terça-feira, 26 de março de 2019

Uma pobre astúcia


Aproveitar-se da sua autoridade de ledor da História para extrapolar teorias sobre uma actualidade que nem sequer entronca nela, parece-me pura fatuidade. Embora tenha apreciado os excertos de Ribeiro Sanches que citou e que constituem igualmente lição e modo de ataque aos resquícios de racismo esclavagista que a Esquerda da sedução humanitária insiste em distribuir por todos os outros, achei tudo bastante anacrónico e descontextualizado. Citar Passos Manuel para o seu trocadilho com Passos Coelho, para poder atacar este de retrógrado salazarista de uma economia sem visão, e para mais de desumana expressão, esquecendo as condicionantes que se impuseram a este, na sua actuação política, é de um facciosismo maldoso e tolo - como o é, de resto, no caso de Salazar, que salvou o país de outra dívida monstruosa. Mas o diálogo entre alguns comentadores esclarecidos sobre as facetas do texto verrinoso e pouco esclarecedor, explica e defende melhor Passos Coelho. Eu esperava maior nobreza de Rui Tavares, como professor que é, e ledor dos clássicos.

  

OPINIÃO: Menos Passos Coelho, mais Passos Manuel
Aqueles que defendem que Portugal se torne competitivo pela mão-de-obra barata esquecem-se que este modelo é insustentável, entre outras razões porque as pessoas emigram.
RUI TAVARES
PÚBLICO, 25 de Março de 2019
Há 260 anos um português pegou numa pena e mergulhou-a em tinta para escrever um tratado sobre a reforma dos estudos em Portugal, que era um tema de actualidade naquele ano de 1759. O homem que escrevia não estava em Portugal, de onde fugira aos 27 anos com medo da Inquisição, e aonde nunca mais voltara. Passou por Londres, onde se converteu brevemente ao judaísmo, religião dos seus antepassados. Foi para a Holanda, onde estudou medicina, e ficou racionalista para o resto da vida. Acabou na Rússia, onde foi médico da czarina Anna Ivanovna. Esteve na Crimeia, onde conviveu com muçulmanos e budistas. Passou pela Prússia a visitar Frederico II. E agora está em Paris, onde tenta sobreviver sem pensão até que Catarina a Grande se lembrará dele e o deixará confortável em rublos até ao fim da vida.
O seu nome é António Ribeiro Sanches e nasceu em Penamacor há sessenta anos, em 1699. Tem por isso quase a idade daquele século XVIII a que tantos consideram “das Luzes”. E apesar de viver há tantos anos longe de Portugal, onde aliás nunca voltará (morrerá em 1783, com 84 anos), a sua grande questão continua a ser Portugal. E a grande questão de Portugal na mente dele continua a ser o que fazer com este país. Que estratégia deve Portugal seguir: mão-de-obra barata ou valor acrescentado?
Pode parecer por isso estranho que num tratado sobre educação Ribeiro Sanches dedique uma grande parte da sua secção final à escravatura. Mas faz todo o sentido que o tenha feito, por uma razão simples. Porque a escravatura é desumana para os escravos, é o seu ponto de partida. Mas no que diz respeito à educação, há ainda outro problema para Ribeiro Sanches: é que a escravatura estupidifica os donos dos escravos.
Em palavras do próprio: “Se eu pretendera somente que a Mocidade Portuguesa fosse educada não havia de reprovar a Escravidam introduzida em Portugal: [mas] o meu intento he que seja dotada de humanidade, de amor de conservar os seos semelhantes, e de promover a paz e a união… [e] não he possivel que se introduzaõ estas virtudes enquanto hum Senhor tiver hum Negro a quem dá huma bofetada pelo menor descuido; [ou] enquanto cada menino ou menina rica tiver o seu negrinho, ou negrinha. [A escravidão] altera o animo daquelles Senhorinhos, que ficaõ soberbos, inhumanos, sem idea alguma de justiça, nem da dignidade que tem a natureza humana. Eu vivi muitos annos em terras adonde a escravidaõ dos Subditos he geral, e vi e observei que nelas naõ se concebe idea da humanidade.”
Ou seja: a escravatura, começando por ser uma tragédia moral, era também um erro estratégico português, e esse modelo económico errado tornava-se num modelo social errado, que por sua vez explicava um modelo educacional errado, que por sua vez resultava — completando o círculo — na anestesia geral à desumanidade que a escravatura era.
Noutra passagem, Ribeiro Sanches já explicara como as riquezas imperiais só deixavam o país mais rico no curto prazo; a longo prazo, ele ficava mais pobre, porque tendo mão-de-obra barata e riquezas fáceis, escolhia não se educar. Os que não tinham colónias e por isso se aplicavam a educar-se (a Suécia tinha já naquela época noventa por cento de gente alfabetizada, ao passo que Portugal não teria dez por cento) ficavam mais ricos ao vender-nos os produtos que faziam. A escravatura, que além de inumana era a mais barata mão-de-obra possível, tornava as elites portuguesas indolentes e incapazes de (como se diz hoje) capacitar o país.
Ou seja, em Ribeiro Sanches aparece uma questão que é ainda crucial para o Portugal de hoje: mão-de-obra barata ou valor acrescentado? Aqueles que defendem que Portugal se torne competitivo pela mão-de-obra barata (já não há escravatura, mas houve e há precariedade e trabalho sem direitos) esquecem-se que este modelo é insustentável, entre outras razões porque as pessoas emigram. A alternativa é então demorada e deve ser aturada: valorização das pessoas e do conhecimento para subir na escala de valor europeia e global.
A tradição de Ribeiro Sanches é depois continuada por Almeida Garrett e Passos Manuel, e vai até Antero de Quental e por aí se prolonga. Mas a tradição contrária também se prolonga pelo século XIX e XX (colonialismo, salazarismo…), e teve uma ressurreição recente com a austeridade e os famosos “cortes nos custos unitários do trabalho” (por outro lado, a opção de saída do euro, sendo aparentemente contrária, é a mesma estratégia de desvalorização, só que “externa” — através da emissão de nova moeda — do que “interna” — através de cortes salariais).
É por isso que se fossemos discutir — e deveríamos — qual deve ser a estratégia portuguesa para a próxima geração a minha resposta caberia numa só frase, que é a que está no título, e que agora se percebe melhor: menos mão-de-obra barata, mais valor acrescentado. Menos Passos Coelho, mais Passos Manuel.
Historiador; fundador do Livre

COMENTÁRIOS:
Margarida Paredes, Lisboa 25.03.2019: É curioso, quando se fala de Passos Coelho os Trolls deste Forum dizem que a culpa foi do Sócrates, mas se seguirmos a mesma lógica para a actual governação, então a culpa é da herança política de Passos Coelho. Não quero discutir com ninguém.
Tiradentes, Castelo Cernado 25.03.2019: Troll é falar do Passos Coelho por tudo e por nada, como se 45 anos de regime socialista não tivessem culpa nenhuma. É tudo de esquerda neste país, a visão do sistema saúde (podre) a visão doutrinária da escola pública (donos da rede à Salazar), a constituição, a visão da função pública com automáticas progressões de carreira e a não existência de despedimento no Estado (inacreditável), a hostilidade com quem produz, a visão estatista da investigação... nunca mais acaba, e agora a culpa é do Passos Coelho... haja paciência.
manuelserra72, 25.03.2019:  Tanto a esquerda como a direita foram cúmplices no actual estado das coisas. Quando digo esquerda e direita, falo dos partidos que governaram: PS, PSD e também (em menor medida) CDS. Não sei se ao discordar da Margarida se passe imediatamente ao estatuto de "Troll".... mas parece. Talvez em vez de "discutir" procure mais "argumentar". Em vez de distribuir etiquetas "troll", "racista" etc, continue a argumentar. Não estou a ser irónico.
António Cunha, 25.03.2019: Ó Tiradentes, automáticas progressões nas carreiras dos funcionários públicos ou de apenas de alguns (professores)?
Tiradentes, Castelo Cernado 25.03.2019:  Sim tem razão, é o sistema existente, mas é tão estúpido que não consegue fazer progredir ninguém. O estado deve poder aumentar, despedir, contratar, promover, livremente os seu melhores elementos, é fundamental premiar os bons funcionários e não tabelá-los pela mediania.
Coitados sempre a mesma lenga lenga. Vamos lá a ver, Portugal saiu da ditadura com forte marca da esquerda no regime, era quase proibido apresentar outras alternativas que não fossem partidos de esquerda, nacionalizações, PREC(!!!), constituição que diz que Portugal caminha para o socialismo, têm a escola pública na mão, tal como Salazar para ensinarem o que quiserem, tiveram os meios de produção todos na mão, moldaram o país que quiserem, já passaram 45 anos, o que falhou socialistas tutti-frutti????? e agora vêm com o Passos Coelho, coitadinhos....
João Lopes, 25.03.2019 : O Governo de Passos Coelho teve de tomar resoluções difíceis para os portugueses, porque herdou o País em estado de quase-bancarrota, originada pelos 2 governos do ex-Secretário Geral do PS e ex-presidiário, Sócrates de seu nome… Mas a geringonça social-comunista criou muitos mais impostos indiretos e mesmo assim não há dinheiro para consertar barcos e comboios, comprar seringas, me-dicamentos, etc. etc. Os comunistas do PCP, do BE e outros comunistas que não conseguem sequer formar um partido com representação na Assembleia da República, são coniventes com a governação de António Costa … que está a deixar os portugueses muito nervosos e descontentes!
Pedro Augusto, 25.03.2019 13:09 A maior crise financeira internacional dos últimos 100 anos não teve nada a ver com isso, o culpado é o Sócrates... :)
OldVic, Música do dia: "Gimme hope Jo Anna" (Eddy Grant) Liberdade para a Venezuela!25.03.2019: A crise financeira também atingiu países que não andaram a destruir empresas privadas com interferência política, que não andaram a fazer PPPs sem pés nem cabeça e que não aumentaram as respectivas funções públicas em plena crise de finanças do Estado, tudo pago com dívida pública. E quem fez isso não foi Passos.
Pedro Augusto, 25.03.2019: Atingiu e teve repercussões à medida das suas economias e exposição. A dívida pública britânica, por exemplo, subiu de 37% do PIB, em maio de 2008, para 70% em Setembro de 2011. Neste momento, é 85%. Ou seja, duplicou em 3 anos. Não entrou em bancarrota porque é uma economia muito diferente da portuguesa. Estar sempre a deitar as culpas de algo tão grande para um só indivíduo demonstra a infantilidade da nossa alternativa de poder e falta de capacidade (ou seriedade) de análise :)
António Cunha, 25.03.2019: Caro Pedro Augusto, Old Vic debita a cassete de Passos & Portas. O bode expiatório é Sócrates. Essa conveniência abafa tudo o resto, como a crise das dívidas soberanas de 2008. Fomos apanhados na onda mas o importante é mal dizer de um único governo.
Passos Coelho é um boy de um partido português. Um boy que não tem conhecimentos nem históricos nem técnicos. Simplesmente acreditava no que lhe vendiam. E aplicava com ultra rigor a dose. Mesmo que esta não funcionasse (mais esperto foi Gaspar que ao perceber que nada resultava dessas medidas extremas abandonou o barco em direcção ao Ocidente para ganhar uns trocos) havia que a aplicar insistentemente.
Nelson Sousa, 25.03.2019 : Concordo parcialmente. É verdade que PPC herdou uma situação difícil. Muitas das soluções foram-lhe impostas. Ainda assim teve falta de táctica. Houve coisas que ninguém entendeu. Por exemplo o corte na remuneração do trabalho extraordinário aplicado a todas as empresas. Mesmo aquelas do sector não exportador. Mesmo as aquelas que tinham milhões de lucro. Ainda por cima prolongou a benesse mais tempo do que o previsto inicialmente. Passos Coelho ameaçava cortar 10 e muitas vezes retirava apenas 5. O atual governo dá 5 com uma mão e retira 10 com outra. O efeito é o mesmo mas a forma como o faz é muito mais inteligente.
AndradeQB, Porto 25.03.2019: A formação de Rui Tavares serve-lhe para a manipulação. Com os seus conhecimentos e capacidade de articulação, consegue, na base de um argumento consistente, induzir uma conclusão descabida. Descabida por não ter adesão a nada do que hoje se passa, e muito menos a ver com Troikas ou Passos Coelho. Não há como falar bem, para vender mercadoria estragada. Se a mercadoria que RT vende fosse sã, não precisaria de tantos rodriguinhos. Já lá vão tantos anos de valorização do conhecimento como os de Passos a "escravizar" mão de obra barata, e continua tudo exatamente na mesma. A explicação não será, assim, tão primária. Se RT quisesse aproveitar o seu argumento, que é correto, de forma honesta, iria ter a outro lugar que não Passos Coelho.
OldVic Música do dia: "Gimme hope Jo Anna" (Eddy Grant) Liberdade para a Venezuela! 25.03.2019: A sua atribuição implícita a Passos Coelho da defesa de um modelo de salários baixos é baseada em quê? Passos Coelho liderou o país durante uma emergência financeira. Como é que daí se pode extrapolar que ele é partidário de salários baixos numa altura normal? Há uma parte da sociedade portuguesa que fala de Passos como se a crise não tivesse existido. Além disso, o modelo baseado em salários baixos é um ponto de partida, não é uma solução eterna. Veja a China, que começou pela vantagem salarial e hoje em dia já consegue competir a um nível tecnológico e salarial completamente diferente. O problema da esquerda a que o autor pertence é que não percebe que a riqueza tem que ser criada antes de ser distribuída, sob pena de se cair no buraco em que se meteu a Venezuela chavista.
Pedro Augusto, 25.03.2019 Porque as reformas laborais que implementou foram precisamente à base da contracção do custo do trabalho para as empresas. É evidente...
OldVic, Música do dia: "Gimme hope Jo Anna" (Eddy Grant) Liberdade para a Venezuela!25.03.2019 : e como resultado disso, a economia começou a crescer a um ritmo inédito nas ultimas décadas. É preciso não confundir o pontapé de partida (baixar os custos do trabalho) com a filosofia do jogo (criar riqueza e então distribuí-la).
Pedro Augusto, 25.03.2019 : Podemos discutir todo o dia se foi a contracção salarial, o encerramento do mercado interno devido à recessão ou a melhoria da conjuntura internacional e sequente aumento da procura que levou ao aumento das exportações. A questão é que começa por dizer "não foi nada disso" e no fim já defende o modelo de baixos salários. Tudo serve para defender a dama, certo?
OldVic Música do dia: "Gimme hope Jo Anna" (Eddy Grant) Liberdade para a Venezuela!25.03.2019: Volto a explicar: o modelo de baixos salários é um ponto de partida válido para um desenvolvimento posterior; é uma estratégia aceitável desde que não se torne eterna. Veja o exemplo da China, conforme disse lá em cima.
: Penso que ninguém acha que Sócrates agiu sozinho; o nome dele é usado por causa do entusiasmo e ferocidade (palavras dele) com que asneirou e queria continuar a asneirar em 2011. Não, Sócrates foi a cereja podre em cima do bolo estragado da nossa oligarquia.
Conde do Cruzeiro, Assinante.25.03.2019: Não, Sócrates foi a cereja podre em cima do bolo estragado da nossa oligarquia:" Já agora é capaz de identificar a sua oligarquia,? Temo que não seja a oligarquia corrupta e cleptocrata que em 1983 tomou de assalto os chamados partidos do arco da governação e se apossou dos bens do país em proveito próprio.


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