segunda-feira, 25 de março de 2019

O hibisco

Acabo de ler, na revista E o texto de Miguel de Sousa Tavares sobre o mistério da criação romanesca no que concerne a “angústia da página em branco”, e a forma como, dez anos depois de preparativos e leituras para o seu romance “EQUADOR”, se libertou dos seus compromissos laborais para se concentrar exclusivamente na escrita da obra que se tornaria “best-seller”, que com muito interesse li também, na altura, sentindo quanto, nobremente, aquele não ostracizava totalmente a sociedade ultramarina, como era comum na época, por cá, e, pelo contrário, soubera imprimir, ao enredo criado, um ambiente natural e social de uma elegância e beleza que já admiráramos no filme “África Minha”, na intensidade das paixões e na beleza das paisagens - os condicionalismos de exploração esclavagista do povo de São Tomé, tratados sem a iracúndia acusatória que os metropolitanos distribuíam então pelo povo retornado de África.
Mas o tema que ele trata no seu texto – a angústia da página em branco - levou-me, por vias sinuosas, a Agatha Christie que sinto gosto em referir: travei há tempos relações com uma moça alemã, Sabine, que já correra um mundo de aventura, entre a Europa e a América, nomeadamente as Caraíbas e o Canadá, a qual, por motivos da sua vida complicada, vai voltar para a Alemanha, para um novo emprego, e, como não quer perder a casa cá, entregou-me três vasos de plantas, entre as quais um hibisco.
Ao ouvir falar de hibisco, recordei imediatamente um livro de Agatha Christie“Le Major parlait trop”, tradução francesa de “THE CARIBBEAN MYSTERY” – onde, no retrato que o tal major pretende mostrar à sagaz miss Marple, aparece, ao lado de gracioso hibisco,  a figura do pretenso assassino das histórias que o tagarela lhe está contando, mas que logo tenta guardar de novo no seu bolso, ao avistar, com olho estrábico, qualquer coisa que nitidamente o desconcerta e assusta. É claro que o major será a primeira vítima do tal assassino do retrato e do hotel nas Caraíbas onde Miss Marple curte umas férias proporcionadas por um seu sobrinho e admirador. É claro que Miss Marple desvendará a autoria desse crime e do seguinte que o criminoso se propõe cometer, na pessoa da sua própria mulher jovem, como o fizera com as outras duas de casamentos anteriores que o tal major referira a Miss Marple, na sua tagarelice de militar viajado e também de férias. Todo um mundo de peripécias que as inteligentes lucubrações e deduções de Miss Marple saberá interligar, baseadas na sua percepção da natureza humana, de semelhança eterna, quer se trate das gentes da sua aldeia inglesa St. Mary Mead, quer de qualquer outra parte do mundo.
 Sim, os livros de Agatha Christie são fabulosos de engenho labiríntico num contínuo suspense de mistério e argúcia reflexiva gradual, tantas vezes aterradores os casos e os protagonistas do crime, castigados no seu desfecho, como recomendam as leis do equilíbrio ético.
Foi, de facto, o hibisco, que a Sabine me deu a conhecer e a guardar, que me trouxe à lembrança o livro onde conheci o nome dessa planta, ligada, para mim, a um fascinante mundo tenebroso, de extraordinária alquimia de leitura e magia, no suspense da sua intriga e do seu mistério.
Mas foi também a expressão “angústia da página em branco” de MST que me levou à novelista policial inglesa. Não, não creio que esta alguma vez sentisse esse desejo de valorizar a sua escrita. Esta era-lhe natural, na sua criatividade inesgotável e despretensiosa, criadora de personagens vivas e sui generis, como as de acção detectivesca, Poirot, Tuppence, Miss Marple, infiltradas num mundo de enredo romanesco, a que não faltou a especificidade do temperamento psicológico relevante das personagens da acção, que soube recriar.
As «agonias das páginas em branco» servem, aos nossos escritores, por cá, para desenharem um pouco o seu próprio perfil, em termos da posteridade que apetecem. Agatha Christie não precisou disso para se promover. Universalmente.


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