Prova-se que não houve progresso em
purificação de costumes. Já a Igreja, por várias vezes, sofreu reveses, acusada
de luxo, hipocrisia, corrupção, atamancando, nos séculos clássicos, uma Contra-Reforma
defensiva a impor novas regras de mais responsabilização e afecto pelos dogmas de
pureza iniciais. Mas os escândalos são contínuos, e ultrapassam hoje – ou
talvez não, só que hoje são imediatamente assinalados - as histórias tantas
vezes sinistras do passado. Na parte que nos toca de intervenientes no processo
acusatório contra a tal corrupção ou contra os fanatismos hipócritas de uma
classe a quem, como acentua José
Pacheco Pereira se aponta igualmente tanta participação generosa
entre as várias sociedades espalhadas pelo mundo, escritores nossos foram
assinalando os tais erros, de Gil Vicente a Eça, Garrett, Herculano, Silva
Gaio, Júlio Dinis, Pessoa, Aquilino, Vergílio Ferreira… em registos de acusação
com mais ou menos seriedade ou ironia. O texto de José Pacheco Pereira refere essencialmente o problema do celibato
eclesiástico como causa fundamental dos casos de que o próprio papado se
encarregou hoje, nesta era de “transparência” mediática que parece mais
acentuar a perversão. E não resisti a transcrever o “Prólogo” de Herculano ao
seu “Eurico”, que estudávamos no 4º ano do liceu, na sua retórica de expressão
romântica, passadista, mas que releio com aplicação. No tempo da infiltração
visigótica na Península Ibérica, o celibato a que Eurico se condenou, ao
tornar-se presbítero de Carteia, por desgosto de amor, terá como consequências fatais,
no desfecho da intriga, a loucura da inocente Hermengarda e a bravura mortífera
de Eurico. Tratava-se de rigor na obediência às regras impostas. Hoje as regras
são transgredidas em desmesura e atrocidade e JPP condena o celibato eclesiástico, como causador da
corrupção - como Herculano o fez por
reacção essencialmente romanesca, de liberal convicto. JPP vem à liça impor um ponto de vista de
historiador e humanista. Concordo com ele. Mas não julgo que a liberalização do
casamento entre os sacerdotes resolvesse a questão da corrupção, hoje.
OPINIÃO: Os padres têm sexo
É difícil mudar em muitos aspectos a
moral sexual da Igreja e as suas consequências institucionais, mas sem uma
mudança profunda na atitude da Igreja em relação à sexualidade tudo vai
continuar na mesma.
JOSÉ PACHECO PEREIRA PÚBLICO2 de Março de 2019
Eu
não sou católico, nem apostólico, nem romano e sou um ateu que se classifica de
agnóstico para não ofender o Popper que há dentro de mim. Mas não sou, em 2019,
anticlerical, e reconheço no meu país, também em 2019, o papel muito importante
da Igreja, principalmente social e cultural. Não tenho qualquer vezo contra a
instituição e reconheço mesmo que numa sociedade sem valores muitos dos valores
do cristianismo que transporta a Igreja são positivos para a nossa vida
colectiva, mesmo quando a Igreja não dá o exemplo. Num país onde há muita
pobreza, muita exclusão, sem a Igreja tudo estaria muito pior, mesmo muito pior
e a Igreja é uma poderosa força cultural e intelectual. Até aqui muito bem.
A
partir daqui muito mal. Não é por
acaso que várias vezes datei o que penso sobre a Igreja no ano de 2019, hoje e
em Portugal, porque não queria generalizar para o passado, nem tenho a certeza
do que vai ser no futuro. Apenas, hoje. E hoje a crise da Igreja católica, com
sucessivos casos de pedofilia e abuso sexual de menores e maiores, é
gravíssima, até porque foi ocultada ao mais alto nível. Padres e bispos cometeram crimes de
delito comum e encontraram na Igreja e nas suas instituições a mesma protecção
que os “soldados” da Máfia tinham na organização criminosa. O Papa actual, que
em muitas matérias mostrou bastante coragem, compreendeu a dimensão do problema
e parece resolvido a defrontá-lo. Não é fácil.
A
razão do que aconteceu é simples e não tem qualquer complexidade: o celibato
dos padres, o impedimento de as mulheres acederem ao sacerdócio e a condenação
pela Igreja da homossexualidade, ou seja, a moral sexual do cristianismo. Esta moral sexual não data da origem do cristianismo,
mas forjou-se em confronto com a moral e costumes pagãos, quando os cristãos
começaram a “conquistar” Roma. Na verdade, não é dogma de fé, embora tenha
sido, com o fim das primitivas Igrejas cristãs, uma tradição identitária da
Igreja quer do Ocidente quer do Oriente.
Mas
nunca foi cumprida à letra e tal está abundantemente documentado, até para
Portugal. Na célebre viagem de Frei Bartolomeu dos Mártires, e no que escreveu
Frei Luís de Sousa, a regra era os padres estarem “amancebados” e viverem com
as suas famílias, sem particular escândalos das populações. Os conventos eram muitas vezes descritos desde o
século XVIII quase como sendo lupanares e houve muitos amores de “freiras
portuguesas”. Já para não falar das práticas libertinas a que os fiéis se
entregavam na ida à missa, como a prática do beliscão nas senhoras, que tinham
de ir almofadadas para não serem magoadas e apalpadas. Do mesmo modo, a
passagem rápida pelos boletins da censura durante a ditadura do Estado Novo
revela como as histórias de padres e freiras violando a regra do celibato ou os votos eram uma permanente fonte de
dichotes, denúncias, poemas satíricos, notícias mais ou menos crípticas nos
jornais locais, tudo fervorosamente cortado pela censura. E algumas retratavam
crimes, então e hoje.
Os
conflitos gerados pela moral sexual cristã têm sido uma constante da história
da Igreja que se tem agudizado com a crescente laicização das sociedades
ocidentais. A Igreja nunca lhes deu uma resposta consistente e agora paga um
preço muito elevado em todas as frentes, controlo dos nascimentos, planeamento
familiar, papel da mulher, cada vez mais casais com vida em comum sem o
casamento, desvalorização da virgindade, marginalização dos homossexuais, e, no
limite, abusos sexuais e pedofilia. O tronco é comum: padres e freiras têm sexo
e a pressão para não o sentirem é, num certo sentido simplista, antinatura.
Um
dos resultados é o risco para a Igreja de ter, em particular nos países
anglo-saxónicos, mas não só, cada vez mais homossexuais, num contexto de
“armário” de sete chaves, convivendo nas múltiplas instituições de carácter
educativo, no serviço da missa, nos coros das igrejas, nos escuteiros, com
milhares de rapazes e raparigas que acabam por abusar. Até agora a Igreja
protegia-os da denúncia pública, agora presume-se que vai deixar de o fazer.
Mas isso não resolve o problema, porque a repressão da sexualidade não gera
felicidade. O Diabo já sabia disso há muito tempo, porque era por aí que vinha
a maioria das suas mais gráficas tentações.
Não
viola a fé cristã, nem os fundamentos do cristianismo, nem sequer é
particularmente recusado pelo povo cristão, que não vê grandes problemas em os
padres se casarem. É difícil mudar em muitos aspectos a moral sexual da Igreja
e as suas consequências institucionais, como os anglicanos perceberam quando
decidiram fazer entrar no sacerdócio mulheres. Mas, sem uma mudança profunda
na atitude da Igreja em relação à sexualidade, tudo vai continuar na mesma.
Colunista
COMENTÁRIOS
Vieira, 03.03.2019 : PP não é em 2019 anticlerical, e reconhece o papel
muito importante da Igreja. Mas foi anticlerical quando passou pelo PCP(ML) de
inspiração maoísta, passagem essa pelo maoísmo que PP sistematicamente oculta e
de que provavelmente se envergonha (ou não...). Também omite PP o facto de que a
organização da qual fazia parte apostava na confrontação física (agressões) a
oponentes políticos como forma de luta política. Quem diria que da arruaça
juvenil se vá para "o respeitinho é muito bonito" e a este rapapé -'a
igreja catolica.
José Manuel
Martins, évora 03.03.2019:
lembrando-se de tanta coisa, o naturalismo
(popper, não olhes agora) de pp esquece como por acaso que o cristianismo
lida com um complexo extraordinariamente denso (e paradoxal, tensivo, e
dialéctico) de pulsões e de acções, de que p. ex. as 'batalhas espirituais' são
palco: assim, por motivos tanto de herança doutrinária como de inerência às
próprias práticas, o cristianismo retoma toda a tradição dos ascetismos
espirituais (pouco dados a amancebamentos), e no próprio fulcro da vida cristã
defrontam-se as dimensões do espírito e da carne (ambos, por isso, tão
ambivalentes), da espiritualidade e da matéria, da razão e da vontade, da
natureza e da graça. PP, como um laico ignorante q julga deter um entendimento
'histórico' destas coisas, reduz tudo à sensatez do prazer do orgasmo.
Patético.
Manuel Brito, LISBOA 04.03.2019: Patético é o seu comentário, que evita cuidadosamente
abordar a questão principal que PP discute e as suas implicações, terminando
por lhe chamar laico ignorante e referindo o prazer do orgasmo que PP nunca
refere. Vai na melhor tradição da antiga e tortuosa tradição jesuítica.
O seu segundo comentário continua e insiste na mesma linha. Gostava era que nos
explicasse em que é que o casamento dos sacerdotes protestantes durante os
últimos 500 anos prejudicou a espiritualidade do Cristianismo.
Catarina
Mendes, 03.03.2019: Revela pouco conhecimento sobre as causas. Como
explica o esvaziamento da igreja anglicana inclusive com números expressivos de
entrada na Igreja Católica? E em 2005 foram ca. de 400.000 fiéis que
solicitaram a plena comunhão com a Igreja Católica.
Manuel Brito, LISBOA 04.03.2019: Acha que a causa está no casamento dos padres
anglicanos ou na ordenação das mulheres? Gostava que nos esclarecesse melhor a
sua opinião. E a Igreja Católica não se tem vindo também a esvaziar no Ocidente
e em particular na Europa?
Francis Delannoy, 02.03.2019: Os padres têm também necessidades biológicas como toda
a gente. O problema é que ao entrarem nas ordens, fazem juramento de celibato,
Ao romperem esse juramento, estão em contradição com o patrão - a Igreja, e o
dogma, transmitido pela Igreja. Se são pelo sexo, têm uma solução: casarem-se e
continuarem a ajudar a Igreja da forma moderna como existe no norte da Europa,
aonde há poucos padres. É mais sincero, menos hipócrita, e mais em acordo com a
realidade dos nossos tempos.
II - EURICO,
O PRESBÍTERO Alexandre Herculano - Prólogo do autor
Para
as almas, não sei se diga demasiadamente positivas, se demasiadamente
grosseiras, o celibato do sacerdócio não passa de uma condição, de uma fórmula
social aplicada a certa classe de indivíduos cuja existência ela modifica
vantajosamente por um lado e desfavoravelmente por outro. A filosofia do
celibato para os espíritos vulgares acaba aqui. Aos olhos dos que avaliam as
coisas e os homens só pela sua utilidade social, essa espécie de insolação
doméstica do sacerdote, essa indirecta abjuração dos afectos mais puros e
santos, os da família, é condenada por uns como contrária ao interesse das
nações, como danosa em moral e em política, e defendida por outros como útil e
moral. Deus me livre de debater matéria tantas vezes disputada, tantas vezes
exaurida pelos que sabem a ciência do mundo e pelos que sabem a ciência do céu!
Eu, por minha parte, fraco argumentador, só tenho pensado no celibato à luz do
sentimento e sob a influência da impressão singular que desde verdes anos fez
em mim a idéia da irremediável solidão da alma a que a igreja condenou os seus
ministros, espécie de amputação espiritual, em que para o sacerdote morre a esperança
de completar a sua existência na terra. Suponde todos os contentamentos, todas
as consolações que as imagens celestiais e a crença viva podem gerar, e
achareis que estas não suprem o triste vácuo da soledade do coração. Dai às
paixões todo o ardor que puderdes, aos prazeres mil vezes mais intensidade, aos
sentidos a máxima energia e convertei o mundo em paraíso, mas tirai dele a
mulher, e o mundo será um ermo melancólico, os deleites serão apenas o prelúdio
do tédio. Muitas vezes, na verdade, ela desce, arrastada por nós, ao charco
imundo da extrema depravação moral; muitíssimas mais, porém, nos salva de nós
mesmos e, pelo afeto e entusiasmo, nos impele a quanto há bom e generoso. Quem,
ao menos uma vez, não creu na existência dos anjos revelada nos profundos
vestígios dessa existência impressos num coração de mulher? E por que não seria
ela na escala da criação um anel da cadeia dos entes, presa, de um lado, à
humanidade pela fraqueza e pela morte e, do outro, aos espíritos puros pelo
amor e pelo mistério? Por que não seria a mulher o intermédio entre o céu e a
terra? Mas, se isto assim é, ao sacerdote não foi dado compreendê-lo; não lhe
foi dado julgá-lo pelos mil fatos que no-lo têm dito a nós os que não juramos
junto do altar repelir metade da nossa alma, quando a Providência no-la fizesse
encontrar na vida. Ao sacerdote cumpre aceitar esta por verdadeiro desterro:
para ele o mundo deve passar desconsolado e triste, como se nos apresenta ao
despovoarmo-lo daquelas por quem e para quem vivemos. A história das agonias
íntimas geradas pela luta desta situação excepcional do clero com as tendências
naturais do homem seria bem dolorosa e variada, se as fases do coração tivessem
os seus anais como os têm as gerações e os povos. A obra da lógica potente da imaginação
que cria o romance seria bem grosseira e fria comparada com a terrível
realidade histórica de uma alma devorada pela solidão do sacerdócio. Essa crónica
de amarguras procurei-a já pelos mosteiros quando eles desabavam no meio das
nossas transformações políticas. Era um buscar insensato. Nem nos códices
iluminados da Idade Média, nem nos pálidos pergaminhos dos arquivos monásticos
estava ela. Debaixo das lájeas que cobriam os sepulcros claustrais havia, por
certo, muitos que a sabiam; mas as sepulturas dos monges achei-as mudas. Alguns
fragmentos avulsos que nas minhas indagações encontrei eram apenas frases
soltas e obscuras da história que eu buscava debalde; debalde, porque à pobre
vítima, quer voluntária, quer forçada ao sacrifício, não era lícito o gemer,
nem dizer aos vindouros: - "Sabei quanto eu padeci!" E, por isso
mesmo que sobre ela pesava o mistério, a imaginação vinha aí para suprir a
história. Da ideia do celibato religioso, das suas consequências forçosas e dos
raros vestígios que destas achei nas tradições monásticas nasceu o presente
livro. Desde o palácio até a taberna e o prostíbulo, desde o mais esplêndido
viver até o vegetar do vulgacho mais rude, todos os lugares e todas as
condições têm tido o seu romancista. Deixai que o mais obscuro de todos seja o
do clero. Pouco perdereis com isso. O Monasticon é uma intuição quase profética
do passado, às vezes intuição mais dificultosa que a do futuro. Sabeis qual
seja o valor da palavra monge na sua origem remota, na sua forma primitiva? É o
de - só e triste. Por isso na minha concepção complexa, cujos limites não sei
de antemão assinalar, dei cabida à crónica-poema, lenda ou o que quer que seja
do presbítero godo: dei-lha, também, porque o pensamento dela foi despertado
pela narrativa de certo manuscrito gótico, afumado e gasto do roçar dos
séculos, que outrora pertenceu a um antigo mosteiro do Minho. O Monge de
Cister, que deve seguir-se a Eurico, teve, proximamente, a mesma origem. Ajuda
- novembro de 1843.
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