sexta-feira, 15 de março de 2019

Mine, yours



O próprio Fernando Pessoa exalta esse feito extraordinário, a viagem de circum-navegação, por ocidente, de travessia do Oceano Pacífico, antes de atingir o Índico, já conhecido. É a sua morte que celebra, pelos nativos, como Titãs comprovativos de um extraordinário feito, que “abraçou a Terra”. De facto, a sua viagem foi feita ao serviço de Carlos V, por Magalhães se ter indisposto com o nosso rei D. Manuel. Viagem que terminou para ele nas Filipinas, assassinado pelos nativos, Sebastião del Cano comandando a frota de regresso, por mares já conhecidos. Verdadeiramente nosso ficará sempre o poema de Fernando Pessoa, e a extraordinária dimensão do feito, simbolizada na dança dos nativos, elevados à categoria de Titãs rebelando-se, no pasmo da Terra estarrecida.
Fernão de Magalhães (poema)
No vale clareia uma fogueira.
Uma dança sacode a terra inteira.
E sombras disformes e descompostas
Em clarões negros do vale vão
Subitamente pelas encostas,
Indo perder-se na escuridão.

De quem é a dança que a noite aterra?
São os Titãs, os filhos da Terra
Que dançam da morte do marinheiro
Que quis cingir o materno vulto-
Cingi-lo, dos homens, o primeiro -
Na praia ao longe por fim sepulto.

Dançam, nem sabem que a alma ousada
Do morto ainda comanda a armada,
Pulso sem corpo ao leme a guiar
As naus no resto do fim do espaço:
Que até ausente soube cercar
A terra inteira com seu abraço.

Violou a Terra. Mas eles não
O sabem, e dançam na solidão;
E sombras disformes e descompostas,
Indo perder-se nos horizontes,
Galgam do vale pelas encostas
Dos mudos montes.
Fernando Pessoa, A Mensagem
I - Opinião
A Surreal Academia da Direita Espanhola?
Há em Espanha quem não queira partilhar a volta ao mundo com mais ninguém, e uma Real Academia que se presta a essa agenda.
RUI TAVARES          PÚBLICO, 11 de Março de 2019
É triste a notícia de que a Real Academia de História espanhola preparou um relatório, a pedido do director do ABC, jornal conservador daquele país, para registar em acta a “plena e exclusiva espanholidade da empresa” da que viria a ser a primeira viagem de circum-navegação do mundo, comandada na sua maior parte por Fernão de Magalhães. E é triste porque estas polémicas nos dizem sempre mais sobre o presente do que sobre o passado, e o que a participação da Real Academia espanhola nos diz é que a erudita instituição se acha plenamente contaminada pela política.
Quem vai seguindo a política espanhola sabe que ela tem uma constante: quando há um governo de esquerda ou apoiado pelas esquerdas, a direita conservadora e nacionalista não pode nunca admitir-lhe uma simples oposição ideológica e política. Não; é preciso que o governo seja caricaturado como um governo antiespanhol, que negoceia o país com separatistas, que antes era acusado de ser tolerante com o terrorismo e por aí adiante. E agora até Portugal é metido nesses assados, porque esta direita considera que o governo espanhol se humilha e ajoelha perante o governo português, ou — para surpresa nossa — que “a diplomacia portuguesa perdeu completamente o respeito a Espanha”.
Esta última frase era a conclusão já há um mês de um artigo do editor de cultura do mesmo ABC que o jornal propagandeia como sendo sobre “as ridículas mentiras que Portugal conta para se apropriar da viagem de circum-navegação ao mundo”. Os termos não poderiam ser mais agressivos em relação a Portugal, o que surpreende pelo seu inusitado. Mas, não se enganem, Portugal é apenas uma vítima colateral nesta contenda: o que choca verdadeiramente o jornalismo da direita espanhola é o governo espanhol ter decidido cooperar com o governo português em algumas comemorações relativas à viagem de Magalhães e apresentar conjuntamente a candidatura da viagem de Magalhães à lista de Património da Humanidade da UNESCO. O que significa, nas palavras do articulista, “ter oferecido metade da comemoração a Portugal”. Ou seja, o governo espanhol, “bonzinho e ingénuo”, deixou-se enganar por nós portugueses que roubámos a Espanha uma comemoração que só pode ser entendida como “plena e exclusivamente espanhola”.
Isto indica-nos, é claro, que o nacionalismo espanhol está doente. Doente talvez de várias coisas, mas doente sobretudo de eleitoralismo. Para vermos quão alta vai a febre, lembremos que há uns dias a extrema-direita espanhola foi ao Parlamento Europeu dizer que “se não fosse por Espanha todas as mulheres da sala usariam burca” — aí já não se importando de se apropriar da Batalha de Poitiers, em 732, ganha pelos francos e borgonheses contra os avanços dos árabes. Mas daqui a umas semanas virão as eleições, a Espanha terá um novo governo, e a temperatura baixará talvez um pouco.
O que não passará tão depressa é a memória de a Real Academia de História se prestar a ser participante num jogo destes. Por um lado, o seu relatório cita factos que são conhecidos de toda a gente e nunca negados, nem por Portugal, nem em lugar nenhum do mundo — que Magalhães fez a viagem sob patrocínio de Carlos I, rei de Espanha (depois Carlos V como imperador do Sacro Império Romano-Germânico); que os barcos e o dinheiro para a expedição foram espanhóis; que foi Sebastián Elcano, marinheiro espanhol, que terminou ao comando da viagem depois de Magalhães ter sido assassinado em Mactán, nas atuais Filipinas. Por outro lado, a Real Academia tira daqui que a circum-navegação só pode ter sido, toda ela, “plenamente”, “exclusivamente”, espanhola.
Poderíamos entrar nesta guerra de alecrim e manjerona com argumentos semelhantes: então e as viagens que Magalhães fez antes no Índico em frotas portuguesas, e que fazem dele o primeiro humano que documentadamente regressou a um ponto do planeta onde tinha estado antes, cumprindo a viagem pelo outro lado do planeta? Também pertencem “exclusivamente” a Espanha, ou serão “ridículas mentiras”? Então e os marinheiros italianos, franceses e gregos que iam na expedição? Então e Antonio Pigafetta, da República de Veneza, que pagou para viajar com Magalhães e escreveu o primeiro texto sobre a viagem à volta do mundo? E as informações do único livro que sabemos ter sido possuído por Magalhães, do italiano Ludovico di Varthema, e as fontes que ele tinha recolhido entre persas e indianos? Tudo “exclusivamente” espanhol, mais nada para ninguém?
Mas rapidamente ao compilar estes factos nos apercebemos de uma coisa tão óbvia que até dói: que a viagem à volta do mundo pertence a gente de muitas origens e que a comemora quem quiser. Se há política na história desta viagem ela deve ser virada para o futuro e generosa, ajudando-nos a pensar como tornar hoje a humanidade mais unida, a globalização mais justa e o planeta mais viável para todos.
Em vez disso, há em Espanha quem não queira partilhar a volta ao mundo com mais ninguém, e uma Real Academia que se presta a essa agenda. A continuar assim, veremos um dia os doutos académicos do país vizinho escrever relatórios sobre o Real Madrid para explicar por que razão a equipa anda a perder muito mais desde que o Cristiano Ronaldo de lá saiu. Sendo o Real Madrid uma empresa “exclusivamente espanhola” tais coisas não deveriam suceder.
Historiador; fundador do Livre
COMENTÁRIOS:
Henrique Duarte, Portugal 12.03.2019: O nacionalismo espanhol está a recrudescer. A semana passada um grupo de nacionalistas espanhóis deixou às portas da morte um galego conhecido pelas suas opiniões soberanistas. O Ortega Smith do partido fascista Vox ameaça em pleno parlamento europeu um deputado Belga. Este mesmo Ortega Smith afirma que as dezenas de milhares pessoas assassinadas pelo regime do Franco foram fuziladas sim, mas fuziladas com amor. O vídeo está disponível na net, para os mais incrédulos.
JMRL 11.03.2019: Acho a teoria de RT um pouco deslocada, construída para dizer mal da direita maléfica. Dizer que havia portugueses ou italianos na expedição para justificar que não era espanhola... Também o Infante D. Henrique ou D. João II recorreram a cartógrafos italianos, Vasco da Gama empregou um comandante nativo na costa oriental de África, e não é por isso que os "Descobrimentos Portugueses" (desculpas para os amantes do politicamente correcto que não gostaram do nome do Museu) deixam de o ser. A viagem de Magalhães (e de Elcano que nós portugueses gostamos de não referir) é um momento único na História Universal que deveria ser celebrado sem estes preciosismos "bacocos", quer da Academia Espanhola (e alguém considera o ABC um exemplo de objectividade?), quer de "lusitanismo ofendido".
jose,11.03.2019: Nunca é o próprio a contar a história em que participa até por falta de distanciamento histórico. Esta provocação dos castelhanos à história não ficará na história. A primeira consideração obrigatória em nome da exactidão é sabermos todos que não há Espanha, nem Espanhol como língua. Tudo o que contém na sua designação a palavra Espanha é falso. Existe o Reino de Castela que usurpou, passando por cima de milhões de cadáveres, os povos catalães, bascos, galgos, andaluzes, baleares e os canários. Tentou o mesmo com Portugal e foi derrotado pela Restauração de 1640 que se prolongou por mais de 28 anos de batalhas sangrentas. Espanha é o nome dado a um reino imperial colonialista que à margem do Tratado de Alcanizes tem a pata nas terras portuguesas de Olivença, agride de vez em quando as ilhas selvagens portuguesas, destrata Portugal nos caudais dos rios internacionais e põe Portugal perante factos consumados na Nuclear de Almaraz e em tudo o que pode.
Stony Brook NY, Marialva Beira Alta 11.03.2019: A mim sempre me espantou não só a duração (os 28 anos que refere o José), como a ferocidade (foi a maior mobilização militar espanhola do séc XVII, com massacres rotineiros em aldeias e vilas no Alentejo, etc) e ausência de qualquer plano espanhol de criar relações de vizinhança mesmo tendo perdido a guerra - a abocanharam tudo o que puderam - Ceuta por exemplo. Eu não denoto nenhuma mudança de atitude, desde acumular resíduos tóxicos na fronteira (nucleares no Tejo, químicos no Douro) até aos voos rasantes sobre as Selvagens. Este relatório da Academia Real espanhola, ao contrário do que sugere Rui Tavares, nem é pontual nem é da "direita espanhola" - é da mesma Espanha que sempre conhecemos.
II - EDITORIAL: Um parecer absurdo que vale a pena desvalorizar
Entrar num debate eivado de nacionalismo que episodicamente contamina a política do país vizinho é um risco que põe em questão a proximidade e a amizade que une dois países democráticos e europeus.
MANUEL CARVALHO                PÚBLICO, 12 de Março de 2019
O relatório da Real Academia de História da Espanha foi escrito com o anunciado propósito de “evitar que a comemoração [dos 500 anos da viagem de circum-navegação por Fernão de Magalhães] se converta numa fonte de dissidências entre os dois países vizinhos”. O objectivo falhou clamorosamente.
Numa altura em que Portugal e a Espanha ensaiam uma candidatura conjunta da viagem a Património Mundial da UNESCO, a declaração da Real Academia de História de que “é incontestável a plena e exclusiva espanholidade da empresa” só pode acirrar velhas animosidades que a integração europeia e a democracia haviam remetido para o baú da memória. O que há então a fazer? Acreditar que a posição da academia contraria uma posição historiográfica aberta e moderna sobre o tema e, pelo contrário, revela uma tese de forte pendor nacionalista; e manifestar uma posição aberta e cosmopolita que aprofunde a amizade ibérica através da recusa destes manifestos.
Não faltam caminhos para se adoptar uma e outra posição. Afinal, a viagem só foi um sucesso porque foi dirigida inicialmente por um navegador português que conhecia a rota ocidental do Atlântico. Essa rota tinha sido explorada na sequência de saberes acumulados por árabes, italianos e portugueses. Na tripulação de Magalhães havia 239 marinheiros de nove nacionalidades, dos quais 32 eram portugueses.
Pretender que a façanha do navegador é portuguesa é um disparate histórico porque, na verdade, ela foi essencialmente espanhola através do patrocínio e do financiamento do Estado espanhol. Mas dizer que a empresa foi “exclusivamente espanhola” não é um disparate menor.
Resta por isso desvalorizar a pulsão patrioteira de alguma imprensa do país vizinho e a tese da “Surreal Academia da Direita Espanhola”, como lhe chamou Rui Tavares na edição desta segunda-feira do PÚBLICO, e enquadrar as comemorações num tempo histórico comum, em que Portugal e a Espanha dominaram os mares.
Atribua-se o protagonismo devido a Fernão de Magalhães, mas reconheça-se o sentido de oportunidade e a inteligência estratégica da coroa espanhola e, evidentemente, a enorme responsabilidade de Juan Sebastián Elcano no cumprimento da viagem. Entrar num debate eivado de nacionalismo que episodicamente contamina a política do pais vizinho é um risco que põe em questão a proximidade e a amizade que une dois países democráticos e europeus – até porque também por cá o umbiguismo da História é capaz de desenterrar os piores demónios.
Os dois governos devem por isso celebrar o que merece ser celebrado: a visão do seu passado comum cimentada pelos factos e não pelas ideologias que os pretendem contaminar.
COMENTÁRIOS
Luis Morgado, Lisboa 13.03.2019: Na linha do artigo de Rui Tavares, apresenta-se aqui uma posição aparentemente equilibrada, mas objectivamente incompleta. Há duas situações em jogo que são misturadas e que devem ser diferenciadas. Uma coisa é a viagem de circum-navegação e outra coisa é o navegador Fernão de Magalhães. Se é evidente que Portugal tem legitimidade para comemorar Fernão de Magalhães, parece demasiado óbvio que a empresa da circum-navegação é património essencialmente espanhol. Grande parte dos acontecimentos e obras que marcam a nossa identidade nacional também incluíram contribuições de outras nações, mas o que pensaríamos se os espanhóis reclamassem para Espanha parte dos Jerónimos só por João de Castilho ser Castelhano? E se fosse considerado património espanhol toda a nossa produção artística do tempo dos Filipes?
Sandra, : Lisboa 12.03.2019: Completamente de acordo com o editorial de Manuel Carvalho. Diplomacia aliada a bom senso. Está perfeito.


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