O apreço unânime – no texto como nos
comentários - por um homem de grande
valor, mas incómodo - Augusto Cid. O desassombro de outro homem - José
Ribeiro e Castro - - na
homenagem que lhe presta, sem receio de denunciar a geral poltronice ou astuta indiferença,
perante esse valor, de uma independência crítica aliada ao seu génio
caricatural penetrante, que o excluem do staff laudatório segundo a norma da
visibilidade para o politicamente - snobemente - correcto. Até mesmo – e sobretudo – no caso
da sua morte, do seu funeral.
Um herói civil
Não tinha espada, nem pistola ou punhal. A única arma que esgrimia
era o lápis ou a caneta de tinta da China. De mãos nuas, teve a serenidade e a
fortaleza diante dos desafios, a rectidão de propósito.
Venho do funeral do Augusto
Cid, português de enorme dimensão, um artista notável, amigo de eleição.
Antes, ao princípio da manhã deste sábado, fora a missa de corpo presente na
Basílica da Estrela, presidida pelo Padre António Vaz Pinto. Estava muita
gente, mas não tanta quanto devia, não tanta quanto ele merece.
Não
sei se o Augusto Cid ainda seria militante do PSD, mas não lhe é conhecida
qualquer defecção. É sabido que foi ele quem desenhou o
símbolo das três setas para o PPD, o Partido Popular Democrático. Não estava
ninguém pelo PSD. Não
estava ninguém pelo CDS. Ninguém dos partidos da AD, a Aliança Democrática, a
cujo espírito dedicou boa parte dos esforços e sacrifícios da sua vida. O jornal i, na sexta-feira, titulava: “Morreu o
cartoonista de que Mário Soares era fã.” É
verdade – há histórias engraçadíssimas dessa relação. Não estava
ninguém do PS. E, o que
é inteiramente natural, não estava ninguém do PCP, nem do BE. Não esteve a comunicação social, mas Augusto Cid
teve destaque nas páginas que vários jornais dedicaram à sua evocação. São
incontáveis os cartoons que, com o seu olhar bem-humorado e traço certeiro,
semeou em várias colaborações: “Povo Livre”, “A Mosca”, “Diário de Lisboa”, “O
Século”, “Vida Mundial”, “Jornal Novo”, “A Tarde”, “O Dia”, “Observador”, “O
Diabo”, “Semanário”, “O Independente”, “Focus”, “Grande Reportagem”, “Sol” e na
TVI, aqui no período em que fui Director de Informação. Em certo sentido, as
ausências são naturais. Augusto Cid não era, nunca foi, um homem do poder, um
homem dos poderes. Foi um cidadão livre, leal, independente, vertical. Também
não estava na Basílica ninguém do BES ou do Novo Banco, fosse o bom, o mau ou o
péssimo, nem sinal de quaisquer outras entidades quejandas. Um homem livre, na
verdade. Certamente em paz.
Estava
o Alexandre Patrício Gouveia, o General Rocha Vieira, o Júlio Castro Caldas, o
Paulo Sande, o Roque da Cunha Ferreira, o Nuno Van Uden, o José Luís Ramos, o
Nuno Rogeiro, o Pedro Roseta, o oficial da Casa Militar em representação do
Presidente da República. Na véspera à noite, tinha estado pessoalmente o
Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Veio de propósito do Porto,
onde todo o dia o ocupara, e teve de voltar ao centro-norte para obrigações no
dia seguinte. A sua presença, ao lado das filhas do Augusto Cid, fez o que lhe
tem sido tão frequente em tantas ocasiões por tanto lado: Marcelo esteve por
todos, esteve com os que estão e esteve pelos que faltam. Estiveram também
a Virgínia Estorninho, o António Homem Cardoso e o Ricardo Sá Fernandes. Nas
coroas de flores, com as homenagens da praxe, destacavam-se as da Junta de
Freguesia de Belém, do Grupo Municipal do PSD em Lisboa, do Presidente da
Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, do Presidente da Câmara Municipal de
Lisboa, do Primeiro-Ministro, da Presidência da República. São sinais que
pontuam a amplitude e a dimensão da sua vida. Mas merece mais.
Conheci
o Augusto Cid em 1981. Admirava-o como cartoonista, tinha os seus três
primeiros livros: o primeiro, ainda anterior ao 25 de Abril, sobre a guerra em
África; os outros dois, sobre o PREC. Andávamos inquietos com os inquéritos
oficiais sobre o caso Camarate, que não batiam certo. Sendo conhecida a
investigação própria que desenvolvia, com o jornal “O Diabo”, quis conhecê-lo,
saber mais do que descobrira e avaliar se era um esforço sério, genuinamente
preocupado com a verdade ou, como o acusavam, um daqueles vendavais
sensacionalistas que tendem a aparecer nestes casos. Verifiquei que não só era
um trabalho sério, como seriíssimo, exigente, rigoroso. Colaborámos muito em
todos os anos seguintes. E ficámos amigos para sempre. Além dos talentos que
tinha, o Augusto Cid era uma personalidade apaixonante de rectidão,
disponibilidade, humildade, sentido de humor. Um companheirão.
O
caso Camarate não teria sido aquilo que foi – conduzido ao ponto de podermos já
conhecer quase toda a verdade – se não fosse o Augusto Cid, o seu
inconformismo, a sua dedicação, a sua inteligência. Os milhares de horas que
gastou, os dias, e as noites também, a estudar, a escutar, a buscar a verdade,
a entendê-la, a testá-la, a avaliá-la criticamente, a confrontá-la, a
defendê-la, são trechos inumeráveis de tempo na sua vida.
Foi
ele (no princípio, com o Nuno Rogeiro e, nos primeiros anos, com a tenacidade e
a firmeza da Malé Vaz Pires, a sogra do Adelino Amaro da Costa), que foi o
guardião do fio da meada e, muitas vezes, perante o novelo de um acidente
fabricado pela burocracia, o descobridor das pontas soltas. Sem esse trabalho
do Augusto Cid, logo desde as primeiras semanas, e a persistência que manteve
ao longo de quase 40 anos, nunca teríamos chegado perto da verdade: teríamos
possivelmente verificado que não tinha sido “aquele acidente”; mas já não
teríamos elementos, nem saber para estabelecer o que havia sido, então. O
juntar de peças que lhe ficamos a dever nos avanços da prova é extraordinário.
Do
conhecimento que adquiriu, acumulou e consolidou da totalidade do processo, dos
seus diferentes ângulos e múltiplos passos, teve intuições brilhantes que
permitiram avançar. Como sabia tudo ou quase tudo do caso, jogava com o baralho
todo. É possível que possa ter sido injusto nalguns juízos ou hipóteses que
formulou, nas dezenas que houve que fazer no curso da investigação. Quem o não
seria, em iguais circunstâncias? Quem o não faria, quando se procura? Quem o não
faria, quando as entidades responsáveis pela investigação técnica e criminal,
em lugar de cooperarem e também caminharem, cristalizaram-se na mentira oficial
e foram sempre os principais obstructores à descoberta e ao estabelecimento da
verdade? Nunca encontraremos forma de pagar ao Augusto Cid essas horas, dias e
noites sem conta. O melhor é dizermos “Obrigado”. Mesmo.
Quando
o conheci, na segunda metade de 1981, já o Augusto Cid não desconfiava apenas
de que tivesse havido atentado; ele sabia que tinha sido atentado. A razão da
certeza vinha dos elementos que directamente colhera e, sobretudo, de ouvir os
testemunhos qualificados de quem vira. Destaco o Chefe Costa e o Inspector
Pedro Amaral e outros agentes da Polícia Judiciária. O primeiro, chefe da segurança
pessoal de Sá Carneiro, pôde seguir com o olhar, por um acaso fortuito, toda a
rolagem final do Cessna e a descolagem, observando claramente uma pequena
deflagração e o início de um incêndio a bordo, antes do embate em Camarate na
linha do horizonte. O segundo, chefiara a equipa da Polícia Judiciária que
andou a recolher indícios nas imediações do sinistro. É sobretudo no dia
seguinte, 5 de Dezembro, já à luz do dia, que os agentes recolheram aquilo que
ficou conhecido como “o rasto”: um conjunto variado de detritos e pequenos
fragmentos – papéis e pedaços de papel, bocados de fibra de vidro, outros
materiais, alguns chamuscados ou queimados – que foram encontrados no solo
entre o topo da pista 18/36, de onde Cessna descolara, e o local onde o avião
embatera em Camarate. O rasto gerou imensa polémica: de um lado, estes homens
da PJ sustentavam que era um rasto de materiais largados pelo avião, no seu
percurso de queda; do outro, a comissão técnica da DGAC sustentava que não e
que esses materiais se tinham depositado no solo, depois de projectados no ar
pelo grande incêndio final do avião, como numa fogueira, obedecendo à acção do
vento. A hierarquia da Judiciária resolveu o diferendo, afastando do processo o
Inspector Pedro Amaral e a sua equipa… Sobrou, porém, o relatório do Inspector
e outros registos do achado – o que, anos passados, muito ajudaria a que a
verdade acabasse por vir ao de cima.
A
inquietação de Augusto Cid, maior do que de qualquer outro de nós, vinha de ter
contactado directamente a verdade. Nós também o sabíamos, porque ele nos disse
ou porque lemos. Mas o Augusto Cid ouvira-o directamente de quem vira o avião
cair e de quem levantara do solo, ao longo de todo o percurso de queda, o rasto
inequívoco da sabotagem. O Laboratório de Polícia Científica, analisando os
fragmentos, confirmou a procedência do interior do Cessna, alguns (folhas
queimadas do Manual) saídos do cockpit. Se ao longo de cerca de 800
metros, numa faixa relativamente uniforme, se recolheram resíduos procedentes
de dentro da aeronave, era porque o Cessna tinha um buraco; se tinha um buraco,
era porque algo abrira esse buraco na fuselagem exterior e no corpo interior do
avião; e, se muitos dos fragmentos estavam queimados, era porque o avião trazia
um incêndio a bordo. Estava aí registado o essencial de um atentado com um
engenho explosivo localizado, apto a provocar uma pequena deflagração e a
simular um acidente à descolagem.
Tudo
isto se provou mais tarde, após mais algumas cenas rocambolescas. Mas tinham já
passado seis anos. Mesmo assim, ainda custou mais algum tempo para remover
preconceitos políticos. E os preconceitos judiciários nunca foram removidos.
Funcionou a melhor lógica corporativa: uma vez errado, errado para toda a vida,
errado até à eternidade.
A inquietação do Augusto Cid não era
angústia, nem ansiedade. Foi sempre pessoa de impressionante serenidade, mesmo
nas provas mais difíceis e nos riscos que correu. E, apesar do inconformismo
diante de autoridades que víamos deixarem fugir a culpa e os culpados, nunca o
vi perder a calma, a frieza e o sangue-frio. A inquietação dele era porque,
graças ao seu trabalho de investigação, ele conheceu, de viva voz, quase desde
o princípio, a verdade do que acontecera. Ele não sabia só a verdade; ele
tocara-a. E não mais pôde ficar quieto até que outros a tocassem também e a
verdade, enfim, prevalecesse.
O caso de Camarate vivido pelo
Augusto Cid é uma extraordinária metáfora da grandeza e da generosidade de um
ser humano.
Além disso, ele era um artista
de qualidade superior. Certamente nunca pensara ser detective, nem estudara
aeronáutica ou outros saberes e ciências. Não conheço todas as suas artes, mas
admirei-o como um cartoonista de excepção. Pelos seus cartoons, temos a história
política contemporânea de Portugal – e muito mais ainda. Poderia haver um Museu
Augusto Cid. E, se houver um Museu do Cartoon, terá de ter uma Sala Augusto Cid.
Admirei-o ainda como aguarelista, que é o género da minha predilecção.
E admirei-o como escultor, destacando
os seus cavalos e o belíssimo monumento no Restelo, em Lisboa, ao Condestável
D. Nuno Álvares Pereira, S. Nuno de Santa Maria. A estátua mostra o talento
do escultor e a singularidade do seu olhar. Eu nunca vira uma imagem assim do
Condestável que nos defendeu a independência na crise nacional de 1383-85. Mas
é esta imagem esculpida em bronze pelo Augusto Cid que gravei no espírito e me
vai ficar: de joelhos, levantando, em oferta, a espada para o céu.
Se
calhar, foi fácil ao Augusto Cid imaginar assim S. Nuno de Santa Maria. Ele,
em certa medida, também foi um condestável. Foi certamente um herói civil. Não
tinha espada, nem pistola, nem punhal. A única arma que esgrimia era o lápis ou
a caneta de tinta da China. De mãos nuas, teve a coragem e a persistência dos
heróis, a serenidade e a fortaleza diante dos desafios, a rectidão de
propósito, a determinação de chegar à meta. Lidou com muitos factos dolorosos,
mas nunca perdeu o sentido de humor e o sorriso. Foi verdadeiramente
infatigável. Agora, foi descansar. Merece. Felizes foram todos os que puderam
ser seus amigos. Grande exemplo guardam as suas filhas e os seus netos.
Lisboa,
16 de Março de 2019
COMENTÁRIOS
antonyo antonyo: Notável artigo sobre um artista de excepção. Sugiro que o Observador publique alguns dos seus fantásticos cartoons.
antonyo antonyo: Notável artigo sobre um artista de excepção. Sugiro que o Observador publique alguns dos seus fantásticos cartoons.
João Amorim: O meu obrigado também, José Ribeiro e Castro, por este belíssimo texto em
memória de um grande desta terra.
maria leonor Bettencourt: Lindo elogio ao Cid, apreciei sempre o seu desenho,
paz a sua alma.
Maria Nunes: Dr. Ribeiro e Castro, obrigada. Que bonito o seu elogio a Augusto
Cid, um grande ser humano.
Manuel Magalhães: Conheci o Augusto na tropa em Santarém e de imediato se reconhecia nele uma
pessoa especial, pelo seu espírito de observação, pela sua calma e serenidade e
pelo prazer da sua conversa e companhia, embora não o visse muito ao longo dos
tempos sempre que nos encontrávamos, a ele é á sua Triumph, era sempre a mesma
pessoa de uma enorme simplicidade apesar de já ser uma pessoa célebre e
reconhecida como impagável e assertivo cartoonista. Faz falta! Obrigado Ribeiro
e Castro por esta sua merecida homenagem ao Augusto Cid.
José Paulo C Castro: Um elogio merecido. Uma pessoa muito acima da mentira e da política barata.
Os grandes são assim, incómodos para os restantes que não o são. Neste país foi
assassinado um PM e um Ministro da Defesa (o alvo) e o assunto foi abafado
durante tantos anos, com a colaboração de muitas figuras mediáticas. Isso
revela bem a forma como o povo se deixa enrolar pelos media.
Dr. Feelgood: Um grande obrigado, Dr. Ribeiro e Castro, pelo artigo, pela triste notícia
e pela memória de Augusto Cid. De facto,
Camarate ficou completamente esclarecido após a publicação do seu livro.
Quanto aos motivos, Balsemão ainda está vivo e levará
o segredo para a cova. Os do Conselho da Revolução, a maior parte já esticaram
os pernis, felizmente para nós.
Honra aos mortos e paz aos vivos.
Obrigado mais uma vez.
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