Um texto enriquecedor na sua abstracção
e evasiva, este de Maria João
Avillez, tratando enigmaticamente – pela espécie de responsabilização da
imprensa, o quarto poder, na questão da denúncia da prevaricação, ou o seu
protelamento, na presunção de inocência dos incriminados. Na realidade,
trata-se, concretamente, do tema dos escândalos sucessivos num país que
aparenta ter perdido o controlo da decência, ao mergulhar sofregamente no baú
dos dinheiros obtidos por via dos empréstimos sucessivos, desde a revolução
salvadora, fortalecendo não as hipóteses do enriquecimento do país em
perspectiva cultural e económica segundo uma fórmula de racionalidade e ética, (apoiada
em ambição, sim, mas de esforço próprio, em trabalho pessoal e comunitário em
função do bem geral), mas fortalecendo o bolso individual da camada habitual
que se apoia em falcatrua.
Porque aquilo a que assistimos no nosso
país - e vem de longe, é certo, e, cada vez mais expressivo - é o regime de
monopólio capitalista pelos DDT, quer tenham pertencido à realeza quer a outros
regimes políticos, sem equilíbrio nem respeito pelos que, pelo seu trabalho ou
participação, contribuem para a evolução positiva dos ganhos, explorados esses
sempre, numa desmesura diferenciadora, que tanto assinala a nossa falta de
ética ou tão só de educação.
Hoje, todavia, não é de enriquecimento de
uns, em função da exploração do trabalho dos outros que se trata, mas das muitas
negociatas obscuras provenientes dos dinheiros de empréstimos angariados pelo
Estado, que cavaram o fosso da nossa ruína, por conta de dinheiros subtraídos à
fiscalização estatal, em fuga paradisíaca - tudo isso de fraudulência que se
avoluma e vai sendo denunciado na imprensa, diariamente, obscenamente,
arrumando definitivamente a nação para o canto dos devedores eternos, na dívida
que engrossa, por falta de produção económica que cubra a fraude e a desonra.
É disso que trata, delicadamente,
cortesmente, em abstracto, o discurso rebuscado de Maria João Avillez. Como se
trata de uma página inteligentemente evasiva, guardo-a no meu blog, indiferente
à “presunção de inocência “, como
premissa fundamental no caso de gente há muito considerada culpada, só
escapando porque as teias tecidas por essas aranhas argutas poderão, de caminho,
colher muitas moscas bem posicionadas, que convém preservar.
Não, não se trata de linguagem abstracta
esta da teia, mas apenas de linguagem tristemente metafórica. De toda a
maneira, tão inútil uma como outra, para solução, sem tanto arrastamento, por via
da tal presunção, do fedor sentido neste nosso curral, que não há Hércules suficientemente
forte que possa suprimir.
JUSTIÇA: Presunção de inocência?/premium
OBSERVADOR, 6/3/2019
Sou
mensageira porque me quero o traço de união entre o que ocorre e quem quer
saber o que ocorre; contadora porque aprendi com Virginia Woolf que “nada
acontece até ser contado”.
1.
Um dia tocou o telefone e espantei-me: julgava saber que o dr. Rui
Patrício militava contra conversas nas ondas ou
pelo menos que tal gesto muito o aborrecia. Era ele, porém, em viva voz. Voltei
a espantar-me: o advogado que conheci há pouco tempo e apenas no espaço de um
almoço e de uma hora num tribunal, convidava-me para uma co-apresentação do seu
último livro, “A presunção da inocência no julgamento em processo
penal — alguns problemas” (Almedina)
Ou melhor, gostaria o seu autor que esta cidadã sem formação jurídica nem
experiência do seu universo aterrasse na percepção pública da presunção da
inocência e de como a via inscrita no país.
Os
espantos lembraram-me outro, mas esse mais forte: fora quando
desprevenidamente, há meses, eu dera por um pequeno livro – “Mapa Mundi da Justiça em Bilhete Postal” — onde Rui Patrício ia, com boa mestria, duplamente por aí fora:
discorrendo como quem não quer a coisa pelas coisas da Justiça, intervindo,
criticando ou deplorando; e por aí fora em sentido literal, percorrendo
diversas geografias que de uma ou de outra maneira lhe tinham puxado pela verve
jurídica mas também – oh surpresa — por uma cultura literária de primeira água.
Quem era aquele erudito leitor, intenso e apaixonadamente curioso?
Era
suficientemente interessante para o desafio que me fazia.
2.
Nunca poderia partir para a empreitada que me trouxe ao auditório deste
escritório sem também partir da minha própria circunstância. Digo empreitada
que é substantivo a que costumo recorrer quando, sendo nobre a tarefa, como é o
caso, eu tema que ela me possa ultrapassar.
E
falei da circunstância, que é a minha, vocacionalmente e profissionalmente
jornalista desde há tempos imemoriais e quase sempre ininterruptamente. O tempo
e o labor fizeram-me aprimorar o “modus faciendi” como entendo o jornalismo, a
vida fez-me decantar as ilusões sobre ele.
É
pois ancorada nesse “modo” de agir na comunicação social que aqui estou, que o
mesmo é dizer que está aqui a mensageira e a contadora. Podia estar a
testemunha, a noticiadora, a escrutinadora, a julgadora, outras formas e
fórmulas de entender a profissão. Admito-as a todas, considero ou mesmo admiro
alguns dos seus praticantes, mas não são as minhas.
Sou
mensageira porque me quero o traço de união entre o que ocorre e quem quer
saber o que ocorre; contadora porque aprendi com Virginia Woolf que “nada
acontece até ser contado” e quantas vezes não dou comigo a pensar no formidável
alcance desta só aparentemente prosaica frase.
3. A
mensageira não traz boas notícias.
Presunção
de inocência? Já
conheceu melhores dias, para dizer o mínimo. Mais que culpa ou culpados, há um
estado de coisas que é insalubre e tem oscilado nos últimos anos conforme as
marés que é o outro nome que estou a dar a “conveniências”. E, em pano
de fundo, uma indiferença que à mensageira parece extraordinária: ninguém se
importa? O estado de coisas não aflige a sociedade civil, as instituições, o
país, a própria Justiça e os seus diversos agentes? Não inquieta a media
responsável, os deputados, os protagonistas políticos? Não entende toda esta
gente a “Presunção de Inocência” (PI) enquanto “comando normativo, forte e
claro” como nestas páginas defende Rui Patricio?
Não
sei. Um mistério. A não ser que tal estado de coisas convenha afinal mais do
que incomoda e aí eu teria muita pena: passaria a ser oficialmente uma cidadã
envergonhada e haverá poucas coisas tão tristes como desconfiar do berço de
onde se é.
4. Falei
do actual travestizamento da presunção da inocência mas quase não era preciso:
está na montra. À vista de todos. Refiro-me a uma dupla fatal de veredictos que
por vezes – por vezes, insisto — antecipando-se à própria Justiça, desfigura,
perverte e subverte o significado e a importância da PI: o veredicto popular, o
qual se foi tecendo após a media ter projectado para o ar do país, o seu
próprio veredicto. Ou seja, ambos os veredictos cortam a meta em primeiro
lugar. Ocupando o espaço público e autorizando cada cidadão ao seu privado,
subjectivo e falível julgamento dos factos. E lembre-se a propósito como a
opinião pública pode ser frágil, influenciável, volúvel, primária…
Tudo
isto compromete obviamente o valor fundamental da presunção de inocência já que
só depois desta “ocupação” chega a Justiça. Sendo aliás legitima ou pelo menos verosímil a
dúvida de se ela não chegará – digamos – tocada pelo aparato, o ruído e as
(irreversíveis?) consequências do julgamento já efectuado na praça pública.
Tudo isto acontece como regra? Não. Repito, não. Mas mesmo como excepção ou
excepções já seria deplorável que ocorresse. (e não ocorreu?)
Basta
parar dois segundos naquele deprimente galope de gritaria e ignorância onde
se confundem microfones, jornalistas e câmaras televisivas, que costuma ocorrer
às portas das instâncias judiciais quando está em causa um interrogatório, uma
sentença, uma operação judicial. Onde o tom de voz da media é não raro
acusatório; onde não raro as pergunta veiculam palpites, rumores excitados ou
insinuações descontextualizadas; onde os écrans concorrem entre si na
divulgação de um puzzle noticioso arriscadamente incompleto e parcial: por
tolher a investigação mas sobretudo por lesar a dignidade do arguido. Soltar
alguém desta forma na praça pública é atentar contra o direito á dignidade de
ser, enquanto réu ou arguido, considerado inocente até prova em contrário. E
essa garantia é, para a jornalista-mensageira uma garantia que deve ser
límpida, inteira e lisa: sem desvios ou entraves. Admito estar a ser excessiva, porventura exagerada,
quem sabe até caricatural, mas não me parece que a mensageira ficcione se
transmitir o recado de que tal garantia não está hoje inteira na Justiça
portuguesa. Sejamos sérios: ou está? E isto quando o ponto 7 do
nosso Código Deontológico é claríssimo na sua recomendação de que (cito) “o
jornalista deve salvaguardar a presunção de inocência dos arguidos até a
sentença transitar em julgado”.
5.
Antes de abordar agora outro quase mito que é o segredo de justiça,
permito-me abrir um breve parêntesis para evocar algo que inteiramente se
relaciona com o que acima escrevo e sempre me aflige: competiria ao mundo
judicial cuidar — cuidar a sério, cuidar mesmo! — da sua relação com a media
que o mesmo é dizer com o país. Dois pequenos exemplos: organizando de forma
menos desmazelada e mais atenta a acomodação, a logística, o trânsito da
comunicação social nos seus domínios. Em vez da rua, dos passeios, de qualquer
ar livre pouco recomendável, um espaço interior, por onde passariam
obrigatoriamente – mesmo que sem direito a perguntas — os protagonistas da
notícia. E depois, melhores comunicados e em maior número, assinados pelas
instâncias judicias. Mais corrente de informação com maior constância e
substância talvez prevenisse adivinhas, rumores e conjecturas. Tornaria tudo
mais equilibrado? Não sei mas certamente despoluiria o ar.
6. Não
se pense porém que atiro a mochila da responsabilidade destes atropelos
exclusivamente para as costas da comunicação social. (Que seria das coisas,
tantas coisas, sem ela e falta-me tempo para a enumerar essa longa lista.)
Refiro-me agora àquelas, digamos, diligentes fontes clandestinas que do
interior do intrincado universo judicial transmitem para o exterior, para este
ou aquele jornalista, uma parte ou o todo de uma informação oficialmente ainda
em segredo de justiça? Como acreditar então na lisura do processo, dos
processos?
É
que face a isso, uma de duas coisas: ou o jornalista tem um carácter à prova
de bala e um sólido critério quanto ao limite do interesse público para saber
lidar com a relevância dessa informação ainda em segredo, ou não tem. Se tem,
percepciona a sua real importância e age sem prejudicar o trabalho da Justiça,
atropelar a PI, ou alertar desnecessariamente a opinião pública. Ou seja, faz o
seu dever, profissional e ético. Mas… e se não tem? Como há de
resistir ele à tentação tão justamente irresistível ou a “brilhar” diante de um
editor que entre outras tarefas espinhosas tem também aos ombros a pressão de
ultrapassar a concorrência televisiva ou impressa?
Insistirão:
e o interesse público? Têm razão.
Imensa razão. Prosaicamente eu diria porém que o dilema poderia ser
resolvido com boa formação e boa fé, pela consciência profissional, cívica, ética
do próprio jornalista. Aliás é sobre a responsabilidade do jornalista que o
Código Deontológico que nos rege faz recair a solução desse dilema ao
recomendar o dever de informar sob quatro critérios: informação que seja
verdadeira; com interesse público; que respeite a linha editorial do respectivo
órgão de comunicação social; e seja verificável por via documental.
Ou
seja, conjugado com o princípio constitucional da liberdade de imprensa e da
liberdade de expressão, o Código Deontológico impõe um dever de informar quando
qualquer informação chega ao conhecimento do jornalista, mas apenas após
cumpridas aquelas quatro condições.
7.
Se isto costuma coincidir um pouco, muito ou nada com a nossa realidade, é o
que nos compete avaliar. E depois? Ah depois que cada um tire as suas
conclusões. É que nem uma presunção de inocência corrompida, nem um sempre
nocivo lote de fugas de informação, nem uma opinião pública intoxicada fazem
forte a Justiça e ainda menos a pátria. Não se vai longe assim. E se em cima
disto eu lembrar a ameaça, real, da judicialização da política ou… da
politização da Justiça, parece que não temos ido.
Eu
avisei: a mensageira não trazia bom recado.
COMENTÁRIOS:
Maria
Nunes: Muito
bom.
Joao M. Vidal: Crónica
absolutamente deliciosa. Li devagar, com a pena de chegar ao fim. Muito
obrigado, minha Senhora!
Maria Madeira: Excelente artigo!
victor guerra: Presunção.
josé Maria: A presunção
de inocência é uma figura jurídica. Se um jornalista tiver provas concludentes,
mediante investigação seriamente conduzida, sobre a culpabilidade de um
investigado, o que vai fazer com essas provas? Vai divulgá-las ou vai ficar à
espera que os tribunais demorem vários anos até proferirem, sobre o arguido,
uma decisão definitiva?
CHINTS > josé maria: Vai
entregá-la à polícia judiciária. Não queremos a justiça na rua, ou queremos?
Tipo Idade Média e caça às bruxas?
Domingas
Coutinho: Muito bom MJA como sempre.
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