domingo, 3 de março de 2019

Daguerreótipos



Textos que advertem contra erros de governação, atidos ao provérbio da nossa insistência correctora “Água mole em pedra dura…”, que não resulta, finórios que somos, à falta dos tais princípios de exigência, responsabilidade e retribuição correspondente, desde sempre retirados dos nossos parâmetros educacionais. A primeira crónica, de João Miguel Tavares, é apoiada por comentadores experientes. A segunda, de Pedro Barros Ferreira, é um retrato assustado, com razões de crédito, sobre um Bloco agressivo e ambicioso de participar na família de que trata a primeira crónica. Como é mais recente, ou porque são justas as críticas, ainda não recebeu comentários, nem dos indignados defensores desse partido, geralmente de impaciência desbocada, a comprovar a tal falta de princípios educacionais, que nos persegue.
OPINIÃO
O país dos filhinhos do papá existe mesmo – e é feio
Em Portugal, são demasiados casos, demasiados exemplos, demasiados filhos, demasiados amigos, para que tantos “filhos de” e “filhas de” sejam os mais competentes do país em tantos lugares distintos.
JOÃO MIGUEL TAVARES, Jornalista,     OBSERVADOR, 26 de Fevereiro de 2019
As inúmeras reacções a desculpar o problema dos cruzamentos familiares no actual governo, inclusivamente por parte de pessoas que tenho por sérias e inteligentes, demonstram bem o caminho que este país ainda tem de trilhar para adquirir uma cultura cívica minimamente decente. A ingenuidade (para utilizar uma palavra simpática) com que o argumento da competência foi invocado para justificar as opções de António Costa – a saber: não interessa se são filhos, pais, irmãos, maridos ou mulheres, o que interessa é se são competentes ou não – deixa-me absolutamente estupefacto, porque é demasiado básico, vulgar e terceiro-mundista. O problema não está, nem nunca esteve, na competência das pessoas envolvidas. Está, como sempre esteve, na sua proximidade.
Quem reflecte sobre relações e hierarquias sociais já compreendeu, há milénios, que a proximidade familiar pode atrapalhar a tomada das melhores decisões, devido a interesses secundários que se intrometem. Não é por acaso que as sociedades mais desenvolvidas do planeta são aquelas em que as instituições melhor resistem às tentações endogâmicas. O conceito de conflito de interesses não depende da inteligência, da competência ou da seriedade dos envolvidos – ele precede tudo isso. E precede-o não só para evitar que relações íntimas se cruzem com as decisões políticas, mas também porque a nomeação de amigos ou familiares para cargos poderosos e de difícil acesso transmite uma péssima imagem para uma sociedade que se quer meritocrática. O que diz é isto: não basta seres bom; precisas ser bem. 
Não deveria ser necessário migrar da província para a capital, ou viver fora de grandes centros urbanos, para perceber o quanto a sociedade portuguesa é sufocada por uma pequena elite que se vai perpetuando nos lugares mais elevados de poder, e que à boa maneira aristocrática consegue que os privilégios passem de pais para filhos ou circulem entre grupos de amigos próximos. A promoção dos “filhos de”, como muito bem sabe quem lá anda, é constante nas faculdades de Medicina, nos hospitais, nas faculdades de Direito, nos escritórios de advogados. Ainda há poucos dias foi noticiado que o PS propôs para o Tribunal Constitucional a jurista Mariana Canotilho. Filha de quem? Do professor José Gomes Canotilho, claro está.
Isso não significa, como é óbvio, que Mariana Canotilho não possa ser extremamente competente como juíza. Tal como Maria na Vieira da Silva poderá certamente vir a revelar-se muito competente como ministra. Só que, em Portugal, são demasiados casos, demasiados exemplos, demasiados filhos, demasiados amigos, para que tantos “filhos de” e “filhas de” sejam os mais competentes do país em tantos lugares distintos. Tamanha excelência geneticamente concentrada não só é coisa estatisticamente improvável, por melhores que sejam os papás e a educação que deram aos seus meninos, como, ainda que fossem, de facto, as pessoas mais competentes de Portugal, o problema que acima assinalei persistiria: o miúdo nascido numa família modesta do Alandroal iria sempre sentir que o seu elevador iria ficar encravado nos andares mais altos do país, por falta de lubrificação social. E com razão.
O que acabo de dizer deveria ser perfeitamente pacífico e consensual. Os problemas da endogamia portuguesa estão detectados há muito, e há vasta literatura sobre o tema. Se já nem isto causa um genuíno sobressalto cívico, então o país ainda está mais sonâmbulo do que eu pensava.
COMENTÁRIOS
Joaquim Sá, Braga 27.02.2019: "a sociedade portuguesa é sufocada por uma pequena elite que se vai perpetuando nos lugares mais elevados de poder": Tem toda a razão. Isso somado aos "amigos de", "ao pessoal de confiança de" dá uma mesquinha elite cuja competência desce à medida que aumenta o amiguismo e o familiairismo. O que não vê quem argumenta com a justificação da competência é que um recente estudo em variadas empresas do Estado demonstra que ser eficiente, diligente, cumpridor...etc, conta ZERO para na política de promoção na carreira. Andei 22 anos pela universidade e vos garanto que não são os melhores que chegam a catedráticos, são os mais "adaptados" ao sistema de poder instalado. Os diagnósticos estão feitos, mas nada muda, porque quem tem o poder de mudar é quem mais perde. Somos uma equação sem solução.
albergaselizete, 27.02.2019 : Como é que formando o estado os nossos médicos, a política os afastou, para organizações privadas e detidas por pessoas conhecidas? Estes mesmos médicos são contractados a estas "empresas", pelo SNS, a preços 3 ou 4 vezes superiores, onerando os custos com os salários em 300 milhões de euros, em 2017. Quem ganhou e ganha com este negócio e quem perde? Parece que quem criou estas empresas e "aluga" os médicos ao SNS, é um "felizardo" e tem uma renda garantida. É apenas mais uma renda, depois existem outras, cujos "criadores" destes "empreendimentos" e empregadores, também conhecidos, coexistem noutra dimensão, onde são alocados biliões de euros. Outra dimensão, mas paralela e comulativa.
Americo Silva, 27.02.2019 : Não passa um dia em que eu não assista a algo do género nos ambientes trabalho, cidadania ou familiar! É a nossa cruz! O problema é que são todos demasiadamente preguiçosos para mudar, pois o trabalho faz calos é duro e ninguém está para isso...
Nós não queremos saber "puto" dessa história da endogamia! O que nós queremos é uma fatia do bolo; seja a pessoa que trabalha na construção civil, seja a pessoa que trabalha na presidência da república! O que todos nós esperamos de cada dia é ter a oportunidade de conhecer alguém com posição de relevância, travar conhecimento e, depois oferecer uma prenda em troca do favor que sabemos vir a precisar no futuro! Isto somos nós Portugal e os Portugueses, e vivemos perfeitamente bem com isso. Aliás quando esse elo é rompido, surge um problema de confiança! No final somos uns idiotas que nos queixamos da trapalhada em que vivemos, depois de a termos feito, para depois a continuarmos a fazer!
Em primeiro lugar, se as filhas, os filhos, as amigas, os amigos, etc. fossem realmente pessoas tremendamente competentes, há muito, repito há muito que o nosso país mostrava uma saúde financeira invejável e, também que a corrupção não existia! Mas, pasme-se o temos é exactamente o oposto! Um problema económico financeiro gravíssimo sem solução e que ninguém resolve, ao que acresce a permanente e diária descoberta de casos de corrupção! Ora isto só acontece porque efectivamente somos todos, repito somos todos incompetentes e cultivamos a endogamia!”

II - BLOCO DE ESQUERDA: Les uns et les autres
OBSERVADOR, 3/3/2019
Os partidos da direita democrática devem ater-se no que importa e não em discursos patetas que levam ao afastamento das mulheres que tenham um pingo de inteligência, ou dos ateus, ou dos homossexuais.
É conhecida a expressão “os extremos tocam-se”. De forma a ver se tal preposição continua verdadeira, fui ler – não sem sacrifício – as opções políticas do português Bloco de Esquerda, assim como as do denominado “protofascista” Viktor Orbán da Hungria.
Assim, e para começo de conversa, lemos na Declaração de princípios – “Começar de novo” – (o manifesto político de lançamento do Bloco) um ataque à globalização, nos parágrafos – “Globalização uma civilização da injustiça”, “A globalização contra o desenvolvimento”, “A globalização contra a cidadania”. Como é bom de ver pelos títulos (e poupo o leitor ao arrazoado) o Bloco está contra o movimento que – comprovadamente – retirou da pobreza extrema, centenas de milhões de seres humanos em todo o Mundo. Fez uns mais ricos? Claro que sim, mas o problema não é existirem ricos, é o de existirem pobres.
Quem perora contra a globalização? Assim que me lembre, o Orbán da Hungria e o Presidente Trump. É verdade, esses dois alvos da retórica “bloquiana” defendem o mesmo.
Duas das primeiras medidas de Orbán foram a abolição das propinas universitárias e a universalização dos benefícios à maternidade. O Bloco apoia, julgo.
Na última Moção vencedora, “A força da esperança”, o Bloco afirma que as forças reaccionárias da União Europeia tentam travar o Brexit. Ora, não é o Brexit uma “conquista” das forças reaccionárias britânicas? Mau! Fico confuso.
Quem também carrega forte na UE? O Orbán, pois claro. According to Politico, Orbán political philosophy “echoes the resentments of what were once the peasant and working classes” by promoting an “uncompromising defense of national sovereignty and a transparent distrust of Europe’s ruling establishments”.[71]
Mas onde já li algo parecido? “Construída sempre à revelia dos povos e sem os povos, esta União Europeia seria sempre um projecto contra os povos. Hoje, sendo um projecto condenado pela espiral do desemprego e pela imposição, a União Europeia é uma máquina de guerra contra as pessoas e os direitos sociais. A esperança popular está na luta pelo emprego e pela soberania democrática em cada país e pela emancipação social.” Bloco dixit.
Este exercício, para quem tiver paciência, pode ser repetido em inúmeras matérias. Onde diverge? Nos famosos direitos LGBTQIKHSDFR… Aí sim, são diferentes. Já deve faltar pouco tempo para, em Portugal, o Bloco adoptar a ideia francesa de alterar as fichas dos alunos para que contenham Progenitor 1 e 2, em vez de Pai e Mãe. Acredito aliás, que o Bloco irá mais longe e irá propor o 1, o 1,5 e o 2.
O Bloco de Esquerda nasceu de uma pantominice e continua alegremente no mesmo estilo, tendo este Partido Socialista saído (terá?) do tempo “fantasmagórico” de Sócrates dado a mão, que ele – o Bloco – precisava como de pão para a boca. Por essa razão, os portugueses são obrigados a aturar pessoas intelectualmente desonestas que não dizem verdadeiramente ao que vêm. Pessoas sem qualquer capacidade profissional e/ou académica e que, pasme-se, acham que devem chegar ao Governo da Nação. Pessoas que desvalorizam e relativizam o terrorismo do fundamentalismo islâmico, porque – coitadinhos dos bombistas – são vítimas da globalização. “Só combatendo as discriminações e investindo a sério na coesão social e no diálogo intercultural poderemos conter as forças de que se alimenta a escalada do terror.” (retirado da referida Moção). É, aliás, sintomático desta visão, a classificação – por parte do Bloco – de Israel como sendo uma ditadura. “Deve terminar a venda de armas aos regimes turco, saudita e israelita e a todas as ditaduras.” Podem jogar com as palavras, mas a intenção está lá. Esquecem, no entanto, que Israel é a única verdadeira democracia na região, com eleições livres e onde vigora um Estado de Direito. Sabem quem não gosta de Israel? O Orbán é claro.
Quanto ao modelo de sociedade;
“(..) Orbán repudiated the classical liberal theory of the state as a free association of atomistic individuals, arguing for the use of the state as the means of organizing, invigorating, or even constructing the national community.(..) it is properly called “illiberal” because it views the community, and not the individual, as the basic political unit.[75] (..)”
3.10. O Bloco de Esquerda tem de estar onde estão as pessoas, onde elas mais sofrem, aumentar o enraizamento na sociedade, na empresa, no sindicato, na escola ou na colectividade, procurando fazer movimento, envolvendo todos para uma luta que se adivinha dura.”
Ou sou só eu, ou há aqui semelhanças… Por isso e resumindo: quer um, quer outro, não são recomendáveis.
E por não serem, é obrigatório que os partidos da direita democrática se atenham no que importa e não em discursos patetas que levam ao afastamento, p.ex., das mulheres que tenham um pingo de inteligência e de amor-próprio, ou dos ateus, ou dos homossexuais, ou de quem não tenha um posicionamento ultramontano que já não se usa e que também não se recomenda.
Militante do CDS-PP. Politólogo


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