Um texto poderoso de Clara Ferreira Alves que, sem
rodeios nem qualquer propósito literato de confronto fabular, se serve de
exemplos reais de análises do comportamento animal para o equiparar à actual
conjuntura política estabelecida por um orgulhoso “Brexit”, mascarado
inicialmente de oposições internas entre conservadores e trabalhistas ingleses,
mas que há muito são denúncia do velho desdém de superioridade insular por um
continente espartilhado hoje em múltiplos remendos, de nacionalismos colidindo
com as generosas intenções iniciais dos fautores da U E, de que, provavelmente
o UK desejará eximir-se a participar. Mas é um pensamento leigo, este meu, que
nada tem a ver com a formidável diatribe de CFA contra um “Brexit” egoísta e pedante, de
imprevisíveis consequências no seguimento da política unionista europeia. Ou mesmo
da paz mundial, que, segundo CFA “traz um tédio”.
Daí que a ideia de uma guerra “tribal” não seja despicienda entre os “primatas”
“humanos” neste impasse de expectativas e receios, ou, para muitos outros,
apenas de apreciada “ponte de passagem
para outras margens”, dos seus gozos pessoais.
Os Grandes Primatas
E, 02.02.2019
Há
uns anos, fui ver um combate de muay thai, em Banguecoque. Muay thai é a arte
marcial da Tailândia e conhecida como “a arte dos oito membros” porque faz uso
dos ombros, pulsos, joelhos e pernas. Os combatentes são pequenos e ágeis,
musculados, a força bruta parece excluída do combate. A ilusão desfaz-se em
segundos. Cada round é
violentíssimo e dura três minutos com dois minutos de descanso. O treino dos
atletas é intenso e nem um músculo do corpo é desvalorizado. O golpe de pés é
virtuoso. Tem tudo para ser um desporto que os espectadores apreciam e mobiliza
as paixões e as apostas. Os combates e as técnicas de muay thai, com origem no
século XVIII, dissolveram-se nas artes marciais mistas e nesses circuitos e
campeonatos MMA. Na Tailândia, o muay thai é muito popular e os estádios estão
cheios. Numa noite, vários combates seguem-se uns aos outros a alta velocidade.
Fora das cordas, os apostadores berram e torcem pelos seus atletas e o barulho
e a intensidade do desporto só podem ser comparados ao futebol. Não existe
neutralidade no meio da gritaria.
No
combate a que fui, nocturno, havia quatro ocidentais em milhares de
espectadores. Três americanos e eu. Não participávamos da paixão colectiva, não
conhecíamos os combatentes e as apostas, os favoritos e os ídolos. Nem conhecíamos
as regras. O que nos interessava era o jogo acrobático. Não tínhamos por quem
torcer. Não tínhamos tribo, equipa, grupo ou lutador. E sem ter por quem
torcer, a coisa tornava-se monótona. Não se distinguia um combate do outro. Em qualquer
jogo humano necessitamos de competição e sentido de presença. A tribo faz parte
da sobrevivência e a paz traz um tédio. O problema do tribalismo, mesmo para
individualistas que desconfiam do grupo e do colectivo, é que é mantido em
controlo por mecanismos sociais que falham e quando falham a violência gerada é
destrambelhada.
O
espectáculo do debate parlamentar britânico sobre as emendas ao acordo do “Brexit”
foi um combate marcial com golpes rápidos em curtos rounds. As tribos
manifestaram-se e toda a discussão se manifestou em nós contra eles. Porque a
primeira e negativa consequência do” Brexit” é que somos nós, os europeus,
contra eles, os ingleses, e são eles, os ingleses, contra nós, os europeus. Já se ultrapassou a fase de conservadores contra
trabalhistas, passámos para a hierarquia superior da disputa da supremacia
territorial, e neste combate começa a não haver regras. Basta ler os
comentários dos jornais e das redes. Estamos irremediavelmente divididos,
zangados e hostis. A nossa tribo quer ganhar à outra tribo e toda a
racionalidade se esvai na violência do combate. Estamos todos furiosos como
convém. Entrámos em guerra.
A primatologista
Jane Goodall estudou os chimpanzés a vida toda, deu-lhes nomes em vez de
números, e durante muito tempo teve a ilusão de que eram muito parecidos
connosco mas mais afáveis e decentes. Possuíam emoções, a capacidade de construir
e utilizar ferramentas, o aue indica planeamento, e agiam socialmente de forma
semelhante à nossa. Riam e choravam como nós, amavam os filhos. Até ao dia em
que Jane Goodall viu uma tribo de chimpanzés lutar contra outra tribo e se
apercebeu de que os mesmos macacos com quem trocava gestos afectuosos se
convertiam em assassinos e torturadores. Até ao dia em que assistiu a uma
guerra civil e os macacos que antes eram vizinhos e cúmplices se mataram uns
aos outros sem piedade. Goodall perdeu as ilusões sobre a bondade do reino
animal e deve ter perdido as ilusões sobre a condição humana.
O que
os grandes primatas fazem, e nós somos grandes primatas, é matar assim que a oportunidade
aparece e os mecanismos de contenção desaparecem. Os desportos de competição
são, como o circo romano, uma forma aceitável de aliviar a violência que mora
em nós. E a política deve ser uma forma de conter e canalizar as baixas paixões
que destroem a vida em sociedade.
A
Europa, que sobreviveu a guerras tribais e mundiais, foi construída em comum
para evitar a guerra. E foi bem construída, como um projecto generoso. Apesar dos
erros e da monotonia da paz, o projecto mantém-se. O que os ingleses estão a
fazer, com o tribalismo e o ressentimento a disfarçarem um imperial complexo de
superioridade, é destruir o tecido europeu e erigir um monumento à solidão e à
insularidade. Sabemos no que resulta. Sabemos também que precisamos
de hierarquias nas nossas vidas (Jordan Peterson tem nisto razão, mas tem sido ridicularizado e
combatido pela esquerda que o pretende colar aos neonazis) e que a
igualdade é uma axiologia que o marxismo incorporou como filosofia política económica. Somos desiguais
e a maneira de combater a injustiça gerada pela desigualdade e controlar a
hierarquia é pelo altruísmo. Mesmo o
altruísmo imposto pela norma de convivência e o que designamos como Estado. Ou
imposto pela religião. Ou pela consciência moral. A linha que
separa a civilização da barbárie, e a coexistência tribal da guerra civil, é
ténue. Qualquer resultado do “Brexit” não reparará o que aquele referendo já
destruiu. Somos obrigados a tomar partido, a torcer por um lado, a apostar num
combate marcial. E eles, os outros, serão os primeiros a morrer.
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