Estamos todos bem presos à vida, e o
certo é que, quando nos toca a vez de precisarmos dos serviços médicos e
verificamos competência que se traduz em êxito, nos tornamos profundamente
gratos para com quem nos operou ou cuidou, ou aos nossos familiares. Eu tenho
várias razões de gratidão, não só pessoais como referentes a familiares
próximos – e a amigos, também – que diriam quanto se apanham de competências,
não só da parte médica como da parte dos enfermeiros e auxiliares, nos vários
hospitais, e não só no Santa Maria. Maria João Avillez, como
sempre de escrita sedutora, tece bela homenagem a este último hospital, e tem
razão. O meu João, tratado de problema sério no de Cascais, costuma dizer que
nunca dirá mal dos serviços hospitalares. E a minha neta Catarina e o seu bebé - e nós por razões de afinidade sentimental - boas razões temos para esse sentimento de profunda gratidão. Eu estou muito reconhecida a este Hospital de Cascais, que há
muito cuidou tantos dos meus – filhos, netos, a mim própria… E sei outras
referências hospitalares positivas, pelo país. É função deles, tratar na
doença, com competência, respeitar nas necessidades da sobrevivência, com
humanidade. Merecem, pois, respeito e ordenados de acordo. Mas todas as
profissões estão insaciáveis no seu exigir, manipuladas pelos agentes da
distribuição dos afectos em proveito próprio, a coberto desse afecto, e como
não produzimos muito, em termos de rentabilidade económica, todos esses
aumentos salariais exigidos com furor, ficarão por conta dos impostos e não dos
lucros da produtividade. Daí, esta eterna posição de penúria geral, no “salve-se
quem puder”, contudo, dos das vias de enriquecimento travessas. E também “travêssas”.
A “familiar de referência” /premium
OBSERVAÇÃO, 20/3/2019
A
altíssima competência médica de Santa Maria releva também do milagre da
dedicação. Deve haver poucos sítios no mundo onde se possa entregar assim um
coração.
1.
Nem sequer houve pré-aviso, a vida mudou de cor num minuto, vesti outra pele,
passei a chamar-me “familiar de referência.” Aprendi a circular em infindáveis
corredores, a não confundir esquinas e acertar nos elevadores. A lidar com
aquele súbito desconcerto, tacteando a vida em vez de a viver. Tacteando a
abissal diferença entre o conhecido e o vivido e era implacável a diferença entre
uma coisa e outra. Tudo aquilo era agora comigo.
2.
E, subitamente, lembrei-me: foi há quase três anos, em Setembro, estava uma
manhã azul e radiosa, íamos a caminho do Douro. Aquela coisa da felicidade.
Nisto toca o telefone, era o filho de Londres, tão cedo?, pensei, ”houve uma
chatice no nosso metro de Parsons Greens, havia uma bomba mas está tudo bem, o
Luís foi no metro antes, já está na escola, está tudo bem…”.
Tudo
bem? Garganta seca, a voz que não saía, o trovão da descoberta: seria aquilo o
pânico?
“Não
podemos sair de casa, as ruas estão fechadas, num segundo ficámos rodeados de
polícias, ninguém entra, nem sai”. De repente era o “vivido”, em vez do
“sabido”, a notícia não viera de um écran televisivo mas da voz falsamente
tranquila de um filho a dizer-nos que o seu filho apanhara o metro anterior.
Com a mesma velocidade com que a polícia inglesa bloqueara meia dúzia de ruas
londrinas, a nossa condição de longínquos espectadores do terrorismo nos
telejornais, transformara-se em “parte” implicada: prosaicamente a caminho do
Douro, numa manhã já não doce, prováramos a diferença.
3.
Desta vez, no Hospital de Santa Maria, também. Primeiro foi o “de
repente” com que tudo sempre começa: a angústia pelo telefone, o voo para casa,
a cabeça a andar à roda, “tudo menos ir para um hospital privado”, a chegada do
INEM. Um clássico, só que meu, pessoal, intransmissível. Quantas vezes ouvira
enaltecer o INEM, a competência do Serviço Nacional de Saúde, a excelência
clínica dos hospitais públicos? Muitas, mas de longe, à distância. Idas
esporádicas a Santa Maria, algumas à Urgência. O trivial, nunca uma emergência.
Agora era. Sucede porém que o que ali vi e vivi, durante cinco dias, foi tão
fora do comum para o que (apressadamente?) apelidamos de padrão nacional, que
tenho a responsabilidade de dar testemunho. Faço-o porém com aquela consciência
atrapalhada e constrangida de que este escrito não é senão uma mísera, quase
inverosímil gota de água no mar de reconhecimento que devia embalar o grupo de
especialistas com quem convivi.
4. O
quadro justamente saía do ordinário, do comum, do habitual quadro português:
nunca houve alteração da ordem, alarido, precipitação, desmazelo, incúria.
Gestos desnecessários, conversa fiada. Cada clínico e clínica dos vários
com quem lidei, a começar nos do próprio INEM até aos serviços onde estive – SO
e UTIC — sabia o que estava a fazer, usando apenas das palavras necessárias e
dispensando as supérfluas. Apercebi-me (o tal “vivido”) de como
está bem sincronizada a coreografia desde que duas ambulâncias entraram no
nosso pátio, até ao momento em que, pouco mais de uma hora depois, já em Santa
Maria, uma equipa previamente avisada e devidamente informada, entrava em
acção. Sentada solitariamente num banco de plástico azul num corredor semideserto,
também percebi o que significa “estar entregue”: era aquilo. E “aquilo” — a
segurança que eu sentia — não tinha preço.
Escrevo
este texto porque, numa altura de extrema dificuldade na vida de um servidor
público médico, enfermeiro ou auxiliar — dadas as imponderadas cativações que
ocorreram para Centeno brilhar em Bruxelas e Costa aqui — é preciso anunciar
que esta magnífica capacidade de resposta e esta altíssima competência no
“modus operandi” clínico também relevam do puro milagre da dedicação. Se lhe somarmos a consciência profissional, ética
e cívica com que ali se oficia, talvez comecemos a espantar-nos menos com
aquilo a que erradamente chamaríamos outros milagres e que são apenas rotinas
responsavelmente bem organizadas: uma atenção permanente – o que na imensa,
inconfundível solidão dos hospitais, gera a única coisa de que se precisa que é
a confiança; a pontualidade; a ordem que não se vê mas tudo rege; o asseio
enfim, do chão a brilhar, à cama ou ao duche, e quem está à espera disto num
hospital público superlotado e no momento delicadíssimo que aflige hoje o
sector publico da Saúde?
Deve
haver poucos sítios no mundo onde se possa entregar assim um coração.
5. E
também deve haver poucos lugares tão transversais como um hospital e se há coisa
que guardei desta “viagem” foi a memória dela. Memória compósita: cruzamentos
de vida com desconhecidos da enfermaria que na manhã seguinte passavam a
indispensáveis companheiros; desabafos improváveis, súbitas generosidades,
risos, comentários, apreensões, o jogo da sueca ao serão, na mesa já livre dos
tabuleiros do jantar, a oferta de jornais e mimos, as diversas profissões
contadas por eles próprios, do “feirante de Alfeizeirão” ao “agente
imobiliário” de Lisboa que com invejável à-vontade liderava o que quer que
fosse na enfermaria. Nada porém que se comparasse aos 3-0 do Benfica-Dínamo
de Zagreb, televisivamente partilhados ali mesmo – em surdina claro está, mas
mesmo assim: seis matulões de pijama de azul, quase todos “encarnados” menos um
idoso que torcia pela Académica de Coimbra e outro que era do Sporting. Às
vezes olhando para aquele desconcertante pequeno mundo, perguntava-me se era eu
que ali estava: era? Nunca nos surpreenderemos o suficiente com a
inesgotável capacidade da vida em gerar o improvável.
6. Melhor
foi impossível? Não, também houve parecido com “pior”. (Se eu estivesse em maré
de humor este texto poder-se-ia até chamar “melhor é impossível e… pior
também”, mas não estou.) Refiro-me a este singular (e omnipresente) lado
português das coisas: por muito saber, alta competência e altruísmo que haja –
e era o caso, naquele serviço e naquele hospital — a nossa lusa
“especificidade” acaba sempre, com maior ou menor protagonismo, por se mostrar.
E embora nada se pudesse fazer sem o trabalho daquelas dedicadas enfermeiras,
auxiliares e empregadas, espantava o ruído ensurdecedor: vinha das copas, dos
corredores, das conversas vivazes entre todas elas. E das suas vozes demasiado
audíveis onde misteriosamente e sem necessidade aparente, se preferia o grito à
fala. Um dia perguntei ao director do Unidade se tal ruído não lhe lembrava —
por exemplo — Las Vegas, tal a animação. Não lembrava: “As instalações já
antigas do hospital sendo espaçosas e amplas como eram, criavam uma ressonância
e um trânsito que dificultava o silêncio”. Talvez. Mas – por falar em antigo –
fiquei com pena daquele “pior” que — porventura por se ter perdido o “antigo”
sentido da hierarquia ou a autoridade ter caído em desuso– maculava uma óptima
impressão.
Não
seria difícil humanizar ali o tom de voz, não custaria um cêntimo.
Afinal
bem mais difícil é deixar lá o coração. Entregue.
Maria Madeira: Excelente e sentido texto|
Ana Ferreira: Ah, o Estado, o Estado! E o
SNS? Primeiro um desaforo, depois uma desgraça, e agora algo que é premente
destruir. E quem ao longo das décadas, até hoje, os defendem? Uma cambada de
marxistas ao serviço dos mais obscuros desígnios! Depois, quando chega a hora,
na tentativa de reduzir a realidade à humanidade das peças de uma máquina
complexa, o endeusamento fácil de quem cumpre, sem mácula, o seu dever. Não é a
primeira, nem será a última entre pares, a fazê-lo. Ainda bem!
Nuno Cabrita: Interessante notar que ninguém,
seja de direita, esquerda ou assim-assim, pondera sequer "entregar o seu
coração" num hospital privado...
chints CHINTS: Bonito texto. Os gritos são a
consequência da falta de autoridade da chefia e da insensibilidade de quem os
usa.
Catarina Sousa Mendes: Excelente! Folgo em perceber a
recuperação na excelência da escrita!!!!
Amora Bruegas: Interessante..., será que esta
sr.ª sabe que foi o Estadista a quem virou costas num acto de ingratidão, que
foi o Obreiro do Santa Maria, bem como dos São João (Porto) ou a Maternidade
Alfredo da Costa? Ou prefere andar a banquear gente nula, autêntica
nódoa política, como o MSoares?
Maria Nunes: Bonito testemunho. Votos de melhoras para o familiar
doente. Não retiraria uma vírgula
para relatar a experiência recente que tive com um familiar. E , de facto, o
que notámos, todos os que visitamos esse familiar, foi o falar em tom de
grito pelos profissionais em toda e qualquer circunstância, particularmente
mais evidente à hora de saída das visitas para descanso dos doentes. O familiar
relatou que não descansava por causa das vozes aos berros nos corredores.
Quanto ao mais é caso para se dizer com toda a propriedade que fazem milagres.
Durante aqueles dias reflecti seriamente sobre o colapso....sobre os que
estão na política para se governar mas também sobre os que vivem em sociedade na
batota. Entre as visitas houve quem fizesse reparos despropositados e injustos
sobre o Serviço, (curiosamente vindo de pessoa que exerce o comércio de balcão
e se furta sempre que pode ao dever de contribuir). Não creio que vivamos numa
sociedade suficientemente civilizada que permita manter tais serviços. Somos
ladrões e mesquinhos. Todos.
Joaquim Almeida: Merecida homenagem a alguns dos
melhores dentre nós .
Luis Oliveira: Todos os que pagam impostos, e mesmo os que não pagam
ou pouco pagam, o que é de direito é ter serviços de excelência, o que é
lamentável é que por razões menos nobres, a estes serviços lhes sejam
retirados, ou não dados, os devidos recursos!!!
Mosava Ickx: Descobri que o SNS apenas funciona com a dedicação e o
profissionalismo das equipas que tratam dos doentes, e apesar da tutela e das
administrações envolvidas... ao contrário do que muita mente simplória pensa. Apesar
da falta de material, medicamentos e de ter lençóis rasgados na cama, como
experimentei, as equipas humanas compensaram.
Amora Bruegas > Mosava Ickx: Pena que a autora ainda não
tenha descoberto que o SNS existe (há mais de 70 anos!), graças ao Estadista
que é alvo de tanto ódio, ingratidão e calúnia.
Alexandre Barreira > Amora Bruegas: ....isso já não conta.....agora
o que conta é....a "lata-de-chouriços"......!!!!
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