Enquanto na Europa nos afligimos,
avessos ao Brexit, o texto de João
Carlos Espada desvaloriza a questão, referindo a fleuma e a
indiferença britânicas perante uma manifestação de rua pró-Brexit, de migrantes
contrários à U. E., manifestação com que se vai advertindo, em todo o caso, o
estudioso visitante do Churchill Archives, a fim de que este não esbarre com a
manifestação em Pall Mall. Tal acontecerá, todavia, mas sem sarilhos de maior,
gente ordeira os da rua, os da sua relação, mais requintada, que o atendem,
desligados, aparentemente da questão e bebendo Porto. Retrato de um povo calmo
e superior, também segundo o parecer dos migrantes, a quem são oferecidos meios
de sobrevivência superiores aos que a U E oferece. O povo britânico é, de
facto, superior? Uma crónica suavemente maliciosa.
BREXIT Carta de Inglaterra /Premium
Após cinco dias em Inglaterra, não
faço ideia de como vai acabar o Brexit. Mas faço votos de que, qualquer que
seja o resultado, não estrague as boas maneiras que ainda encontrei por todo o
lado.
Para
quem faz planos com alguma antecedência, o passado fim-de-semana seria o último
antes do ‘Brexit’ (inicialmente previsto para 29 de Março). Em parte por esse
motivo, escolhi esta data para uma visita ao Churchill Archives Centre, no
Churchill College, Cambridge, para a qual tinha sido convidado em Novembro
do ano passado. Escrevo agora, passado este fim-de-semana, e não faço a menor
ideia sobre quando terá lugar o ‘Brexit’. Mas foi uma grande experiência, em
qualquer caso. Cheguei ao Churchill College na passada quarta-feira à
noite. Tudo estava tranquilo e devidamente preparado, como previsto. No
“Porter’s Lodge”, a senhora que me deu a chave do quarto e o mapa do colégio,
amavelmente acrescentou: “Dizem-me que vai para o Oxford & Cambridge
em Pall Mall, Londres, no sábado. Devo aconselhar que viaje cedo porque haverá
uma manifestação nessa rua ao meio-dia”. Não fazia ideia de que ia haver uma
manifestação no sábado — anti-Brexit, de facto, soube mais tarde, porque a
senhora não disse qual era o sinal político da manifestação. Ela apenas me
aconselhou a viajar cedo. Nessa mesma noite, quando cheguei ao meu
quarto no Churchill College, vi uma mensagem do Oxford & Cambridge Club
de Londres avisando sobre essa mesma manifestação e sobre “road closure”.
Comecei a pensar que era um assunto sério — e que a minha escolha de fim de
semana talvez não tivesse sido a mais sábia.
No
dia seguinte, quinta-feira, passei o dia tranquilamente, consultando o
Churchill Archive. À noite, jantei na High Table, por amável convite do meu
anfitrião, Allen Packwood, o jovem director do Churchill Archives Centre. Observei
com prazer que todos usávamos gravata (ou, nalguns casos, laço), ao contrário
do que pudera observar durante o dia no Colégio — onde todos, exceptuando os
funcionários, pareciam fazer gala em usar trajes andrajosos e barba por fazer.
Durante a High-Table, as boas-maneiras britânicas foram observadas. Pude
conjecturar que todos os “locals” eram contra o “Brexit”, mas ninguém disse
isso claramente. Houve uma ameaça de conversa sobre o tema, mas foi rapidamente
suspensa. “Não é apropriado discutir política na High Table”, disse um
dos Fellows mais idosos.
No
fim do jantar, a caminho da outra sala onde é servido vinho do Porto,
o Fellow acima referido aproximou-se de mim cordialmente e disse-me: “Soube
que vai no sábado para Londres e para Pall Mall. Desculpe a intromissão, mas
sugiro que vá cedo e que não use bow-tie, nem ande com
o Telegraph na mão. Eu sou um ‘Remainer’, mas lamento ter de o avisar
de que alguns ‘Remainers’ podem ser extremistas e podem ver na
sua bow-tie e no Telegraph um sinal Tory”. Agradeci
enfaticamente. Ambos, em seguida, apreciámos conjuntamente excelentes
variedades de Porto.
Passei
a sexta-feira de novo embrenhado no Churchill Archive. No sábado, pus-me
a caminho, de Cambridge para Londres, de acordo com os avisos recebidos: fui
de madrugada, e sem bow-tie. O comboio estava de facto bastante cheio,
mas foi pontual. E cheguei ao Clube em Pall Mall por volta das 10h da
madrugada. Tudo estava tranquilo e fui informado de que poderia andar na
rua até ao meio-dia, mas que talvez fosse preferível não andar em Pall Mall
depois das 12h, por causa da dita manifestação. Tomei boa nota. Fui às
compras em St. James, e engraxei os sapatos numa das inúmeras lojas locais. O
jovem engraxador usava um impecável uniforme, com gravata, e com duas bandeiras
cruzadas na lapela: da Grã-Bretanha e do Bangladesh. Perguntei-lhe há quanto
tempo vivia em Inglaterra. “Doze anos, sir”, respondeu orgulhosamente.
Perguntei-lhe em seguida se sabia de uma manifestação que ia ocorrer em Pall
Mall daí a pouco tempo. Com surpresa, ouvi o único discurso político sobre o
tema em toda a minha viagem:
“Sim,
claro que sei. Vai ser daqui a pouco. É uma manifestação contra o ‘Brexit’ e
por um segundo referendo. É uma manifestação das elites europeias contra a
democracia britânica. Nós votámos no referendo pela saída da União Europeia.
Eles não aceitam a nossa escolha democrática e querem impor-nos o
‘Remain’”. Bastante estupefacto, perguntei então ao meu interlocutor: “O
senhor votou no referendo?” E ele respondeu assertivamente: “Sim, com muito
orgulho. Eu sou um cidadão britânico. E todos os que, como eu, vêm dos países
de língua inglesa — Bangladesh, Índia, Austrália, Nova Zelândia — todos votámos
pelo Brexit. A união Europeia impõe um sistema desleal de imigração no Reino
Unido: os que vêm da Europa podem entrar sem demoras, mas nós, vindos
da Commonwealth, temos imensos obstáculos” (que ele enumerou sem
hesitações, mas de que eu não consegui tomar nota). Preparava-me para continuar
a conversa quando olhei para o relógio e reparei que tinha passado as 12h
avisadas pelo Clube. Agradeci enfaticamente a apressei-me para Pall Mall.
A
manifestação já começara e ocupava toda a rua, em direcção ao Parlamento. Eu ia
em sentido contrário
aos manifestantes, mas não senti a menor hostilidade (é certo que não
usava bow-tie, nem o Telegraph). O grupo, bastante massivo e
ininterrupto, pareceu-me simpático e bem disposto, embora não tão jovem como
tinha sido anunciado. Os placards que transportavam eram em grande parte de
produção caseira e bastante divertidos. O meu preferido dizia: ‘Fromage,
not Farage’. Quando cheguei ao Clube, onde a indiferença pela manifestação que
passava à porta era total, perguntei se podia almoçar sem gravata. O impecável
recepcionista, de gravata, respondeu que sim: de acordo com as novas regras,
os sócios podiam não usar gravata até às 18h, aos fins de semana, até às 11h,
durante a semana. Perguntei-lhe se ele gostava destas “regras modernas”. E ele
respondeu, imperturbável : “I couldn’t possibly comment, sir.”
Resolvi
envergar um dos meus Churchillian bow-ties. Pelo sim pelo não, levei para
a mesa o suave Financial Times, em vez do Telegraph. Verifiquei que,
na mesa em frente da minha, um sócio idoso lia ostensivamente
o Telegraph. Pouco depois, na mesa ao lado da minha, sentou-se outro
sócio idoso, este de tweed, lendo atentamente um livro de Michael
Oakeshott. O grande
dilema surgiu a seguir. Quando o empregado trouxe o ‘Stilton & Port”,
apresentou-me dois pratos de sobremesa, um de Oxford, outro de Cambridge, e
perguntou-me qual preferia. Embaraçado, respondi: “bem, eu estudei em Oxford,
mas acabo de chegar de Cambridge”. Após um silêncio, ele respondeu: “ Talvez eu
possa sugerir um compromisso, sir. Fica com os dois e usa um pouco de cada
um enquanto aprecia o Stilton.” Assim fiz. E o compromisso foi agradável.
COMENTÁRIOS
José Montargil: Até parece a
Inglaterra inventada pelos escritores britânicos do século XX, tipo Agatha
Christie e outros do género. Os ingleses que vêm a Portugal passar férias
segundo as notícias e o que vemos pelas ruas muitos têm um aspecto péssimo,
maneiras zero, bebem até cair, enfim nada do que vem no artigo. Nos campos de
futebol ingleses viu-se o que se passava com os hooligans, as alarvidades,
etc.... Parece-me que a visão do autor ou é parcial ou então teve muita sorte.
Francisco Ferreira: Aprecio estas crónicas, vividas, bem escritas, de humor
marcado. Pareceu-me estar ler um Blake & Mortimer...
Pedro Pereira: Prosa
engraçada, e uma visão bastante crua dos meios que se rodeia e da bolha em que
vive. Um texto muito eficaz para perceber o ponto de partida para as suas
crónicas, das quais não me recordo ter alguma vez concordado, mas que leio com
o interesse pelo prazer de expor ao contraditório as minhas próprias ideias. Mas
de facto, tendo vivido no sul de Inglaterra, do pouco que tenho saudades -
incluindo claro os afectos que por lá permanecem - é o civismo britânico, da
alegria e profissionalismo no atendimento, e cordialidade nas estradas. Sem
igual, em qualquer outro país europeu. Claro está não serão todos e em
todo o lado, a pobre qualidade da educação nacionalista virada para o
consumismo, a cultura centralizada em Londres, a fraca qualidade dos museus e
bibliotecas, fazem-se sentir na periferia de Londres (que é basicamente senão
todo o resto de Inglaterra, pelo menos a sul onde viajei durante os dois anos
que lá permaneci). E que se fizeram sentir nas urnas de voto para o Brexit. Os
ingleses na sua minoria votante (comprovado nas urnas de 17 milhões pro Brexit
num universo de 55 milhões de habitantes) não têm cultura ou capacidade intelectual
suficiente para perceber o que é a comunidade europeia na sua essência, e o que
representa para o desenvolvimento do ser humano. O pensamento é a curto
prazo, virado para a capacidade de consumo e satisfação carnal da população
embrutecida, suportando o enriquecimento das "elites", e a sua
capacidade de beber Porto de gravata. Com o meu parco conhecimento de toda a
estrutura económica e cultural do país, no entanto arriscarei o prognóstico,
que devido à quantidade de dinheiro amealhado, com todos os serviços
construídos, negócios, acordos e contactos produzidos enquanto parte da união
europeia, penso que os mais ricos terão possibilidade de subsidiar o modo de
vida dos ingleses consumidores, com maior ou menor dificuldade, até conseguirem
tornear todos os desafios inerentes a este Brexit. Construirāo uma nova
narrativa, e espero eu que tenham muito sucesso. Se eu concordo com este
modo de experienciar a realidade? Não. Acho uma completa idiotice e uma falta
de pensamento crítico, humanista e cultural, e de uma xenofobia
gritante. Mas tal como o civismo, "typically British".
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