domingo, 31 de março de 2019

Graça e indiferença na questão do Brexit



Enquanto na Europa nos afligimos, avessos ao Brexit, o texto de João Carlos Espada desvaloriza a questão, referindo a fleuma e a indiferença britânicas perante uma manifestação de rua pró-Brexit, de migrantes contrários à U. E., manifestação com que se vai advertindo, em todo o caso, o estudioso visitante do Churchill Archives, a fim de que este não esbarre com a manifestação em Pall Mall. Tal acontecerá, todavia, mas sem sarilhos de maior, gente ordeira os da rua, os da sua relação, mais requintada, que o atendem, desligados, aparentemente da questão e bebendo Porto. Retrato de um povo calmo e superior, também segundo o parecer dos migrantes, a quem são oferecidos meios de sobrevivência superiores aos que a U E oferece. O povo britânico é, de facto, superior? Uma crónica suavemente maliciosa.
BREXIT           Carta de Inglaterra /Premium
 JOÃO CARLOS ESPADA    OBSERVADOR, 25/3/2019,
Após cinco dias em Inglaterra, não faço ideia de como vai acabar o Brexit. Mas faço votos de que, qualquer que seja o resultado, não estrague as boas maneiras que ainda encontrei por todo o lado.
Para quem faz planos com alguma antecedência, o passado fim-de-semana seria o último antes do ‘Brexit’ (inicialmente previsto para 29 de Março). Em parte por esse motivo, escolhi esta data para uma visita ao Churchill Archives Centre, no Churchill College, Cambridge, para a qual tinha sido convidado em Novembro do ano passado. Escrevo agora, passado este fim-de-semana, e não faço a menor ideia sobre quando terá lugar o ‘Brexit’. Mas foi uma grande experiência, em qualquer caso. Cheguei ao Churchill College na passada quarta-feira à noite. Tudo estava tranquilo e devidamente preparado, como previsto. No “Porter’s Lodge”, a senhora que me deu a chave do quarto e o mapa do colégio, amavelmente acrescentou: “Dizem-me que vai para o Oxford & Cambridge em Pall Mall, Londres, no sábado. Devo aconselhar que viaje cedo porque haverá uma manifestação nessa rua ao meio-dia”. Não fazia ideia de que ia haver uma manifestação no sábado — anti-Brexit, de facto, soube mais tarde, porque a senhora não disse qual era o sinal político da manifestação. Ela apenas me aconselhou a viajar cedo. Nessa mesma noite, quando cheguei ao meu quarto no Churchill College, vi uma mensagem do Oxford & Cambridge Club de Londres avisando sobre essa mesma manifestação e sobre “road closure”. Comecei a pensar que era um assunto sério — e que a minha escolha de fim de semana talvez não tivesse sido a mais sábia.
No dia seguinte, quinta-feira, passei o dia tranquilamente, consultando o Churchill Archive. À noite, jantei na High Table, por amável convite do meu anfitrião, Allen Packwood, o jovem director do Churchill Archives Centre. Observei com prazer que todos usávamos gravata (ou, nalguns casos, laço), ao contrário do que pudera observar durante o dia no Colégio — onde todos, exceptuando os funcionários, pareciam fazer gala em usar trajes andrajosos e barba por fazer. Durante a High-Table, as boas-maneiras britânicas foram observadas. Pude conjecturar que todos os “locals” eram contra o “Brexit”, mas ninguém disse isso claramente. Houve uma ameaça de conversa sobre o tema, mas foi rapidamente suspensa. “Não é apropriado discutir política na High Table”, disse um dos Fellows mais idosos.
No fim do jantar, a caminho da outra sala onde é servido vinho do Porto, o Fellow acima referido aproximou-se de mim cordialmente e disse-me: “Soube que vai no sábado para Londres e para Pall Mall. Desculpe a intromissão, mas sugiro que vá cedo e que não use bow-tie, nem ande com o Telegraph na mão. Eu sou um ‘Remainer’, mas lamento ter de o avisar de que alguns ‘Remainers’ podem ser extremistas e podem ver na sua bow-tie e no Telegraph um sinal Tory”. Agradeci enfaticamente. Ambos, em seguida, apreciámos conjuntamente  excelentes variedades de Porto.
Passei a sexta-feira de novo embrenhado no Churchill Archive. No sábado, pus-me a caminho, de Cambridge para Londres, de acordo com os avisos recebidos: fui de madrugada, e sem bow-tie. O comboio estava de facto bastante cheio, mas foi pontual. E cheguei ao Clube em Pall Mall por volta das 10h da madrugada. Tudo estava tranquilo e fui informado de que poderia andar na rua até ao meio-dia, mas que talvez fosse preferível não andar em Pall Mall depois das 12h, por causa da dita manifestação. Tomei boa nota. Fui às compras em St. James, e engraxei os sapatos numa das inúmeras lojas locais. O jovem engraxador usava um impecável uniforme, com gravata, e com duas bandeiras cruzadas na lapela: da Grã-Bretanha e do Bangladesh. Perguntei-lhe há quanto tempo vivia em Inglaterra. “Doze anos,  sir”, respondeu orgulhosamente. Perguntei-lhe em seguida se sabia de uma manifestação que ia ocorrer em Pall Mall daí a pouco tempo. Com surpresa, ouvi o único discurso político sobre o tema em toda a minha viagem:
“Sim, claro que sei. Vai ser daqui a pouco. É uma manifestação contra o ‘Brexit’ e por um segundo referendo. É uma manifestação das elites europeias contra a democracia britânica. Nós votámos no referendo pela saída da União Europeia. Eles não aceitam a nossa escolha  democrática e querem impor-nos o ‘Remain’”. Bastante estupefacto, perguntei então ao meu interlocutor: “O senhor votou no referendo?” E ele respondeu assertivamente: “Sim, com muito orgulho. Eu sou um cidadão britânico. E todos os que, como eu, vêm dos países de língua inglesa — Bangladesh, Índia, Austrália, Nova Zelândia — todos votámos pelo Brexit. A união Europeia impõe um sistema desleal de imigração no Reino Unido: os que vêm da Europa podem entrar sem demoras, mas nós, vindos da Commonwealth, temos imensos obstáculos” (que ele enumerou sem hesitações, mas de que eu não consegui tomar nota). Preparava-me para continuar a conversa quando olhei para o relógio e reparei que tinha passado as 12h avisadas pelo Clube. Agradeci enfaticamente a apressei-me para Pall Mall.
A manifestação já começara e ocupava toda a rua, em direcção ao Parlamento. Eu ia em sentido contrário aos manifestantes, mas não senti a menor hostilidade (é certo que não usava bow-tie, nem o Telegraph). O grupo, bastante massivo e ininterrupto, pareceu-me simpático e bem disposto, embora não tão jovem como tinha sido anunciado. Os placards que transportavam eram em grande parte de produção caseira e bastante divertidos. O meu preferido dizia: Fromage, not Farage’. Quando cheguei ao Clube, onde a indiferença pela manifestação que passava à porta era total, perguntei se podia almoçar sem gravata. O impecável recepcionista, de gravata, respondeu que sim: de acordo com as novas regras, os sócios podiam não usar gravata até às 18h, aos fins de semana, até às 11h, durante a semana. Perguntei-lhe se ele gostava destas “regras modernas”. E ele respondeu, imperturbável : “I couldn’t possibly comment, sir.”
Resolvi envergar um dos meus Churchillian bow-ties. Pelo sim pelo não, levei para a mesa o suave Financial Times, em vez do Telegraph. Verifiquei que, na mesa em frente da minha, um sócio idoso lia ostensivamente o Telegraph. Pouco depois, na mesa ao lado da minha, sentou-se outro sócio idoso, este de tweed, lendo atentamente um livro de Michael Oakeshott. O grande dilema surgiu a seguir. Quando o empregado trouxe o ‘Stilton & Port”, apresentou-me dois pratos de sobremesa, um de Oxford, outro de Cambridge, e perguntou-me qual preferia. Embaraçado, respondi: “bem, eu estudei em Oxford, mas acabo de chegar de Cambridge”. Após um silêncio, ele respondeu: “ Talvez eu possa sugerir um compromisso, sir. Fica com os dois e usa um pouco de cada um enquanto aprecia o Stilton.” Assim fiz. E o compromisso foi agradável.
COMENTÁRIOS
José Montargil:  Até parece a Inglaterra inventada pelos escritores britânicos do século XX, tipo Agatha Christie e outros do género. Os ingleses que vêm a Portugal passar férias segundo as notícias e o que vemos pelas ruas muitos têm um aspecto péssimo, maneiras zero, bebem até cair, enfim nada do que vem no artigo. Nos campos de futebol ingleses viu-se o que se passava com os hooligans, as alarvidades, etc.... Parece-me que a visão do autor ou é parcial ou então teve muita sorte.
Francisco Ferreira: Aprecio estas crónicas, vividas, bem escritas, de humor marcado.  Pareceu-me estar ler um Blake & Mortimer...  
Pedro Pereira: Prosa engraçada, e uma visão bastante crua dos meios que se rodeia e da bolha em que vive. Um texto muito eficaz para perceber o ponto de partida para as suas crónicas, das quais não me recordo ter alguma vez concordado, mas que leio com o interesse pelo prazer de expor ao contraditório as minhas próprias ideias. Mas de facto, tendo vivido no sul de Inglaterra, do pouco que tenho saudades - incluindo claro os afectos que por lá permanecem - é o civismo britânico, da alegria e profissionalismo no atendimento, e cordialidade nas estradas. Sem igual, em qualquer outro país europeu. Claro está não serão todos e em todo o lado, a pobre qualidade da educação nacionalista virada para o consumismo, a cultura centralizada em Londres, a fraca qualidade dos museus e bibliotecas, fazem-se sentir na periferia de Londres (que é basicamente senão todo o resto de Inglaterra, pelo menos a sul onde viajei durante os dois anos que lá permaneci). E que se fizeram sentir nas urnas de voto para o Brexit. Os ingleses na sua minoria votante (comprovado nas urnas de 17 milhões pro Brexit num universo de 55 milhões de habitantes) não têm cultura ou capacidade intelectual suficiente para perceber o que é a comunidade europeia na sua essência, e o que representa para o desenvolvimento do ser humano. O pensamento é a curto prazo, virado para a capacidade de consumo e satisfação carnal da população embrutecida, suportando o enriquecimento das "elites", e a sua capacidade de beber Porto de gravata. Com o meu parco conhecimento de toda a estrutura económica e cultural do país, no entanto arriscarei o prognóstico, que devido à quantidade de dinheiro amealhado, com todos os serviços construídos, negócios, acordos e contactos produzidos enquanto parte da união europeia, penso que os mais ricos terão possibilidade de subsidiar o modo de vida dos ingleses consumidores, com maior ou menor dificuldade, até conseguirem tornear todos os desafios inerentes a este Brexit. Construirāo uma nova narrativa, e espero eu que tenham muito sucesso. Se eu concordo com este modo de experienciar a realidade? Não. Acho uma completa idiotice e uma falta de pensamento crítico, humanista e cultural, e de uma xenofobia gritante. Mas tal como o civismo, "typically British".

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