Uma análise que bate em cheio em
facetas imutáveis das arrogâncias humanas, de pretensão intelectual – pelo menos
nos seus inícios, da explosão das leituras da moda contestatária (agora mais
comedida nesses trabalhos de busca intelectual árdua), mas que ontem como hoje
são fruto de ódio compulsivo contra os que, mais ou menos pelo seu esforço,
foram conquistando um lugar repudiado pelos filhos dessa burguesia a abater –
ontem, visto que hoje, a igualdade se impõe, excepto para os que trepam a ocultas,
dando lugar a um fedor diário de processos judiciais, mas isso não consta do
excelente texto de Paulo Tunhas, todo ele sobre os extremismos e incongruências da
nossa extrema-esquerda, alguma já favorecida pelos topos, com a bênção de
todos, na incompreensão, é certo, de alguns, pela desconexão entre o ser e o
parecer nos seus combates de ódio às classes, como no apoio a Maduro,
justificativo de repúdio contra a USA capitalista.
Ao contrário, pois, do que
afirmam os clássicos, com Camões à cabeça, os tempos nem as vontades não mudam
assim, na pertinácia de uma aparente fraternidade, afinal redundando em “desprezo pela plebe”, na expressão de PT, plebe
generalizada, de gente caminhando no medo e na fome, que não comove, contudo, a
nossa extrema-esquerda tão sensível e altruísta.
O desprezo pela plebe /premium
OBSERVADOR, 28/2/2019
Face
ao ditador Maduro, que empreendeu uma guerra contra o seu próprio povo,
obrigando quase três milhões e meio de venezuelanos a abandonarem o país nos
últimos anos, gente simpática como Dilma Rousseff, Gleisi Hoffmann, Francisco
Louçã ou Joana Mortágua é tomada por um horror sagrado face ao imperialismo
americano. Trump
arranjará maneira, por um método qualquer, de pôr a mão na Venezuela e de impor
um seu fantoche, tendencialmente sanguinário. Nada de surpreendente, é claro.
Os velhos ódios, como os velhos amores, morrem dificilmente. Mas o facto de não
ser surpreendente, muito exactamente, convida a alguma reflexão.
A
facilidade em saltar para os hipotéticos males futuros, desvalorizando
alegremente os reais males presentes, é ajudada por duas características salientes:
a incapacidade de olhar os factos com um mínimo de desprendimento relativamente
a um quadro teórico geral no qual cresceram e de que nunca se afastaram por um
milímetro – e um profundo desprezo pela plebe. Estas duas características
encontram-se, de resto, ligadas uma à outra.
Convém
não esquecer que uma boa parte da esquerda (incluindo uma grossa fatia do PS)
vive no interior de um mito. O mito generosamente garante sentido a tudo. Ou
melhor, garante o sentido todo àquilo que permite pensar e, simultaneamente,
cria uma fronteira intransponível entre o sentido e o sem-sentido, que pertence
às trevas exteriores. O que é que o mito, genericamente, diz? Diz que há uma
direcção bem determinada da história, na qual, sabendo-o ou não, caminhamos, e
que essa direcção conduz ao socialismo e ao comunismo. Quem segue nessa
direcção está no bom caminho, quem marcha em sentido contrário está no caminho
errado. Não ver isto é laborar no sem-sentido, que só pode resultar de uma
resistência voluntária ao sentido da história ou da pura e simples ignorância.
Toda
a gente está a par desta doutrina, que outrora recebeu desenvolvimentos
filosóficos apreciáveis, bem como elaborações de uma rusticidade
extraordinária. O que se tende a ignorar é a que ponto ela continua a trabalhar
os espíritos e a fornecer o mobiliário mental fundamental de gente que aparenta
alguma sofisticação intelectual. O núcleo essencial do mito permanece intacto
naquelas cabeças, aconteça o que acontecer, e se, por um instante ou outro, a
crença se torna menos aparente, é para reaparecer logo a seguir, magicamente
intacta e não menos poderosa. Não há desmentidos de qualquer espécie, empíricos
ou teóricos, que a possam pôr em causa, como nada há que consiga tornar mais
porosa a fronteira entre sentido e sem-sentido. Isso manifesta-se tanto nas
mais gerais como nas mais ínfimas e ridículas questões. O mito perdura,
eternamente fechado em si mesmo.
Percebe-se
assim que Joana Mortágua ou Francisco Louçã, em artigos publicados no
esquerda.net, não vejam o que qualquer pessoa que não viva no interior do mito
vê com toda a nitidez possível. Por exemplo, que o regime “bolivariano” é um
regime que, desde o primeiro momento (desde Chávez), estava condenado a
tornar-se numa ditadura e que Guaidó, valha ele o que valer, representa
efectivamente a voz possível de uma sociedade humilhada e miserável, submetida
à crueldade de uma casta corrupta. Aí onde o ridículo e o grotesco anunciavam
com razoável antecipação o horror, nada viam. O ridículo e o grotesco escaparam-lhes
por inteiro, e tal colossal falta de sensibilidade diz muito daquelas cabeças. Certamente que agora se distanciam parcialmente de
Maduro, que manifestamente não pode já encarnar o sentido da história. Maduro
tornou-se incómodo, de mau gosto. Mas essa sensibilidade de superfície – que os
distingue do PC, que tem a pele mais dura — não chega, é claro, para olhar a
realidade de frente e medir o real sofrimento das pessoas. Cada
milímetro de distância de Maduro é compensado com metros de repúdio dos Estados
Unidos, finalmente os únicos efectivos fautores da desgraça dos venezualanos.
Sempre foi assim. É um ritual que o mito ordena.
Mesmo
assim… Como se pode ser tão imune à informação amplamente disponível sobre a
miséria venezuelana? Bom, a imunidade à informação sobre o terror tem uma larga
história e também aqui não se pode falar propriamente de novidade. Mas,
sobretudo, é preciso ter em conta que o mito obriga a uma extraordinária
selectividade no uso da compaixão. Se as criaturas humanas não encaixarem bem
no esquema que o mito oferece, não gozarão sem dúvida da mesma piedade que
merecem aquelas que nele encaixam. Formam uma plebe indistinta que não comove.
Não se anda longe do desprezo.
É
este desprezo, mais explícito ou mais implícito, que essencialmente fere. É o
desprezo a que o mito obriga em relação a tudo o que escapa ao seu fechamento,
a tudo o que não cabe no seu sentido. Aquela gente que foge da Venezuela ou que
por lá se deixa morrer, pura e simplesmente não faz sentido. Joana
Mortágua e Francisco Louçã preferem falar dos Estados Unidos e dos sinistros
planos do Império. Conhecendo um pouco aquela maneira de pensar, faz todo o
sentido: um sentido que tem uma triste e longa história.
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