quarta-feira, 27 de março de 2019

Começou no Dubai



«Dubai é a maior cidade e emirado de mesmo nome dos Emirados Árabes Unidos. O Emirado de Dubai está localizado na costa do Golfo Pérsico, sendo um dos sete emirados que compõem o país. Dubai é o emirado mais populoso entre os sete emirados, com aproximadamente 2 262 000 habitantes.» Wikipédia
… E não são boas as notícias que Salles da Fonseca transmite sobre o Dubai, depois de esgotado o meio que despoletou o milagre de tal “criação” humana – não o cinema mas o petróleo. Sic transit gloria mundi. Outros aspectos cita, pouco atractivos, que têm a ver com os costumes, o atraso, o machismo, o consumismo também. Um texto desconcertante, pelo inesperado das informações, de nós desconhecidas, que julgávamos o tal Dubai dos formatos caprichosos, e que se ergueu surpreendentemente, no esplendor dos luxos, coisa para continuar a espraiar-se altivamente nas suas dunas. Não será assim. Mas o texto de SF não espanta: sagaz, variegado, de uma energia sadia, que mistura o riso e o sério, fluentemente, como uma foto de várias cores.
ARÁBIA FELIX – 2: _ HOLLYWOOD B
HENRIQUE SALLES DA FONSECA              A BEM DA NAÇÃO, 26.03.19
A questão que me coloco é a de saber se o Dubai é hoje uma réplica de Hollywood - não confundir com a inocente e lucrativa Bollywood de Bombaim - ou da Revolução Francesa. De uma coisa, não tenho quaisquer dúvidas: aquilo nada tem a ver com a Arábia.
E se quanto à obra edificada, temos que reconhecer que tudo foi feito rapidamente e com grande euforia, há agora que perguntar como vai ser o futuro quando é sabido que a última gota de petróleo foi chupada há 6 meses. Será o comércio suficiente para "segurar" todo aquele espalhafato?
Será o turismo capaz de financiar todo aquele estilo de vida? Conseguirão os Serviços lato senso fundamentar um novo modelo de desenvolvimento?
Duvido da plausibilidade de cada uma e de todas as hipóteses anteriores e temo que do "bluff" se passe para um realismo abissalmente contrário ao cenário que mais nos agrafaria, ocidentais. 
E se algo desagradar aos ocidentais - sobretudo aos presenciais ou às interpostas pessoas - que "seguram" tudo aquilo e lhes parecer que o sonho acabou e corre o risco de se transformar em pesadelo, não faltará ocasião para se perguntarem para que lhes servem as pernas e procurem novas paragens.
Sem os ocidentais, o Dubai tende a regressar ao reino medieval que era até há bem pouco tempo.
E porquê tanto negativismo neste meu prognóstico? Porque o meu diagnóstico é breve: nada daquilo tem qualquer coisa a ver com a Civilização Islâmica e nem sequer com alternativas orientais. Então, o meu leitor dirá que a China segurará o Dubai no dia seguinte ao abandono dos ocidentais. E eu respondo: tomara a China segurar-se a si própria, quanto mais segurar outros; o desinvestimento externo chinês já começou, o castelo de cartas já treme.
Como dizia o ceguinho, "a ver vamos..." mas, entretanto, fico muito céptico porque não vejo os súbditos (numa monarquia não há cidadãos mas sim súbditos) dubaianos a evoluírem no sentido de conseguirem substituir os ocidentais na componente produtiva da vida; na do consumo, sim, até nos ultrapassam.
Mas como nós sabemos por experiência própria, numa economia pouco produtiva (caso do Dubai depois de chupada a última gota de petróleo), o Consumo não é motor do desenvolvimento mas sim da bancarrota. Portanto, deveria haver um muito amplo debate sobre o novo modelo de desenvolvimento daquele Emirato. Só que a expressão "muito amplo debate" é típica de democracia e isso é coisa inexistente no Dubai.
Então, como dizia Karl Popper, "resta-lhes irem para o Inferno". E o "Inferno" muçulmano será por certo algo que se assemelhe à Revolução Francesa. Eis como se fecham as portas de Hollywood e se afia a guilhotina. Mas, por enquanto, tudo exibe pujança e dá gosto ver. E eles até mostram as fotos do antes e nós gostamos de ver o depois.
Os árabes chamam-se uma infinidade de nomes pois que "ibn" significa "filho" e eles ostentam a ascendência até quase ao Adão. Sim, claro, apenas a linha masculina. Perguntados, não me esclareceram de como se resolve o problema de quando a linha sucessória masculina de um «rei» é interrompida. Fiquei a crer que o problema é de resolução fácil: um golpito de Estado e ZÁS! Venha outro sem problemas no nome.
Mas este simplificou as coisas e reduziu tudo a Mohammed bin Rashid Al Maktoum o que, na prática, significa que ele tem Mohammed como nome próprio e que é filho de um tal Rashid da família Maktoum. Os Maktoum são há algumas gerações os donos daqueles areais que este transformou numa Hollywood nº 2 mas sem «woods» (pelo menos, por enquanto). Na intimidade, chamam-lhe apenas Sheikh Mohammed. Nascido a 15 de julho de 1949, é desde 2006 também primeiro-ministro e vice-presidente dos Emirados Árabes Unidos. É dono de 99,67% da Dubai Holding.
Então, foi a partir da década de 90 que o boom se deu e das dunas se fizeram arranha-céus, marinas, o aeroporto, a dessanilização da abundante água do mar, o ajardinamento (mais do que a arborização), as super-avenidas, o novo canal que atravessa a cidade, a "little Venice", a "Palmeira" que é um conjunto de linhas de areia devidamente consolidadas pela engenharia holandesa onde o luxo impera em casas boas, muito boas, óptimas e fantásticas, hotéis de muitas estrelas e etc.
O Emir tinha como objectivo fazer construir também outra "Palmeira" com o quádruplo do tamanho desta que existe e que me pareceu enorme mas o projecto ficou no tinteiro por causa da crise de 2008. Entretanto, está em construção (pela engenharia holandesa) um arquipélago artificial de 360 ilhas representando o mapa-mundo. Cada ilha será vendida em bloco. Se algum dos meus leitores tiver por aí uns milhões de Dólares ou de Euros, não deixe fugir esta oportunidade de ... os perder nas salsas ondas do Golfo Arábico.
Mas nem tudo é fútil. Assim, o Dubai passou a ser um centro de treino de camelos de corrida (as corridas propriamente ditas - e respectivo filet mignon que são as apostas - fazem-se no Abu Dhabi onde ficam as massarocas) e num centro de criação de ónixes (primos menores das palancas angolanas) contando-se por cerca de uma dúzia de animais - e disse! Mas se houvesse mais animais, seria perigoso fazer os rallies completamente desvairados em que nos levaram pelas dunas. Aí, sim, a adrenalina soltou-se em grande e numa das breves paragens que fizemos, uma velhota (um mês mais velha que eu) brasileira dizia-me: - Jovem (o jovem era eu) isto está a mortificar todas as frustrações da minha vida.
Depois de vermos o pôr-do-Sol do alto daquela duna muito conhecida naquele deserto, descemos por ela a baixo e entrámos num acampamento de beduínos para jantarmos e vermos um espectáculo de folclore. À falta de «mounting block», não consegui subir para o camelo que estava ali mesmo à minha espera. E a velhota a chamar-me «jovem»… O cameleiro disse-me para eu pôr um joelho no flanco do dromedário mas eu não sei o que é isso de montar à joelhada, não quis magoar o bicho com um joelho pelas costelas a dentro e desisti. Fica para quando eu for mais novo.Por aqui se vê a «gentileza» com que os animais são «acarinhados» pelos joelhos dos turistas e, pior, com o beneplácito e até incitamento dos cameleiros. Ou seja, não é por eu não saber falar árabe que não debato a filosofia kantiana nem a política monetária emiratiana com os cameleiros.
Contudo, do Dubai, o que levo de mais negativo é o machismo misógino dos fulanos que impõem às mulheres o uso de vestes tão abomináveis como as burkas e outras que tais. E não me venham cá dizer que são uma minoria; digam, sim, que são poucas no meio duma multidão estrangeira que não é muçulmana. Quase que passam despercebidas mas falta o quase para que desapareça a misoginia.
O que levo de mais positivo é a coordenação entre a embraiagem, o acelerador e o travão que o nosso condutor fazia durante o rally desvairado por aquelas dunas além…
Finalmente, a questão da nacionalidade. Não perca o meu leitor o seu tempo a pedir a nacionalidade dubaiana pois esta só é concedida a quem seja filho de pai e de mãe dubaianos de gema; se for filho de um só da gema e o outro da clara, não terá sorte nenhuma, mesmo que nascido no Dubai. Ser dubaiano é mister de honra rara. Por mim, dispenso.
Regressámos ao barco a horas decentes depois do jantar e do espectáculo e zarpámos antes da meia noite.   Continua no próximo capítulo.
COMENTÁRIOS:
Anónimo, 27.03.2019: Gostei muito, aliás como sempre. Fiquei desperta para alguns aspectos que desconhecia. Acho que nunca antes o tinha sentido tão cáustico na escrita. Fico à espera do próximo. .Bj
António Palhinha Machado: > Henrique Salles da Fonseca 27.03.2019:: Caro Cronista de Longa Distância,
Na realidade, os árabes (e, por extensão, boa parte dos muçulmanos) vão tendo vários nomes ao longo da vida, o que, nos tempos do Lawrence das Arábias, deixava os britânicos de olhos em bico e às aranhas. Quando atingem a idade adulta (eles ainda praticam activamente a rébora, coisa que entre nós, ocidentais, há muito caiu em desuso), adoptam um nome pelo qual passam a ser conhecidos: é a kunya (de onde pensa que vem a tão portuguesa "alcunha"?) que pode não incluir patronímicos. Ex: Yasser Arafat/ Mohammed Yasser Abdel Rahman Abdel Raouf Arafat al-Qudwa al-Husseini / tinha por kunya Abu Ammar. Tanto quanto sei, parte dos recifes artificiais para criar parques subaquáticos foi fornecida por uma empresa portuguesa, entretanto vendida a norte-americanos. Melhoras do olho (olho é órgão - a vista é função).
Henrique Salles da Fonseca  27.03.2019: Para quem, como eu, não saiba o significado de «rébora», aí vai a explicação que fui buscar ao Dicionário Priberam: rebora | substantivo feminino re·bo·ra |ó|
1. Confirmação. 2. [Antigo] Alvedrio, decisão. 3. Idade exigida por lei para certos actos. 4. Idade da puberdade.
5. O presente que o comprador de uma propriedade dava ao vendedor, além do preço estipulado.
in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa
Anónimo  27.03.2019: Tudo se conjuga para um fim que não está longe. Depois, as areias do deserto, cobrirão as ruínas
António da Cunha Duarte Justo  27.03.2019: Muito obrigado pela crónica. Aprendi muito!

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