
Tudo
deveria ter sido muito simples: os cidadãos do Reino Unido votaram para deixar
a União Europeia, o governo invocou o artigo de saída, a data ficou marcada, e
no próximo dia 29 o Reino Unido deveria sair da UE. Acontece que provavelmente
não vai sair. Nem no dia 29, nem, também provavelmente, em qualquer data
próxima. Afinal, nada era simples. Uma das
razões invocadas para justificar a saída — a soberania parlamentar – tornou-se
rapidamente uma das razões para essa saída ser difícil: afinal, não bastava o
referendo, o parlamento também tinha de votar. Pior: também muito rapidamente,
descobriu-se que o voto pela saída não definira qual o tipo de saída. Mais
ainda: a maioria de 2016 começou a parecer demasiado curta e circunstancial
para não poder ser revertida em novo referendo. E eis como, ao fim de dois
anos, estamos quase no princípio, com o Brexit a ameaçar tornar-se uma doença
crónica da UE.
Há
quem culpe Theresa May, demasiado fraca, e há quem culpe os brexiteers,
demasiado intransigentes com qualquer acordo. Há quem culpe Jeremy Corbyn,
apostado em usar o Brexit para precipitar novas eleições. E há quem, claro,
culpe Bruxelas, tentada a fazer do Reino Unido um exemplo de como, na
integração europeia, a porta de saída é a porta para o inferno. Todas essas acusações
terão algum fundamento. Nenhuma, porém, captura a verdadeira dificuldade.
O cepticismo britânico em relação à
Europa não une, divide: divide a Inglaterra, mais eurocéptica, de Gales,
Escócia e Irlanda do Norte, mais europeístas; divide Londres, mais europeísta,
das províncias, mais eurocépticas; e finalmente, divide cada um dos partidos de
governo, Conservadores e Trabalhistas, ambos estilhaçados em correntes e
facções. Os Conservadores, mais eurocépticos, têm uma líder suspeita de querer
ficar na UE, e os Trabalhistas, mais europeístas, têm um líder suspeito de
querer sair. No parlamento, as únicas maiorias são negativas.
O
eurocepticismo britânico também não é homogéneo nem corresponde a um projecto
claro. Na restante Europa, é costume atribuí-lo a alguma ressaca imperial, ou a
complexos de insularidade. Há alguma coisa disso, mas não é só isso. O
eurocepticismo já foi esquerdista nos anos 70, quando os Trabalhistas fizeram
campanha contra a adesão à CEE, para depois ser direitista nos anos 90, quando
os Conservadores se começaram a agitar contra o “federalismo” de Bruxelas. Neste momento, ninguém sabe o que o Brexit poderá
significar: uma Singapura, com um governo conservador, ou uma Venezuela, com um
governo de Corbyn? Mas também ninguém sabe o que ficar na UE significa.
Ora,
nada disto é muito diferente do que se passa na restante Europa, onde as
votações em candidatos hostis à UE começam a ser enormes: em França, em Abril
de 2017, Marine Le Pen e Jean-Luc Mélenchon conseguiram, em conjunto,
40% dos votos; na Itália, em Março de 2018, o Cinco Estrelas e a coligação de
Matteo Salvini, tiveram 69%. É
verdade: nada aconteceu. Muita gente já se desiludiu com a UE, mas ninguém
descobriu alternativa. Os europeus vivem num mundo em que pesam cada vez menos,
e em sociedades em que a continuidade demográfica e os modelos sociais não
parecem garantidos. Toda a gente tem soluções – mais nacionalismo para uns,
mais europeísmo para outros –, mas nenhuma solução tem uma maioria. Somos, a
esse respeito, todos britânicos.
A grande diferença é que o Reino
Unido, através do referendo, por mais circunstancial que tenha sido a sua
origem, enfrentou a questão. Mas como se tem visto, nem sempre votos e debates
levam a soluções. O Brexit revelou os limites da democracia numa Europa
perplexa perante um mundo que lhe escapa. Não se riam do Reino Unido, para o
resto do mundo não se rir de vós.
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