Terá a ver com o fado, com as cantigas
de amigo, de ambiente rústico, com o nosso “sol
que em vez de criar seca”, com a inapetência para o trabalho, no “ai que prazer não cumprir um dever”, com
oportunismo arrivista compensador das carências intelectuais, com o mimo
prestado na infância em demonstrações de ruído e arrebatamento palavroso e vão,
substituto de seriedade e racionalidade. Somos, de facto, os da cauda e, por
vezes, temos consciência disso. Alberto Gonçalves tem-na sempre. Há quem não se importe. Ou não dê por isso. E o
ridículo atroz do Presidente, posto em destaque por Ricardo Araújo Pereira, é aproveitado por Alberto Gonçalves no seu fundo ataque, a propósito do “somos os melhores” vexatório do PR.
Maria João Avillez especifica o seu ataque, dirigindo-o sobretudo à esquerda,
do discurso da banalidade carismática para povinho desleixado e interesseiro, a
cuja raiz pertencemos.
Penso que fundamentalmente somos bons, bonzinhos,
coitadinhos, daí uma exuberância afectiva pouco esclarecida e que tem hoje,
como figura representativa da nossa parolice, o PR do nosso repúdio. Para trás,
temos figuras recentes de outro tipo de energia, que M. João Avillez defende,
como Cavaco Silva e Passos Coelho. Nem tudo nos envergonha, no nosso percurso,
mau grado as figuras queirosianas imortalizantes, que não representam
caracteres individuais, mas tipos sociais que nos definem. Mas para trás, na
história, outras ficaram, de diferente carisma. José Hermano Saraiva soube
separar o trigo do joio, e ele próprio foi grande exemplo de frontalidade e
nobreza que admiramos.
I - GOVERNO: Os melhores dos melhores /premium
ALBERTO GONÇALVES OBSERVADOR, 30/3/19
A opinião publicada não contesta o pagode socialista, na medida em que: a)
acha que o pagode é normal; b) acha que o pagode é benéfico; c) espera vir a
beneficiar do pagode; d) já beneficia do pagode.
O poder das ilusões é uma coisa
maravilhosa. E sobretudo patética. Para não admitir o que de facto são, os
portugueses fingem-se convictos de que são “os melhores dos melhores”, citando
a ladainha humilhante do prof. Marcelo. O
método é repetirmos com maníaca insistência que somos insuperáveis nisto e
naquilo, da bola aos chouriços, das peúgas ao azeite. De tanto entoarem o
mantra, alguns, coitados, chegam a acreditar nele. Muitos, porém, permanecem
ligeiramente cépticos: embora proclamem a superioridade pátria nos “sectores” –
sei lá – do mobiliário ou da saúde, receiam no fundo estar errados e a fazer o
que os clássicos da Antropologia designavam por figura de urso. A conversão
dos cépticos dispõe da propaganda oficiosa, os “telejornais” que se encarregam,
dia após dia, de entrevistar governantes nas imediações de uma inauguração, ou
estrangeiros nas imediações dos Jerónimos, todos dispostos a confirmar as
incontáveis virtudes deste abençoado país. Se um casal de belgas gosta disto,
quem somos nós para discordarmos?
Quase literalmente, não somos ninguém. É a nossa
sorte. Dado que o mundo mal dá pela existência de Portugal, Portugal costuma
escapar ao escrutínio do mundo. Ambos beneficiam do arranjo. Excepto às
vezes. Às vezes, um acontecimento fortuito ou um tique exagerado desperta
atenções alheias e indesejadas. Às vezes, as notícias escapam ao controlo, ou
aos objectivos editoriais do falecido DN. Às
vezes, a realidade espreita e perturba as patranhas que nos oferecem e o idílio
em que vivemos. A título de exemplo recente, sugiro o documentário sobre o
desaparecimento de Maddie McCann, estreado na Netflix. Ali não há turistas
seleccionados a louvarem a comida e a hospitalidade e as “startups”: há
ingleses que olham para Sul e descobrem um território entregue a bárbaros, onde
a polícia se destaca pela espectacular inépcia e a corrupção genérica serve de
cenário para apaixonantes enredos. Em meia-dúzia de horas de programa, o mito
do paraíso à beira-mar afoga-se com esmero. Mas nada afoga as ilusões dos
portugueses, os quais, bem amestrados, tomam a crítica por um ataque movido a
inveja. Não importa que, no caso, a “inveja” seja tão fundamentada quanto a da
banca suíça face à estabilidade do BES.
Uma outra história actual e digna da
estupefacção “externa” é a endogamia governamental. Na sua infinita
ingenuidade, o povo garante que a família não se escolhe. A sério? O PS escolhe
os familiares que pode e, não satisfeito, nomeia-os para os cargos públicos que
não deve. Sendo engraçado que um dos argumentos contra a monarquia consista em
impedir a ascensão automática de mentecaptos, também é verdade que a situação
desta peculiar república, absolutamente trivial em exotismos marxistas, não é,
vá lá saber-se a razão, comum nas democracias civilizadas. É aliás inédita a
ponto de impressionar a imprensa
espanhola, que habitualmente nos dedica a quantidade de páginas que reservamos
às Berlengas: o “ABC” fala numa “rede de nepotismo sem precedentes em toda a
Europa”, lembra a “rede de 27 pessoas com vínculos familiares no exercício do
poder” e refere que “a indignação tomou conta do país vizinho”. Escusado dizer
que se trata de uma série de calúnias, a desmentir com urgência.
A primeira calúnia é considerar que
pertencemos à Europa, presunção que apenas funciona no momento de receber, com
maus modos, dinheiro alemão. Fora isso, uma fotografia colectiva do governo
basta para exibir não só os perigos da consanguinidade como uma tropa fandanga
que, na aparência e no conteúdo, dificilmente se sentaria na assembleia
estadual do Maranhão.
A segunda calúnia são os 27 parentes,
proverbialmente caídos na lama. O Observador já desenterrou quarenta e tal, e
não duvido que uma pesquisa distraída pelas subsecretarias e chefias de
gabinete alcance os 150. Além de que amanhã é um novo dia, e uma nova
oportunidade profissional para dezenas de filhos, esposos, genros, primos e
enteados dos vultos que nos guiam.
A terceira calúnia é a indignação que
alegadamente nos assola. Qual indignação? Salvo por umas dúzias de
excêntricos, a famosa “opinião pública” e a famosíssima opinião publicada não
contestam o pagode socialista, na medida em que: a) acham que o pagode é normal; b) acham que o pagode é benéfico; c)
esperam vir a beneficiar do pagode; d) já beneficiam do pagode. Entre a
cretinice e o oportunismo, compreende-se a tendência do cidadão médio para a
opinião informada. Se o “ABC”, o “El País” e os jornais que calhar
realizassem com competência o seu trabalho, perceberiam que a notícia não é a
rompante promiscuidade no governo: é a complacência de uma sociedade em peso
perante a promiscuidade e perante o resto. O espantoso, na hipótese de ainda
sobrar alguém que se espante, é a jovialidade com que os portugueses se
permitem ser enxovalhados e roubados às mãos de uma legião de rústicos que nem
possuem em manha metade do que lhes falta em vergonha.
Haverá, nos confins da Terra,
populações mais oprimidas. Ou mais ridicularizadas. Ou mais burladas. Não
haverá nenhuma que o aceite com este simulacro de orgulho. Nisso, e não nas
peúgas ou no azeite, somos mesmo os melhores dos melhores. Ou uma desgraça sem
remédio, consoante a perspectiva.
Nota de rodapé
O prémio “Uma
Rotunda Em Cada Cruzamento, Dois Multiusos Em Cada Esquina, Três Sacos Azuis Em
Cada Mandato” da semana vai para António Costa, com a frase: “O mundo
seria muito melhor se fosse governado pelos presidentes de câmara”
II - Os imutáveis /premium
Nunca ocorre à esquerda avaliar o
adversário pelo mérito, a responsabilidade, a iniciativa, o currículo, mas
sempre só pelo insulto político ou o acinte pessoal. Caramba.
1.
Que se abrigará de tão raro na cabeça das pessoas que opinam sobre a direita
para não acertarem uma? E insistirem em não acertar? É um mistério: não podem
ser todos assim tão pouco dotados, era coincidência forte demais (ou numa
versão mais optimista era too good to be true); também não pode ser falta
de informação e ninguém nasceu ontem: nem os que opinam nem os que são
opinados. Só se for assim mesmo, de propósito… Senão como explicar erros de,
como dizer?, “análise” tão grosseiramente desfocados? Às vezes pensa-se que
será simplesmente, banalmente, trivialmente a preguiça: há um guião feito de
clichés fora de prazo e toca a aviá-lo e escrevê-lo vezes sem conta. Não dá
trabalho e há gente que a tudo se presta, da deficiente prestação televisiva à
crónica ácida. Lembram-me até uma peça teatral que está em Londres há mais de
oitenta anos, “A Ratoeira” que deve ser baratíssima: o mesmo teatro, o mesmo
autor, o mesmo cenário, e os actores passando de geração em geração ou de pais para
filhos como no governo socialista , sempre a dizerem o mesmo, o mesmo, o mesmo.
Coitados.
2.
Dizem-me que o ressentimento tudo explica e indo – como se deve ir – à natureza
humana, ele está lá bem inscrito, em “gordas”, como nos jornais. Mas a verdade
é que custa a crer que mesmo um grande, um imenso ressentido – alguém que tenha
por exemplo sonhado ser o inspirado e inspirador guru intelectual de alguém e
tenha afinal ficado longe disso, trocado por suposta (mas só suposta) menor
figura – não se importe de, mais que ressentido, passar sobretudo por pouco
sério ou por politicamente inverosímil, o que pode ser mau para quem tanto
tempo, afinco e afã dedica à análise (?) dos comportamentos políticos dos
outros. Contudo, é o que aí anda e o que aí está: as mesmas insinuações de
péssimo gosto, falsidades disparadas como certezas, clichés mal alinhavados sem
sombra de sentido e ainda menor conexão com a realidade. Ouve-se este realejo
sobre a direita, ou as direitas, e tanto faz que passem dias ou anos: que ela é
o que não é; que quer o que nunca disse querer; que aspira ao que já mostrou
renegar, etc, etc. Espantoso que nenhum dos arautos se canse de si mesmo ou do
guião, como os tais actores a repetirem há décadas a mesma peça. E é triste que
nunca no debate político ocorra à esquerda avaliar o adversário pelos valores
do mérito, da responsabilidade, da iniciativa, do currículo, mas sim pelo
insulto político ou o acinte pessoal (caramba).
3.
Vem isto a propósito dos desastrosos comentários sobre o Movimento 5.7. Nuns
casos a idade mental explicará o desastre, noutros a indigestão provocada pela
grosseria analítica terá aguda responsabilidade em tão patética empreitada. Já
me habituara a esta má fé como reacção quase exclusiva a qualquer ideia,
medida, proposta, intervenção, contributo do PSD ou do CDS, da Aliança ou de
outro qualquer “alguém” fora do perímetro da geringonça, logo chutado para fora
da área consentida pelas esquerdas. O mau gosto e a arrogância têm porém subido
de grau, desqualificando obviamente os seus autores mas com isso
desqualificando o país e o seu regime e os seus políticos.
Agora
com o Movimento 5.7 a coisa ficou talvez com ainda pior cara. Não é que tenha
muita importância mas aguça a curiosidade: porque se incomodam tanto — a ponto
de terem de ser inexactos — com uma gente que mal conhecem? Porque os atemoriza
que entre em cena uma nova geração que não está atarrachada ao domínio da
esquerda, não se comove com os seus mandamentos culturais, não pertence ao
grupo dos consentidos pelo grupo dos vigilantes consentidores, não pratica o
Estado como único pulmão, nem depende “do” partido para respirar na vida? Outro
mistério. Sucede porém — e este para mim é o ponto – que o comportamento de
muitos destes protagonistas, actores principais ou segundas e terceiras
figuras, pode ser fatal (já está a ser). É que ao nivelar o debate político por
tão baixa exigência, usando de manipulação e fazendo do poder uma coisa própria
e privada, inviabiliza-se qualquer diálogo politicamente racional com a
oposição. Em não havendo, há o que há: um regime exausto, improdutivo e malsão.
O nosso.
4. Se
virmos a obsessão non stop com Passos Coelho (além de lhes ter ganho
as eleições têm assim tanto medo que volte?); se ouvirmos a falsíssima
narrativa que a esquerda não desiste de impor na opinião publicada sobre os
anos da coligação PSD/CDS e que qualquer ser normalmente constituído em
Portugal sabe ser isso mesmo, falsíssima; se atentarmos nos esforços ciclópicos
para reduzir a fortíssima herança reformista de Cavaco e o próprio Cavaco ao
puro esquecimento — o único lider, em 43 anos de regime democrático, com quatro
maiorias absolutas no país — já devíamos ter aprendido: a esquerda não olha a
meios para refazer a história e ter o exclusivo de tudo. Do poder, do Estado, do
império do seu partido sobre o resto dos partidos, do funcionalismo público, da
cultura, dos costumes, das narrativas. E agora do pensamento que ela quer único
(e por este andar da nossa alma).
Nada
disto é novo? Não. Mas a razão hoje é espantar-me — desculpem a insistência —
com a confrangedora argumentação escolhida pela esquerda contra a direita de
que as atoardas contra o desafio cultural e político que o Movimento 5.7
encarna são a mais nítida radiografia. E, claro, com a falta de respeito que
obviamente não pode deixar de suscitar quem assim prefere comportar-se
politicamente: nada consentindo apenas insultando, nada contra-propondo, antes
mentindo. Faz pena, mas isso é o menos. O mais é o que dá que pensar.
5. Ricardo
Araújo Pereira passou há dias umas imagens embaraçantes (e em certo sentido
destrambelhadas) de Marcelo Rebelo de Sousa, que eu inteiramente desconhecia.
Em cada uma dessas imagens Rebelo de Sousa, embora em circunstâncias
diferentes, diz sempre só uma coisa: “os portugueses são os melhores do mundo”,
quer fossem bombeiros ou professores ou já não me lembro o quê. Uma pessoa
distraída dirá que é um tique, um observador razoável acertará: o homem precisa
de ser amado, amado até à exaustão, mimado, louvado. Senão, perde o pé. E por
isso ama também, e louva e mima; para ter a certeza que lhe devolvem, se
possível intacto, o “afecto”.
Deixo uma pergunta: se os portugueses são assim de uma penada e em tudo, os
melhores e logo “do mundo”, porque é que atrás de nós só há, numa União
Europeia que conta vinte e oito pátrias, dois países a crescer menos que
Portugal (e daqui a pouco só haverá um, visto já ser certo que a Grécia nos
ultrapassará)? Mais: e porque é que dos cinco países que a partir de 2011 foram
sujeitos a duros programas de ajustamento – Grécia, Irlanda, Espanha, Portugal
e Chipre –, os outros quatro crescem saudavelmente e a olhos vistos e nós não?
E ainda por cima “estando a economia a andar tão bem” como há pouco tempo nos
lembrou solicitamente o Presidente dos “portugueses todos os melhores do mundo?
6:
Ninguém tem vergonha? Mesmo sendo muito difícil escolher qual a vergonha,
alguém tem alguma?
PS. Um dia ainda me hei-de entreter a rever a herança de
Cavaco. Aquela sobre a qual as esquerdas se têm afanosamente ocupado em passar
um rolo compressor por cima. Infelizmente para elas é facílimo fazer essa
lista, além de que parte dessa boa herança está até muito à vista.
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