quarta-feira, 20 de março de 2019

Como uma hidra


Como uma hidra
Boatos sempre houve, prova-o o texto de José Manuel Fernandes que se aventura pela história grega e dois dos seus 179 comentadores, que, em parte, o confirmam. Só que hoje as fake news têm uma gravidade que lhes advém da rapidez tecnológica que com elas estende os seus tentáculos, como monstruosa hidra, neste mundo onde a política se impõe.
o que se esconde por trás do combate às “fake news” /premium
JOSÉ MANUEL FERNANDES     OBSERVADOR 7/3/2019
Não confiem, desconfiem. A campanha contra as “fake news” não é contra a desinformação, porque nessa os políticos são especialistas. É uma campanha para impor uma narrativa única e um pensamento único
Quando ouço políticos a falar de “fake news” – a designação modernaça para desinformação – fico alerta. Quando vejo políticos a anunciarem medidas para combaterem as “fake news” passo a estar inquieto. Sei que o passo seguinte será uma qualquer forma de censura ou de controlo da liberdade de informação e expressão. É fácil perceber as razões da minha desconfiança: a política sempre se fez com alguma dose de desinformação. A missão do jornalismo sempre foi combater essa desinformação. Aquilo que os políticos nunca gostaram que acontecesse foi serem apanhados a “desinformar”, quando não a mentir descaradamente. Por isso mesmo sempre foi tensa a relação entre os poderes públicos e a imprensa – por isso mesmo só posso temer que estejamos perante mais uma – há sempre mais uma – tentativa de estender o longo braço do Estado para que a sua mão chegue aonde não é chamada, ao interior das redacções.
Esta quarta-feira, em Lisboa, o nosso Parlamento votou uma resolução do PS sobre “fake news”, tendo o debate sido marcado pelo delicioso detalhe de o proponente da resolução ter ele próprio produzido uma declaração falsa. No mesmo dia, para não desequilibrar, o PSD promovia em Bruxelas, no Parlamento Europeu, um seminário sobre o mesmo tema. Os nossos políticos estão muito inquietos com o que consideram ser o “fenómeno de intoxicação da opinião pública” à escala global.
Tão inquietos que a União Europeia criou mesmo uma unidade de missão depois de ter aprovado um Plano de Acção da União Europeia contra a desinformação, um documento curioso pois distingue mentiras legítimas – as que forem difundidas pelos partidos políticos, por exemplo – das ilegítimas, como se pode verificar lendo a definição de desinformação inscrita nesse documento.
https://s3.observador.pt/wp-content/uploads/2019/03/07142959/captura-de-ecracc83-2019-03-06-as-19-38-011.jpgO documento da União Europeia, que ainda não foi traduzido para português, excluiu as notícias e comentários partidários das chamadas “fake news”.
Admito que alguns leitores tenham ficado tão de boca aberta como eu próprio, pois não imaginava que a desfaçatez chegasse a este detalhe. Mas chegou. O que é revelador: o que realmente preocupa os nossos poderes públicos não é a desinformação, porque desinformação e “fake news” sempre houve e haverá – o que os inquieta é tudo o que contrarie a narrativa dominante. Incluindo tudo o que contrarie a narrativa dominante nos media tradicionais.
É preciso pois ter a cabeça fria e saber distinguir o que, no novo mundo das redes sociais, são ameaças reais à democracia daquilo que são apenas ameaças a certos poderes instalados. E perceber o que pode realmente estar em causa. Mas vamos por pontos.
As “fake news” são mesmo um perigo? A desinformação foi sempre perigosa. Se lermos o que Tucídides escreveu sobre a guerra do Peloponeso, que ocorreu há 25 séculos, temos uma noção do mal que um demagogo sem receio de “desinformar” (Alcibíades) pode causar a uma democracia, conduzindo-a a uma desastrosa aventura militar. E se quisermos ter uma ideia da dimensão a que pode chegar uma catástrofe alimentada uma invenção – por aquilo a que hoje chamaríamos uma “elaborada teoria da conspiração” – bastará recordarmo-nos do papel que tiveram “Os Protocolos dos Sábios de Sião” no crescimento do anti-semitismo que culminaria no Holocausto.
Não me venham pois com a novidade das “fake news”, pois elas são, repito, apenas um nome moderno para um fenómeno antigo. O que é novo foi o que foi sendo novo em vários momentos da história: um novo meio de comunicação de massas. O aparecimento da imprensa de Gutenberg assustou os poderes da época, brincadeiras na rádio (como a famosa simulação de “A Guerra dos Mundos” por Orson Welles) terão lançado o pânico e muitos viram na televisão o instrumento demoníaco que destruiria as democracias. Agora, no tempo da internet, o papel do vilão é desempenhado pelas redes sociais, sem perceber, ou sem querer perceber, que estas apenas potenciam uma realidade que lhe é anterior: a fragmentação do espaço público e a delapidação da autoridade dos media tradicionais. Mas é aí que está realmente o problema, e o perigo.
Trump, o Brexit e os populismos são filhos das “fake news”? Um dos problemas da fragmentação do espaço público é que se criam “bolhas” que não comunicam entre si e acabam por, vivendo no mesmo país, por vezes na mesma cidade ou até no mesmo bairro, habitarem realidades paralelas. Em 2016, entre a votação do Brexit e a eleição de Trump, entrevistei o historiador de Oxford Timothy Garton-Ash que tinha feito campanha pelo “remain” e na altura ele disse-me uma coisa que nunca esquecerei: “Eu vi como os ingleses votaram no Brexit. Por isso, não se iludam: Trump pode ganhar”. E dissera-me isso porque fizera campanha nas zonas pobres de Oxford e ouvira os argumentos dos eleitores. Depois eu próprio fui aos Estados Unidos e decidi ir às zonas desindustrializadas, voltando de lá com a percepção que Trump podia mesmo ganhar, como ganhou.
Há contudo quem recuse sair das suas confortáveis bolhas e não entenda porque é que há tanta gente a votar de forma diferente – e inesperada. Ainda esta semana houve quem condenasse as “percepções” que, na sua opinião, contaminariam a realidade sem perceber que a realidade de quem vive confortavelmente num bairro da classe média alta não é a mesma de quem vive num subúrbio escalavrado. São esses os que continuam cegos às realidades que historiador de Oxford descobriu apenas olhando para as traseiras da sua própria cidade, mas que uma boa parte das nossas elites insiste em não ver. Só entende a “sua” realidade e facilmente olha para o resto como fruto de “fake news”. Um banho de humildade faz-lhe muita falta.
Mas então as redes sociais não acentuam o efeito de “bolha”? Acentuam. As redes sociais conduzem-me às notícias que eu costumo ler, fazer scroll no feed do Facebbok não é como folhear um jornal ou ouvir um serviço de notícias pois não me abre uma janela com tanta diversidade sobre o que se passa no mundo à minha volta. A probabilidade de só encontrar as notícias de que goste é maior, a variedade é menor, mais facilmente me junto em grupos que pensam como eu e me “desamigo” daqueles que discordam. Tudo isso é verdade.
Mas quando estudamos mais em detalhe como se deu esta fragmentação do espaço público verificamos que ela começou nos órgãos de informação tradicionais, que ela também foi consequência de uma radicalização do discurso político e da multiplicação de forças políticas radicalizadas. O chamado “centro político” começou a implodir antes do Facebook e do WhatsApp e os seus responsáveis talvez devessem começar a olhar para o que não fizeram – isto é, para onde falharam quando perderam o contacto com franjas crescentes do seu eleitorado.
E não há o risco de interferência de potências estrangeiras, nomeadamente da Rússia? Claro que há. Bem-vindos ao clube. De novo a desinformação sempre foi uma arma das potências. Séculos e séculos a fio. Já se esqueceram da Guerra Fria? Querem recuar um pouco mais? Sejamos sérios: a necessidade que todos os estados têm de se defender dos seus inimigos externos (não tenhamos medo de usar as palavras) deve levá-los a usar os meios correspondentes, designadamente no que refere à partilha de informações e aos serviços de espionagem. Mas daí a criar, como propôs Emmanuel Macron, “uma agência europeia de protecção das democracias que providenciará peritos europeus para cada Estado membro para proteger o seu processo eleitoral contra os ciberataques e as manipulações”, vai um passo enorme, pois passamos a estar no limiar da limitação da liberdade dos cidadãos de cada Estado escolherem os seus representantes, pois estamos muito perto de uma agência de fiscalização de processos eleitorais. Eu sei que na “bolha” de Bruxelas e de certas capitais europeias não se compreende que se possa ser eurocéptico pois na “realidade” em que vivem a União Europeia só tem vantagens, mas numa sociedade pluralista mesmo dessa “realidade” podem existir leituras diferentes. É por tudo isso que digo que o perigo destas campanhas selectivas contra a “desinformação” é serem, precisamente, campanhas em defesa de uma determinada narrativa, isto é, campanhas em nome de uma e só uma leitura da realidade.
Dir-me-ão: exagero. Respondo com a minha experiência: não confio nestes arautos da “verdade”. Não consigo levar a sério quem se recusa a discutir as campanhas sujas do o Miguel Abrantes do Câmara Corporativa. Não consigo esquecer que o grande arauto do combate às “fake news” na agência de notícias do Estado (de que agora é presidente) é o mesmo jornalista que inventou o famoso “especialista das Nações Unidas” Artur Baptista da Silva, o louvou no Expresso e o entrevistou na SIC.
Por outras palavras: tenho o calo de muitos anos de profissão e desconfio instintivamente de “vigilantes”, sejam eles quais forem, mesmo vindos com as melhores intenções do mundo. E, depois, há coisas bem mais importantes do que o combate às “fake news” onde gastar o dinheiro dos nossos impostos.
COMENTÁRIOS:
J.C. Maya:
Excelente artigo. É muito preocupante o caminho que estão a tentar levar os média para a informação controlada.  Quando às fake news (desinformação) este governo socialista, comunista/fascista e bloquista, é useiro vezeiro em utilizá-la. Vejam-se todas as declarações sobre os investimentos em obras públicas a pouco mais de 9 meses das eleições. É o novo aeroporto no Montijo, sem haver ainda um estudo de impacto ambiental, é o novo mas já velha promessa da construção do hospital para substituir os contentores onde são tratadas crianças com doenças cancerígenas no Porto, é a criação de novos passes de transporte que iria ter inicio em 1 de Abril mas que por agora, ainda não conseguiram por em funcionamento em tempo e por conseguinte talvez não seja possível cumprir prazos, é o logro da negociação com os professores por causa das carreiras, apesar de eu não concordar que se reponha o tempo exigido, é a ilusão que se está a criar nos portuguese que, agora, tudo está bem, etc. etc. etc.  
Pedro Pereira: Compreendo o seu texto, e está bastante bem fundamentado, embora com os limites que a quantidade de informação de que dispõe para fazer um curto texto opinativo, para poder ilustrar o seu ponto de vista parcial em relação ao formato de fake news que pensa necessários para que o tipo de sociedade que pretende continue a existir. E não há mal nenhum nisso, tem a sua própria agenda e valores pelos quais combate, e isso é a meu ver, positivo. No entanto não posso desvalorizar as resoluções dos parlamentos europeu e português, como o comentarista faz neste artigo somente porque as "fake news" sempre existiram. Neste momento temos novos desafios, novas realidades, novas ferramentas que necessitam de serem debatidas e pensadas de modo a actuar conforme nós como sociedade pretendemos evoluir. Não conheço a sua vida ao detalhe, e toda a sua experiência, mas conhecendo a sua carreira, sei que terá uma vida de privilégio: não só financeiramente (por uma boa carreira, penso que merecida pelo esforço) mas também no seu círculo de  conhecimentos e contactos, que julgo ser de pessoas com educação a bom nível, e acesso a bens e cultura que nem todos terão. Convenhamos: uma bolha de influência que não lhe permite o acesso directo aos que não pertencem à "elite". Mais uma vez não o julgo por tal, apenas constato este facto e percebo o porquê da falácia do seu pensamento. Não vivendo com a "plebe" e não sentindo as dores inerentes à falta de acesso a todos os bens de consumo e "experiências" que são tidos como um fim-em-si-próprio, e a falta de uma educação sobre o pensamento crítico (educação pensada por elites também elas limitadas pela mesma falta de educação virada para o pensamento crítico) não consegue entender a falta que faz educar a população para um entendimento dos media, e a falta que faz um programa de educação que incite ao pensamento crítico ao invés de uma prostração à autoridade. Como neste momento sabemos que é impossível educar todas as gerações de votantes para a compreensão de textos, para investigar fontes, para analisar mais profundamente todas as notícias e as formas como são passadas (infelizmente vejo canais a espremer horas de notícias que não têm mais de 2 minutos de interesse por sensacionalismo, para obter minutos preciosos de Share que se traduzem em valor acrescentado em publicidade), e sabendo de antemão que a fórmula utilizada pelas redes sociais é uma fórmula indigna de promoção a um maior tempo de visita das mesmas redes, e que essa fórmula está a permitir que pessoas sem conhecimento, sem capacidade de entendimento de textos, sem defesa para as "fake news", sigam "trends" (desculpem esqueci momentaneamente a palavra portuguesa para o mesmo significado) que permitem o retrocesso de uma sociedade que se quer livre e igualitáriaTendo como pináculo a eleição de um homem de um ignorante como o Trump, como o Bolsonaro (epa o homem acabou de postar um filme porno no seu twiter, e questionar a audiência sobre o que é um golden shower.. não me venham com tretas de ele ter mais de 2 neurónios) e um brexit inacreditável (que penso vai ficar em águas de bacalhau ad aeternum, seguindo o que está a ser feito com o acordo de paz entre a Rússia e o Japão por assinar há quase 100 anos.)  Sabendo então que a educação instantânea de tantos seres votantes é impossível, têm de ser criados limites às redes sociais. Limites esses que já são amplamente conhecidos, e que empresas como o Facebook tentam maquilhar com centros de pseudo filtros de notícias falsas (como poderão ter conhecimento seguindo algumas reportagens feitas a vários centros, irão ter a noção de que se trata apenas de publicidade enganosa, na realidade nada está a ser feito, apenas apagam mamas e cus, enquanto formatam o utilizador mundial para uma moral  norte americana), os representantes dos cidadãos, que têm como responsabilidades a defesa dos valores europeus para os quais foram conduzidos ao cargo que ocupam, de legislar fortemente os media, de criar centros de média regionais por via de subsídios directos, de modo a que as notícias sejam o mais isentas de panfletarismo político, e de discurso de ódio possível. Ao mesmo tempo que tem de ser reformulado o sistema educacional para um entendimento do pensamento. Atenção, que o discurso que está a ganhar voz é claramente uma aversão aos valores humanistas europeus, e se for a vossa onda, dos valores cristãos, tão bem denunciados pelo Papa, não sou religioso mas há que dar valor onde existe compaixão: xenofobia, nacionalismo, ódio por quem não faz sexo no mesmo ritmo, (etc..) não têm lugar na filosofia cristã (isto já para quem couber o chapéu hipócrita).

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