quinta-feira, 21 de março de 2019

O estado “ do” sítio


Duas excelentes crónicas sobre o mundo como vai: no seu global – caso da crónica de Rui Ramos, sobre o terrorismo ao nível geral, como produto de extremismos ou vinganças, (mas esquecendo, contudo, de nele fazer figurar as monstruosidades cometidas nas guerras ou revoluções ou até mesmo as perpetradas pelas santas Inquisições, provando quanto o homem consegue ser um ser hediondo, desde que lhe seja dado poder para o demonstrar). Também a Crónica de Sebastião Bugalho me parece uma excelente análise sobre o nosso caso específico, de país governado sem grandes escrúpulos e sem grandes hipóteses.

O terrorismo é hediondo, seja racista ou islâmico /premium
OBSERVADOR, 19/3/2019
Os terroristas, racistas ou islâmicos, usam os mesmos métodos com o mesmo objectivo: separar as sociedades ocidentais em comunidades definidas pela hostilidade mútua.
Não, o terrorismo racista não é pior do que o terrorismo islamista ou do que o terrorismo da extrema-esquerda. Todos os terrorismos são hediondos, embora haja muita gente para quem parece ser mais fácil condenar uns do que outros. Mas o terrorismo é sempre o que vimos na Nova Zelândia a semana passada ou em Paris em 2015: assassinos cobardes a matar pessoas indefesas. Dostoievsky, em Os Possessos, ou Conrad, em O Agente Secreto, descreveram estas personagens e os respectivos novelos de delírio e de manipulação política, e desde então ninguém inventou mais nada. Racistas, islamistas ou, como ainda era costume nos anos 70, marxistas-leninistas, são sempre os mesmos autodidactas que leram um livro ou que, nos dias que correm, viram uns vídeo da internet, e se convenceram de que tinham percebido tudo, ao ponto de ter o direito de precipitar o apocalipse. O terrorismo, antes de ser usado em estratégias políticas, começa sempre por ser um exercício de narcisismo para falhados.
Não por acaso, o ataque racista da Nova Zelândia  lembra os ataques islamistas de Paris. Racistas e islamistas podem distinguir-se em muita coisa, que os seus métodos são os mesmos, e o objectivo também é comum: separar as sociedades ocidentais em comunidades definidas pelo medo e pela hostilidade, como preparação para uma guerra civil. Racista, islamista ou esquerdista, o terrorismo, chamem-lhe “jihad” ou “luta armada”,  é fundamentalmente só um.
Que fazer? Três coisas, pelo menos.
Em primeiro lugar, nunca tratar os terroristas como representantes de quem quer que seja, como se a violência fosse a origem de um mandato, segundo o mau hábito adquirido nas “lutas de libertação” do pós-guerra. Não, os terroristas islâmicos não representam o Islão, mas os terroristas racistas também não representam o nacionalismo ocidental. Numa sociedade livre e plural, o terrorismo não tem razão de ser, a não ser precisamente a da falta de representatividade e de argumentos de quem a ele recorre. Por isso, ao terrorismo resiste-se, antes de mais, com vigilância e repressão. Não deve haver nenhuma dúvida a esse respeito. Foi assim que se destruiu o terrorismo da extrema-esquerda nos anos 70: enfrentando os seus protagonistas, até estarem presos ou mortos. É assim que o terrorismo islâmico tem recuado, depois da derrota do ISIS na Síria. É assim que se deve lidar com racistas como o assassino de Christchurch. Os terroristas não se convencem: vencem-se.
Em segundo lugar, nunca deixar os terroristas apropriarem-se de problemas e converterem-nos em temas de apocalipse. O Ocidente, especialmente na Europa e na América do Norte, está em transformação: a população a que, de um ponto de vista de meados do século XX, podemos chamar “nativa” envelhece e diminui, ao mesmo tempo que migrações frequentemente desordenadas originam novas comunidades, jovens e em crescimento, cuja probabilidade de simplesmente se diluírem nas culturas anfitriãs, como no passado, é baixa. Mais: enquanto as identidades dos “nativos” estão sujeitas ao repúdio e à desconstrução, as dos recém-chegados parecem protegidas por velhas culpas coloniais. É fácil, neste ambiente, fazer da pluralidade uma fonte de desconfiança e da mudança um factor de  ressentimento. Discutir estas questões, de modo que não sejam debatidas unicamente nos termos de racistas e de islamistas,  não é servir os extremismos, mas precisamente o contrário.
Em terceiro lugar, nunca deixar as vítimas do terrorismo serem reduzidas, através dos noticiários e das análises, ao pó indiferente das estatísticas. Importa contar as suas histórias pessoais, porque é isso mesmo que o terrorista nega: que o outro seja uma pessoa, com uma história que é só sua, única, irrepetível. Afinal, é talvez aí, no facto de não sermos todos iguais, uma massa anónima meramente definida por identidades colectivas, que esteja o único motivo de esperança para a humanidade.

COMENTÁRIOS
Manuel Lisboa XII: Palavras sábias e bons conselhos. Parabéns Rui Ramos! 
Amora Bruegas > Manuel Lisboa XII: Sábias??? O prof. já criticou o terrorismo de estado a que estamos sujeitos há mais de 40 anos?  
Ou o que foram/são situações como os assassinatos de Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa, as nacionalizações, as falências bancárias e fraudulentas de empresas e os incêndios que matam centenas de pessoas e destroem a vida a milhares?  Os democratas responsáveis foram condenados e estão presos? As vítimas foram ressarcidas?... NÃO!
E os terroristas das FP25Abril foram condenados e presos, bem como as vítimas e famílias ressarcidas?  Não! 
Onde está essa "sapiência", cabeças emotivas e manipuláveis pelo instantâneo e passageiro?

Quem vai vender o sonho do “país sem austeridade”? /premium
SEBASTIÃO BUGALHO
OBSERVADOR, 22/2/2019
Ao utilizar uma mentira para legitimar a sua existência – «o fim da austeridade» –, a geringonça subtraiu a verdade do espaço público, aumentando o risco de mais facilmente o país acolher o populismo.
1. Outubro de 2018 foi o pior mês para a Bolsa norte-americana desde a grande crise de 2009. Sem querer apostar em profecias pessimistas, é inquestionável que o período de crescimento global a que a Europa vem assistindo nos últimos quatro anos está a terminar. Para roubar a alegoria ao primeiro-ministro: as vacas gordas vão descer à terra. O problema está em perguntarmo-nos quem terá o capital político para dizê-lo e, sobretudo, para governar dizendo-o. Num novo período de contenção orçamental, os eleitores lembrar-se-ão, com certeza, daquilo que a ‘geringonça’ lhes prometeu em 2015: «um país sem austeridade».
Quando o contexto económico deixar de ser tão sorridente, a esquerda, agora no poder, já não poderá vender esse sonho. Mas isso não significa que os eleitores não o quererão comprar. O que me preocupa é quem venderá esse «país sem austeridade» quando a devolução de rendimentos sair das prioridades do governo. Na oposição, PSD e CDS estão limitados pela sua matriz não populista e pela sua governação mais recente, que os impossibilita de crescer à conta do tal «país sem austeridade». À esquerda, o Bloco de Esquerda e o PCP estão condicionados pelos seus últimos quatro anos de tolerância a cativações e metas de Bruxelas. No executivo, o Partido Socialista poderá insistir que aplicará esse tipo de medidas como algo «temporário» e com «menos dor» ou vontade do que a direita faria, mas isso também não chegará. As pessoas quererão aquilo que a ‘geringonça’ lhes vendeu como possível em 2015 – o país sem austeridade – e as pessoas votarão em quem que lhes prometer isso.
Mais do que qualquer árvore geneológica, esse é o maior risco que a actual solução de governo deixa como legado. Ao utilizar uma mentira para legitimar a sua existência – «o fim da austeridade» –, a ‘geringonça’ subtraiu a verdade do nosso espaço público. E não me venham dizer que é exagero. Em três anos de governação, Costa teve mais greves, mais cativações e mais impostos do que Passos em quatro anos de assumido rigor financeiro. A precariedade laboral não mexeu um milímetro. A austeridade nunca acabou e o PS sabe-o muito bem. No entanto, fabricou e difundiu esse engodo por mera necessidade política. Foi isso que aconteceu em 2015, senhoras e senhores: o poder sacrificou a realidade. Desde aí, desde que António Costa subtraiu a verdade do espaço público, que Portugal corre o risco de mais facilmente acolher fenómenos populistas – à esquerda e à direita – porque é isso que sucede quando se promove uma farsa: qualquer actor fica com a cortina aberta para o teatro.
Se é previsível que o próximo ciclo económico seja propício a esse tipo de dramaturgia, a responsabilidade será da esquerda, que inaugurou a encenação.
2. A questão está em como responder à universalização do disparate. Que comportamento devem ter aqueles que sobram – e aqueles que chegam – face à falência política da ‘geringonça’ e diante da janela eleitoral que tal representa? Fala-se em refundações, federações, pré-coligações, pós-acordos e futuras maiorias. Fala-se, portanto, em muita coisa. Mas faz-se pouco. Não vejo, até agora, nenhum partido com uma estratégia séria para lidar com o impacto de André Ventura no próximo ciclo eleitoral. Não vejo, à excepção do CDS-PP, uma força política preocupada em defender os três pilares que uma maioria do Partido Socialista inevitavelmente ameaçará: o escrutínio parlamentar, a liberdade de imprensa e a independência da justiça. E não vejo, para ser sincero, grande problema num eventual desaparecimento do PSD como o conhecíamos. O problema está em quem ocupará o seu lugar.
3. Quando li «A Guerra do Peloponeso», dobrei uma das páginas que relata a revolução na Córcira. Nela, Tucídides conta como «aquilo que antes era considerado um impensável ato de agressão passou a ser encarado como a coragem de um militante», como «pensar no futuro passou a ser somente uma forma de cobardia», como «qualquer ideia de moderação não era mais do que uma falta de vigor» e como «entender um problema de diferentes pontos de vista significava ser totalmente inapto para a acção». Escreveu o ateniense que «o entusiasmo fanático era a marca de um verdadeiro homem», que «qualquer um que manifestasse opiniões violentas era de confiança» e que «quem fosse contra essas opiniões tornar-se-ia prontamente suspeito».
«Os líderes partidários de cada cidade apresentavam programas admiráveis – de um lado, pela igualdade para as massas; do outro, por uma governação segura para a aristocracia – mas, enquanto afirmavam defender o interesse público, apenas procuravam prémios para si próprios», diagnosticou Tucídides, apuradamente, há mais de 2450 anos.
Escusado será dizer que a guerra civil na Córcira terminou num banho de sangue entre facções igualmente extremadas, depois igualmente mortas. Sem desejar estabelecer um anacronismo entre o mundo helénico e o regime português, creio que o caminho mais digno para derrotar aqueles que não se importaram de prometer o irrealizável – «um país sem austeridade» – passa por resistir à tentação de cometer erros semelhantes. Há, evidentemente, uma janela eleitoral para candidatos a farsantes. Mas quereremos mesmo abri-la?

COMENTÁRIO
João Paulo Reis: O Sebastião Bugalho continua a ser uma lufada de ar fresco, precisamente por ser um jovem culto que sabe pensar. Os comentadores reaccionários tipicamente ‘esquerdoides’ e que comem à mesa do orçamento, esses não lhe perdoam esquecendo-se das tristes figuras que fazem


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