Por Teresa
de Sousa, ainda sobre a tal carta de Macron. Uma escrita enxuta, boa para leigos,
como eu, clara e lúcida, mas, naturalmente não reconfortante, que o mundo está
perverso, e o povo francês parece não sentir a mesma afeição pelo seu
presidente, jovem tenaz e decidido, apesar dos coletes amarelos que poluem a
sua pátria indócil. Os comentadores de TS são muitos, cortantemente sabedores, alguns deles. Limito-me
a transcrever um mais cordato, Armando Heleno, de Mogofores.
OPINIÃO: Macron fez o que devia. Os seus
pares deviam fazer o mesmo
Há duas ou três coisas fundamentais na
carta de Macron aos europeus. A primeira é, justamente, dirigir-se aos
europeus.
TERESA DE SOUSA
PÚBLICO, 10 de Março de 2019
1. Pode não se concordar com todas, ou até com a
maioria das propostas de Emmanuel Macron para um Renascimento Europeu.
Pode não se apreciar as belas frases que são típicas da França e do francês.
Cada língua é a expressão de um povo e de uma cultura. Pode até pensar-se que a
iniciativa do Presidente francês acontece agora porque tem a ver com as suas
dificuldades internas e é, também, uma forma de mostrar aos franceses que ainda
não abdicou de liderar a Europa. Em matéria de oportunidade, pode ser isso
tudo, mas convém não esquecer que a campanha para as eleições europeias está
a começar, o que justifica plenamente o momento escolhido. Dito isto, a
verdade é que, no essencial, a sua mensagem aos 500 milhões de cidadãos
europeus merece reflexão – pelo que significa e pelo que propõe –, e não apenas
um encolher de ombros ou algumas críticas sobre a mania das grandezas dos franceses
ou sobre o irrealismo das suas propostas.
2. Há
duas ou três coisas fundamentais na carta de Macron aos europeus. A primeira
é, justamente, dirigir-se aos europeus. Não se dirige à Alemanha ou aos
seus pares, em geral, nem sequer aos franceses, em particular. A Alemanha
não é mencionada uma única vez na carta. Mas a França também não, o
que já lhe mereceu as reacções “patrióticas” de muitos políticos e comentadores
franceses. Macron acredita que se deve construir um “demos” europeu – um
sentimento generalizado de pertença que trave o forte sentimento nacionalista
em crescimento acelerado e que dê sentido à ideia da Europa para uma maioria de
cidadãos europeus. A carta foi publicada nos 28 países da União e,
certamente, provocou polémica em quase todos eles. Objectivo alcançado. Qual
é o principal propósito do Presidente? A Europa tem de ser defendida contra os
seus detractores. É verdade que muitos líderes europeus o fazem com convicção.
Mas também é verdade que a defesa da Europa tem hoje um cunho demasiado
“defensivo” ou, então, demasiado acrítico, evitando enfrentar os problemas e os
riscos monumentais que enfrenta. Como a carta demonstra sem ambiguidade, Macron
não subestima esses perigos, o primeiro dos quais é o nacionalismo. Não faz
contas às sondagens para mostrar que tudo está bem. Não mede em percentagem os
partidos de extrema-direita nacionalista, minimizando o seu impacte político.
Não tenta disfarçar a ameaça.
A
sua segunda mensagem também tem a virtude da clareza: se a Europa não for capaz
de reagir, acabará submergida pelo poder das velhas e das novas grandes
potências num mundo que deixou de funcionar segundo as regras do
multilateralismo para passar a ser dominado pelas relações de força entre
grandes pólos de poder. “A Europa não soube responder às necessidades de
protecção dos povos face aos grandes choques do mundo contemporâneo”. A França,
como o Reino Unido, percebem o que isso é melhor do que a maioria das outras
nações europeias. Vai directamente ao mais dramático dos sinais de desagregação
europeia e da sua perda de importância relativa no mundo: o “Brexit”. Os
britânicos insurgiram-se contra uma “ingerência” que, dizem alguns, apenas
ajuda os “Brexiteers”. Não é assim. O Presidente sublinha que “todos
aprendemos” com o que aconteceu no Reino Unido. Uma das suas propostas – uma
das que faz sentido – é, justamente, a criação de um Conselho de Segurança
Europeu no qual, mesmo fora, o Reino Unido tenha assento. Ninguém como ele
percebe até que ponto a capacidade militar britânica é vital para a segurança
europeia nesse novo mundo da rivalidade entre grandes potências. “Nesta Europa,
o Reino Unido encontrará o seu lugar.”
3. As suas
propostas são muito “francesas”, dizem os críticos. É verdade, mas também não seria de esperar outra
coisa. Há, no entanto, uma distinção que é necessário fazer. Em Paris
já se percebeu há muito que a Europa não existe, como antigamente se dizia,
para garantir “la grandeur de la France”. Os
sucessivos alargamentos encarregaram-se de transformar essa visão inicial. O
alargamento a oito países de Leste em 2004 pôs-lhe fim. Hoje, no geral, a elite francesa percebe que mudaram radicalmente
os equilíbrios de poder internos da União e não a favor da França. Como percebe que a dimensão da
União passou a ser uma vantagem perante o mundo e não uma desvantagem que
ameaçava a sua coesão interna. Macron percebe-o melhor do que ninguém, sem
abdicar de uma das missões que se propôs quando chegou ao Eliseu: o regresso da
França ao palco europeu e mundial. A
sua carta segue os seus grandes discursos sobre a Europa, esses sim com um
destinatário concreto: Berlim. Do outro
lado do Reno, a resposta não veio ou foi bastante mitigada. A própria carta revela
que o Presidente francês já abdicou de algumas das respostas que esperava. Não
menciona a necessidade de levar mais adiante a reforma da zona euro nem os
mecanismos indispensáveis para facilitar a convergência económica entre os
países que a integram.
Curiosamente,
mais do que a França, é hoje a Alemanha que mais frequentemente cai na tentação
de decidir sozinha, tendo apenas em conta os seus interesses e ignorado os
parceiros. Quando,
por exemplo, decide tratar da sua própria “segurança” energética, apadrinhando
mais uma ligação directa de abastecimento de gás entre a Rússia e território
alemão, contornando a Ucrânia ou os Bálticos (Nord Stream II), depois de
tremenda polémica causada pelo Nord Stream
I. Questão menor? Não, questão
estratégica. Quando ignora qualquer preocupação com os
desequilíbrios macroeconómicos internos à União – cuja obrigatoriedade de
correcção está inscrita em letra de forma no Tratado Orçamental –, mantendo o
seu modelo de crescimento assente numa balança altamente excedentária com quase
todos os seus parceiros europeus e tornando a vida deles bastante mais difícil.
Quando decide adoptar uma “política industrial” alemã, sem qualquer preocupação
de negociá-la no quadro de uma eventual “política industrial” europeia. E o que
é mais interessante é que, quando Macron defende uma “política industrial
europeia” e as mentes mais liberais lhe caem em cima (até, talvez, com alguma
razão), ninguém as ouve criticar a mais recente decisão de Berlim sobre o
mesmíssimo assunto. Nada disto serve para denegrir a Alemanha. Serve apenas
para sublinhar o facto de estarmos a atravessar terreno escorregadio, o que
recomenda alguma modéstia e também alguma abertura de espírito.
4. Macron
tem razão quando fala de “soberania europeia” em contraponto à soberania
nacional? Se a Europa é, em primeiro lugar, partilha de soberania, há uma
soberania partilhada e a palavra não é proibida, desde que os cidadãos tenham a
ver com ela. Por exemplo, tem razão quando defende que é preciso reconstruir
Schengen, sobretudo se nos lembrarmos que Schengen já praticamente só existe no
papel, a não ser nos aeroportos para dividir zonas de partidas. Os
atentados terroristas e a crise dos refugiados foram o pretexto para que muitos
Estados-membros reerguessem as suas fronteiras, que agora levam tempo a voltar
a baixar. Só pode haver Schengen com a mesma lei de asilo para todos e a
garantia de que as fronteiras externas da União Europeia são devidamente
vigiadas. É a sua “Europa que protege” para não deixar a segurança das pessoas
nas mãos dos demagogos.
São
mais polémicas as suas propostas sobre o investimento estrangeiro ou sobre a
“preferência europeia”. Diz o
Presidente francês que a Europa tem de jogar o jogo económico internacional com
as mesmas armas que outros grandes blocos usam para se proteger.
O escrutínio do investimento estrangeiro em sectores estratégicos pode fazer
sentido, desde que não se transforme numa forma encapotada de proteccionismo.
As regras da concorrência no Mercado Interno podem estar ultrapassadas, mesmo
que sirvam em primeiro lugar para a protecção dos cidadãos? É outro debate que
hoje pode ser feito sem tabus. A Siemens
e a Alstom podem criar um gigante europeu capaz de dominar 50 por cento do
mercado dos comboios. É bom ou é mau? Talvez seja excessivo. Já a “preferência
europeia”, que igualmente propõe, é uma questão bastante mais problemática. Há
muitas outras ideias na sua carta que vale, obviamente, a pena discutir. Ele
fez o que devia. Outros deviam seguir-lhe o exemplo.
COMENTÁRIO:
Armando Heleno, MOGOFORES (Anadia) 10.03.2019: A
lucidez da Srª Drª Tereza de Sousa está sempre presente nos seus belos
comentários e sobretudo em assuntos muito sérios. Fica-me a ideia de que o
presidente francês anda sozinho e a pregar para o deserto, apesar de ter razão
no que apregoa. A Srª Merkl vai tratando da vidinha dos seus compatriotas que
se vão locupletando pelos benefícios do made in germany. Os outros vão-se
contentando com as sobras da parte de leão. E que continuem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário