Recebi um email de Salles da Fonseca, que parte para férias, desta vez às Arábias, mas
deixou trabalho de casa: a leitura integral da Carta
de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro
sobre a génese da sua heteronímia, que Pessoa atribui a tendências
primárias de despersonalização, mas que as leituras e estudos que desenvolveu
posteriormente sedimentaram na construção da sua personalidade literária de tão
genial dimensão que parece profanação qualquer referência que não seja retirada
do êxtase admirativo por um génio que se afirma numa constante busca do “eu”,
da unidade, e simultaneamente do Absoluto, e daí o sentido ontológico,
metafísico da sua mensagem, que tanto informa o seu ortónimo, como os vários
heterónimos, de uma complexidade existencial absurda, como o absurdo que
pressentiu e ditou toda a variadíssima gama de anotações vivenciais de tantas
vezes paradoxal transfiguração. Se vem à baila o já lugar comum “uno, nessuno, centomila” de Pirandello
para justificar a multiplicidade de “eus” que informam a multiplicidade de “peças”
literárias que Pessoa protagonizou, parece-me profanação esta de sequer tentar
referi-lo, leiga que sou, e extática perante o génio que no baú da sua modéstia
- consciente, todavia, da sua riqueza, que um “Abre-te Sésamo” posterior, foi descobrindo (e continua) - lançou páginas
de uma riqueza que nos transcende. Mas é com muito prazer que registo no meu
blog a carta de Fernando Pessoa que
Salles da Fonseca deixou para lermos, enquanto viaja por sítios da sua
curiosidade, que depois traduzirá generosamente, sem malabarismos de génio, mas
com a clareza da cumplicidade e da solidariedade.
I - “ATÉ AO MEU
REGRESSO: VIAGEM ÀS
ARÁBIAS
A 8 de
Março inicio a viagem que inclui o périplo da Península Arábica. Se a
guerra civil do Iémen e os piratas da Somália não interferirem no
programa e tudo correr como planeado, estarei de volta no dia 26. Sobrevivendo,
depois conto. Abraços, Henrique
Henrique Salles da
Fonseca
A BEM DA NAÇÃO, 07.03.19
Fernando Pessoa Caixa Postal 147, Lisboa, 13 de Janeiro de 1935
Meu prezado Camarada:
Muito agradeço a sua
carta, a que vou responder imediata e integralmente. Antes de, propriamente,
começar, quero pedir-lhe desculpa de lhe escrever neste papel de cópia.
Acabou-se-me o decente, é Domingo, e não posso arranjar outro. Mas mais vale,
creio, o mau papel que o adiamento.
Em primeiro lugar,
quero dizer-lhe que nunca eu veria «outras razões» em qualquer coisa que
escrevesse, discordando, a meu respeito. Sou um dos poucos poetas portugueses
que não decretou a sua própria infalibilidade, nem toma qualquer crítica, que
se lhe faça, como um acto de lesa-divindade. Além disso, quaisquer que sejam os
meus defeitos mentais, é nula em mim a tendência para a mania da perseguição. À
parte isso, conheço já suficientemente a sua independência mental, que, se me é
permitido dizê-lo, muito aprovo e louvo. Nunca me propus ser Mestre ou
Chefe-Mestre, porque não sei ensinar, nem sei se teria que ensinar; Chefe,
porque nem sei estrelar ovos. Não se preocupe, pois, em qualquer ocasião, com o
que tenha que dizer a meu respeito. Não procuro caves nos andares nobres.
Concordo
absolutamente consigo em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz com
um livro da natureza de «Mensagem». Sou, de facto, um nacionalista místico, um
sebastianista racional. Mas sou, à parte isso, e até em contradição com isso,
muitas outras coisas. E essas coisas, pela mesma natureza do livro, a
«Mensagem» não as inclui.
Comecei por esse livro
as minhas publicações pela simples razão de que foi o primeiro livro que
consegui, não sei porquê, ter organizado e pronto. Como estava pronto,
incitaram-me a que o publicasse: acedi. Nem o fiz, devo dizer, com os olhos
postos no prémio possível do Secretariado, embora nisso não houvesse pecado
intelectual de maior. O meu livro estava pronto em Setembro, e eu julgava,
até, que não poderia concorrer ao prémio, pois ignorava que o prazo para
entrega dos livros, que primitivamente fora até fim de Julho, fora alargado até
ao fim de Outubro. Como, porém, em fim de Outubro já havia exemplares prontos
da «Mensagem», fiz entrega dos que o Secretariado exigia. O livro estava
exactamente nas condições (nacionalismo) de concorrer. Concorri.
Quando às vezes
pensava na ordem de uma futura publicação de obras minhas, nunca um livro do
género de «Mensagem» figurava em número um. Hesitava entre se deveria
começar por um livro de versos grande — um livro de umas 350 páginas —,
englobando as várias subpersonalidades de Fernando Pessoa ele mesmo, ou se
deveria abrir com uma novela policiária, que ainda não consegui completar.
Concordo consigo,
disse, em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz, com a publicação
de «Mensagem». Mas concordo com os factos que foi a melhor estreia que eu
poderia fazer. Precisamente porque essa faceta — em certo modo secundária —
da minha personalidade não tinha nunca sido suficientemente manifestada nas
minhas colaborações em revistas (excepto no caso do Mar Português parte deste
mesmo livro) — precisamente por isso convinha que ela aparecesse, e que
aparecesse agora. Coincidiu, sem que eu o planeasse ou o premeditasse (sou
incapaz de premeditação prática), com um dos momentos críticos (no sentido
original da palavra) da remodelação do subconsciente nacional. O que fiz
por acaso e se completou por conversa, fora exactamente talhado, com Esquadria
e Compasso, pelo Grande Arquitecto.
(Interrompo.
Não estou doido nem bêbado. Estou, porém, escrevendo directamente, tão depressa
quanto a máquina mo permite, e vou-me servindo das expressões que me ocorrem,
sem olhar a que literatura haja nelas. Suponha — e fará bem em supor, porque é
verdade — que estou simplesmente falando consigo).
Respondo agora
directamente às suas três perguntas:
(1) plano
futuro da publicação das minhas obras, (2) génese dos meus heterónimos, e (3) ocultismo.
Feita, nas condições
que lhe indiquei, a publicação da «Mensagem», que é uma manifestação
unilateral, tenciono prosseguir da seguinte maneira. Estou agora
completando uma versão inteiramente remodelada do Banqueiro Anarquista, essa
deve estar pronta em breve e conto, desde que esteja pronta, publicá-la
imediatamente. Se assim fizer, traduzo imediatamente esse escrito para inglês, e
vou ver se o posso publicar em Inglaterra. Tal qual deve ficar, tem
probabilidades europeias. (Não tome esta frase no sentido de Prémio Nobel imanente).
Depois — e agora respondo propriamente à sua pergunta, que se reporta a
poesia — tenciono, durante o verão, reunir o tal grande volume dos
poemas pequenos do Fernando Pessoa ele mesmo, e ver se o consigo publicar em
fins do ano em que estamos. Será esse o volume que o Casais Monteiro espera, e
é esse que eu mesmo desejo que se faça. Esse, então, será as facetas todas,
excepto a nacionalista, que «Mensagem» já manifestou.
Referi-me,
como viu, ao Fernando Pessoa só. Não penso nada do Caeiro, do Ricardo Reis ou
do Álvaro de Campos. Nada disso poderei fazer, no sentido de
publicar, excepto quando (ver mais acima) me for dado o Prémio Nobel. E contudo — penso-o com tristeza — pus no
Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis
toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em
Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida. Pensar, meu
querido Casais Monteiro, que todos estes têm que ser, na prática da publicação,
preteridos pelo Fernando Pessoa, impuro e simples!
Creio que respondi à
sua primeira pergunta.
Se fui omisso, diga em
quê. Se puder responder, responderei. Mais planos não tenho, por enquanto. E,
sabendo eu o que são e em que dão os meus planos, é caso para dizer, Graças a
Deus!
Passo agora a
responder à sua pergunta sobre a génese dos meus heterónimos. Vou ver se
consigo responder-lhe completamente.
Começo pela parte psiquiátrica.
A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim.
Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um
histero-neurasténico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim
fenómenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registo
dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na
minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a
simulação. Estes fenómenos — felizmente para mim e para os outros —
mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida
prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo —
os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher — na mulher os fenómenos
histéricos rompem em ataques e coisas parecidas — cada poema de Álvaro de
Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a
vizinhança. Mas sou homem — e nos
homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em
silêncio e poesia...
Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica
do meu heteronimismo. Vou agora fazer-lhe a história directa dos meus
heterónimos. Começo por aqueles que morreram e de alguns dos quais já me não
lembro — os que jazem perdidos no passado remoto da minha infância quase
esquecida.
Desde criança tive a
tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e
conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não
existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não
devemos ser dogmáticos).
Desde
que me conheço como sendo aquilo a que chamo «eu», me lembro de precisar
mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais
que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos,
porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que
me vem desde que me lembro de ser um «eu», tem-me acompanhado sempre, mudando
um pouco o tipo de música com que me encanta mas não alterando nunca a sua maneira
de encantar.
Lembro, assim, o que
me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou, antes, o meu primeiro
conhecido inexistente — um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem
escrevia cartas dele a mim mesmo e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda
conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. Lembro-me,
com menos nitidez, de uma outra figura, cujo nome já me não ocorre mas que o
tinha estrangeiro também, que era, não sei em quê, um rival do Chevalier de Pas... Coisas que acontecem a todas as
crianças? Sem dúvida — ou talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo ainda,
pois que as relembro de tal modo que é mister um esforço para me fazer saber
que não foram realidades.
Esta tendência para
criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente,
nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida
já em maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um
motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem suponho que sou. Dizia-o,
imediatamente, espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome
inventava, cuja história acrescentava e cuja figura — cara, estatura, traje e
gesto — imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei e propaguei
vários amigos e conhecidos que nunca existiram mas que ainda hoje, a perto de
trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto vejo... E
tenho saudades deles.
(Em eu começando a
falar — e escrever à máquina é para mim falar —, custa-me a encontrar o travão.
Basta de maçada para si, Casais Monteiro! Vou entrar na génese dos meus
heterónimos literários, que é, afinal, o que V. quer saber. Em todo o caso, o
que vai dito acima dá-lhe a história da mãe que os deu à luz).
Aí por
1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me
à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso
irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade)
e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago
retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu
soubesse, o Ricardo Reis).
Ano e
meio ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro
— de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada e apresentar-lho, já me
não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei
uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914 —
acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé,
como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa
espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da
minha vida e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de
alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo
da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que
tive. E tanto assim que, escritos
que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e
escrevi, a fio também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de
Fernando Pessoa. Alberto Caeiro a Fernando Pessoa, ele só. Ou, melhor, foi a
reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.
Aparecido Alberto
Caeiro, tratei logo de lhe descobrir — instintiva e subconscientemente — uns
discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente,
descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via.
Criei, então,
uma coterie inexistente E, de repente e em derivação oposta à de
Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto e à máquina
de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode
Triunfal de Álvaro de Campos — a Ode com esse nome e o homem com
o nome que tem.. Fixei aquilo tudo em moldes de
realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as
discussões e as divergências de critérios e em tudo isto me parece que fui
eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou
independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia
eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos,
verá como eles são diferentes e como eu não sou nada na matéria.
Quando foi da
publicação de «Orpheu», foi preciso, à última hora, arranjar qualquer coisa
para completar o número de páginas. Sugeri então ao Sá-Carneiro que eu fizesse
um poema «antigo» do Álvaro de Campos — um poema de como o Álvaro de Campos
seria antes de ter conhecido Caeiro e de ter caído sob a sua influência. E
assim fiz o Opiário, em
que tentei dar todas as tendências latentes do Álvaro de Campos, conforme
haviam de ser depois reveladas, mas sem haver ainda qualquer traço de
contacto com o seu mestre Caeiro. Foi, dos poemas que tenho escrito, o que
me deu mais que fazer, pelo duplo poder de despersonalização que tive que
desenvolver. Mas, enfim, creio que não saiu mau e que dá o Álvaro em
botão...
Creio que lhe
expliquei a origem dos meus heterónimos.
Se há, porém, qualquer
ponto em que precisa de um esclarecimento mais lúcido — estou escrevendo
depressa e quando escrevo depressa não sou muito lúcido —, diga, que de bom
grado lho darei. E, é verdade, um complemento verdadeiro e histérico: ao
escrever certos passos das Notas para recordação do meu Mestre Caeiro, do
Álvaro de Campos, tenho chorado lágrimas verdadeiras. É para que saiba com quem
está lidando, meu caro Casais Monteiro!
Mais uns apontamentos nesta matéria... Eu vejo diante
de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro,
Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Construi-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas
tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em
Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem
educação quase alguma. Álvaro de
Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890
(às 1.30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o
horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por
Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente
frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um
pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é
alto (1,75 m de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a
curvar-se. Cara rapada todos — o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um
vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu
português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo.
Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma — só instrução
primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe e deixou-se ficar em casa, vivendo de
uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado
num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois
se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação
alheia e um semi-helenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma
educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia,
primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde
resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.
Como escrevo em nome
desses três?... Caeiro, por pura e
inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo
Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa
ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê.
(O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que
aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos,
parece sempre que está cansado ou sonolento, de sorte que tem um pouco
suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um
constante devaneio. É um semi-heterónimo
porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas
uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue
à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro
escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer «eu
próprio» em vez de «eu mesmo», etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo
que considero exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis —
ainda inédita — ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais
espontânea, em verso).
Nesta altura, estará o
Casais Monteiro pensando que má sorte o fez cair, por leitura, em meio de um
manicómio. Em todo o caso, o pior de tudo isto é a incoerência com que o tenho
escrito. Repito, porém: escrevo como se estivesse falando consigo, para que
possa escrever imediatamente. Não sendo assim, passariam meses sem eu conseguir
escrever.
Falta responder à sua
pergunta quanto ao ocultismo.
Pergunta-me se creio no ocultismo. Feita assim, a pergunta não é
bem clara; compreendo, porém, a intenção e a ela respondo.
Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de
habitantes desses mundos, em experiências de diversos graus de espiritualidade,
subtilizando até se chegar a um Ente Supremo que presumivelmente criou este
mundo.
Pode ser que haja
outros Entes, igualmente Supremos, que hajam criado outros universos e que
esses universos coexistam com o nosso, interpenetradamente ou não. Por estas
razões e ainda outras, a Ordem Extrema do Ocultismo, ou seja, a Maçonaria,
evita (excepto a Maçonaria anglo-saxónica) a expressão «Deus», dadas as suas implicações teológicas e populares e
prefere dizer «Grande Arquitecto do Universo», expressão que deixa em branco o
problema de se Ele é criador, ou simples Governador do mundo.
Dadas estas escalas de
seres, não creio na comunicação directa com Deus mas, segundo a nossa
afinação espiritual, poderemos ir comunicando com seres cada vez mais altos.
Há três caminhos para o oculto:
o caminho mágico (incluindo
práticas como as do espiritismo,
intelectualmente ao nível da bruxaria, que é magia também); caminho
místico, que não tem propriamente perigos mas é incerto
e lento; e o que se chama o caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeito de
todos, porque envolve uma transmutação da própria personalidade que a prepara,
sem grandes riscos, antes com defesas que os outros caminhos não têm.
Quanto a «iniciação» ou não, posso
dizer-lhe só isto, que não sei se responde à sua pergunta: não pertenço a Ordem Iniciática nenhuma. A citação, epígrafe ao meu
poema Eros e Psique, de um trecho (traduzido, pois o Ritual é
em latim) do Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templária de Portugal, indica
simplesmente — o que é facto — que me foi permitido folhear os Rituais dos três
primeiros graus dessa Ordem, extinta, ou em dormência desde cerca de 1881. Se
não estivesse em dormência, eu não citaria o trecho do Ritual, pois se não
devem citar (indicando a ordem) trechos de Rituais que estão em trabalho.
Creio assim, meu
querido camarada, ter respondido, ainda com certas incoerências, às suas
perguntas. Se há outras que deseja fazer, não hesite em fazê-las. Responderei
conforme puder e o melhor que puder. O que poderá suceder e isso me desculpará
desde já, é não responder tão depressa.
Abraça-o o camarada
que muito o estima e admira,
Fernando Pessoa
Nenhum comentário:
Postar um comentário