E também valeu a pena, a internet
favorecendo-nos com muitas imagens e mapas das várias paragens: Salalah, no
Sul, em Omã, Djibuti, no lado de lá, africano, do estreito de Aden – e o Mar
Vermelho, e Meca, “até Aqaba, já na Jordânia,
tudo pode acontecer”. Uma viagem de risco, com os snipers tunisinos
protectores, que os tempos não estão para brincadeiras. Mas por isso admiramos
a garra dos espíritos curiosos que, generosamente, partilham.
HENRIQUE SALLES DA
FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 27.03.19
UM QUASE DIÁRIO DE BORDO À MINHA MANEIRA
14/03/19, 05:08 -
Vamos aportar a Salalah onde entrarão os snipers a bordo para nos protegerem na zona perigosa.
A "trincheira" que me está destinada é no
casino, atrás duma slot machine. Eis por que associo pirataria a
"Bally", o modelo da máquina.
Os snipers mandaram dizer ao Comandante do barco que
ultimamente não tem havido pirataria e que com navios de cruzeiro nunca houve.
Que talvez seja desta...
17:30 – Os snipers são 14 tunisinos e estão autorizados a atirar a matar
TUDO o que vejam a mexer na água e de que desconfiem. Cruzei-me na escada do portaló com dois
deles e garanto que NÃO será nos próximos dias que tenciono nadar à volta do
navio. Desta vez opto pela piscina.
16/03/19, 20:15 -
Frente a Djibuti, devemos passar o Estreito de Áden
nas próximas horas. Até agora, sem problemas mas a rapaziada sniperiana tem infravermelhos para nos guardar a noite.
17/03/19, 08:25 - Em
plena luz do dia (são 11,21 h da manhã), foram avistados 2 grupos de piratas
que não se aproximaram para cá de uns 500 metros. Foi giro ver os vigilantes e
os snipers a postos mas não chegámos a ser mandados
para o interior do navio porque os putativos assaltantes se afastaram. E isto já
no Mar
Vermelho, não no Golfo de Áden que é a zona mais problemática.
12:11 - Tudo se esfumou... Já o Almirante sem medo dizia "É só fumaça".
Pode ser que logo à noite a "coisa" melhore.
14:14 - Até Aqaba, tudo pode acontecer.
Só lá é que sairão os snipers.
18/03/19, 09:51 - MISTÉRIO
Pelas 3,30 h desta madrugada, calou-se de
repente a música da discoteca e os foliões foram mandados "recolher a
quartéis" SEM percorrerem os decks exteriores.
Eu dormia o sono próprio de quem tinha
levado uma grande tareia (uma massagem forte ao corpo todo ministrado por
uma filipina com 1,40 m de altura mas com uns polegares lancinantes).
Pela nesga duma cortina, houve quem
percebesse que estávamos acompanhados por outro navio e que ambos estávamos
parados, apenas com os motores em ponto morto.
A Graça ouviu barulhos (que não
identificou) contra o casco.
E eu dormia... Que pena! Perdi toda a adrenalina
correspondente a tal mistério. A ver se alguém da tripulação solta a língua...
Se sim, contarei.
15:49 - Navegamos agora frente a Djedah, o mesmo é dizer Meca.
Eis por que me lembrei da expressão "se a montanha não vai a Maomé, vai
Maomé à montanha". Assim, não sabendo ainda o que se passou a noite
passada, vou agora mesmo à procura dos vigilantes e dos snipers para lhes perguntar. Devem
estar no deck 8, o que coincide com o do bar. Melhor porque en passant... molha-se a palavra.
19/03/19, 07:10 -
Pelas 4 da manhã, fui acordado por um cheiro forte que circulava pelo ar
condicionado. Parecia cheiro a combustível. No nosso deck, só há camarotes
exteriores mas os janelões (enormes) são fixos, não se podem abrir. Fui ao
corredor tentar averiguar qualquer coisa e encontrei um membro da tripulação
que andava de nariz no ar a fazer tanto como eu.
Deixei ficar a porta do camarote aberta para o caso de
termos que sair à pressa mas, passada uma meia hora, o cheiro desvaneceu-se e
desapareceu.
Eis como se mata uma quantidade enorme de gente
adormecida se no sistema de ar condicionado algum danado puser um gaz letal.
Vou pedir uma explicação ao Comandante.
08:42 - O Comandante disse que tinham estado a
pintar uma sala interior e que o cheiro vinha daí. Mandei dizer que o cheiro
era de fuel, não de tintas.
Pediram desculpa e garantiram que a coisa não voltaria
a acontecer.
É o que se vai ver...
20:20 - Há duas noites, o barco parou e houve
barulhos que a Graça não conseguiu identificar. Soubemos hoje que estavam à
nossa frente 3 ou 4 barcos suspeitos. Com os snipers devidamente a postos, o Comandante mandou fazer alto
para ver no que a "coisa" dava. Deu que os ditos suspeitos saíram da nossa rota para
distâncias consideradas seguras e passámos sem mais histórias. Já lá vão quase 48 horas e eu só tenho
pena de ter passado por tudo isto sem me aperceber de nada.
20/03/19, 18:56 - Hoje
de manhã, quando acordámos, estávamos atracados em Aqaba, extremo Sul da
Jordânia. Desembarcámos e encamionetámos numa viagem de 2 horas
até Petra. Paisagem que me deixou na dúvida entre a Lua e Marte. E,
mesmo assim, há quem tente a agricultura. Porquê? Porque não devem saber fazer
mais nada.
Pergunta: Como é possível que a moeda jordana, o
Dinar, valha US$ 1.50?
Resposta: Aldra! Valor determinado por Decreto, não
pelas forças naturais da Economia.
Contarei mais quando chegar a casa.
Zarpamos hoje para - não sei bem quando - passarmos
frente a Sharm
el Sheik, extremo Sul da Península do Sinai, para nos fazermos de seguida ao
Canal do Suez.
21/03/19, 10:56 - Estamos sentados no convés da popa a
fugir do vento que sopra pela proa. A nascente (estibordo), as ondas do
Golfo do Suez; a poente, a costa africana do Egipto.
A velhota baixinha sentou-se perto de nós, ao meu
lado, pôs os pés em cima da banqueta que tinha à frente e ficou a olhar para o
mar que foge por baixo de nós. Fez-me lembrar a minha Professora de geografia
que no liceu nos falou dos tubarões que infestavam o Mar Vermelho e o Suez
durante a viagem que fizera de Goa para Lisboa. Cheguei-me à amurada e só vi água.Virei-me
para ela e disse-lhe em castelhano (a maior parte dos passageiros são
espanhóis) e depois em inglês que não havia tubarões. Não respondeu nem sequer acenou um
cumprimento. Deixei
passar. Ou é superior e não me considera merecedor de conversa ou é apenas
malcriada. Daí a
pouco, aproxima-se outra velhota e gesticula qualquer coisa que não entendi. Realmente, nunca aprendi língua gestual,
não consigo comunicar com surdo-mudos.
22/03/19, 21:27 - Demorámos 12 horas a percorrer o Canal de
Suez no que foi um percurso interessantíssimo. Durante a parte desértica, chama
a atenção uma linha verde paralela a ambas as margens que é claramente uma
tentativa de combate ao deserto. Essa linha avista-se nitidamente mesmo em
zonas onde nada mais existe. Mas na margem ocidental, a africana, sempre vão
aparecendo povoações - umas pequenas e outras de certa dimensão. Nessa margem,
a partir de certa altura, tudo passa a verde e a agricultura mostra-se pujante.
É o delta do Nilo.
Na margem asiática, a do Sinai, a tal linha verde é
contínua duma ponta à outra do Canal e o volume fantástico de obras em curso
não a bule. Devem
ser umas quantas cidades que vimos em plena construção para milhares e milhares
de pessoas. Algumas delas são de vocação turística mas noutras vê-se pessoal da
Engenharia Militar a trabalhar. Aqui no barco não encontrei quem me explicasse
nada. A enorme ponte (parece a de VRSanto António) por baixo da qual
passámos ainda não está inaugurada.
Seja o que for que esteja em construção, é muito
grande e destinado a um desenvolvimento significativo do Sinai. Se tudo aquilo
for agricolamente acompanhado com a equivalente dessalinização da água, admito
que o futuro do Egipto seja risonho e que a malta passe a ter mais que fazer do
que pensar em terrorismo.
Inch Allah!!!
23/03/19, 09:32 - Deixarei
para mais tarde algumas reflexões que me ocorreram durante esta viagem que se
aproxima do fim à velocidade de cerca de 15 nós.
Têm essas reflexões tudo a ver com as duas forças
que se debatem nesta zona do mundo, a religiosa e a laica. Mas o conflito não é
novo nem dá sinais de extinção imediata pelo que as minhas confabulações podem
esperar mais uns dias.
Entretanto, para aligeirar um bocado a tensão
provocada pela iminência pirática, fui à biblioteca do barco e meti-me por um
romance de André Maurois (que não tive paciência para ler totalmente) mas donde
tirei uma informação que chamou a minha curiosidade sócia histórica: "Foi
pelas partes baixas de Luís XV que Mlle. Poisson foi alcandorada a Marquise de
Pompadour".
Lembrei-me então de que a famosa loja lisboeta de
roupa interior ostentando o título da Marquesa, se poderia, em alternativa e
muito apropriadamente, chamar "La poissonnerie".
21:08 - Rumo ao Pireu (porto de Atenas), hoje
à tarde passámos entre Rodes e Creta com tempo farrusco.
A caminho do restaurante, parecia que íamos grossos
mas não chegámos a agarrar-nos às paredes. Não tínhamos bebido mas o mar quis
dizer que estava lá em baixo.
Já sabemos que vai ser assim toda a noite e que só
depois de passarmos o Cabo Sunion e entrando no Egeu é que a "coisa"
vai serenar. Depois digo.
Para já, a festa continua com um concurso de
sevilhanas que está animadíssimo.
Amanhã, logo pelas 7 da matina entramos pela terra de
Péricles a dentro.
24/03/19, 12:13 – A
viagem continua por outros bordos – os do barco ficaram no Pireu - e
agora estamos a fazer horas no aeroporto de Atenas. Vá de petiscar uma moussaka e beber um copo ligeiro porque as bebidas fortes me
fazem caspa.
No check in não me encontravam o lugar porque alguém
nos ofereceu o upgrade. E num cruzeiro sem classes, já nos
tinham feito upgrade na vinda. No barco, o nosso camarote
também tinha muita classe. Assim, até eu gosto de uma sociedade sem classes.
21:04 - Ficámos a dormir em Madrid, só
seguimos amanhã. É para quebrar o stress da pirataria.
Jantámos no hotel apesar de haver vários restaurantes
nas redondezas.
Entretanto, chegou um casal de cães "Terra
Nova" que estão a caminho duma exposição no México. LINDOS!!! Pretos e
enormes, docemente mansos. Na recepção do hotel perguntaram-me o que é que eu
pensava: se seriam os cães a dormir nas camas e os donos a dormir na banheira
ou o contrário. Respondi que os perritos merecem dormir nas camas; os donos
(um casal já de meia idade) que durmam na banheira, na retrete ou no
bidé. Como quieran.
Março de 2019
COMENTÁRIOS
Anónimo 27.03.2019: Gostei... e invejei!
Anónimo 27.03.2019: Mais uma aventura,
que sempre promete surpresas. Parabéns! Que tenham chegado bem e um abraço.
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