sexta-feira, 22 de março de 2019

Ele, escritor, diz que não tem palavras



Realmente, Mia Couto é um escritor que ganhou reputação até fabricando palavras. “Cronicando”, foi um livro de contos que eu li – era o seu primeiro, tenho aqui outros, oferecidos, mas não os consigo ler. Creio que por aversão. O certo é que Mia Couto escreveu sobre um povo que amou, a quem pertenceu, pois com ele brincou, o suficiente para se servir dele, como matéria-prima que o catapultou para uma fama que oportunamente o enriqueceu. Porque o amá-lo tanto, a esse povo explorado, subentendia ódio pelos portugueses que exploraram o povo que ele tanto amou, e Mia Couto soube assinalar bem essa faceta do seu amor, que estava na berra e vinha a calhar numa altura em que se dava o pontapé de saída ao povo que há séculos o ajudara a desenvolver – com limitações, naturalmente – por há séculos ter ocupado a terra onde ele brincou, e onde jamais teria brincado se não fosse esse tal povo que ele ajudou a classificar de explorador e outros epítetos facciosos a contento, para mais rapidamente fortalecer, na animadversão geral, o seu estro narrativo e poético, de muita perícia vocabular e brincalhona, que lhe daria fama e lucro. Mas ontem, debulhada em lágrimas a olhar a devastação da Beira e as cenas de aflição, ouvi-o bem, Mia Couto, a ser entrevistado e a revelar também a sua tristeza infinita, por esse povo tão mártir depois da descolonização, ao que contou, com as suas lutas tribais e outras inundações e misérias destruidoras, aliadas a um primitivismo dificilmente ultrapassável.
Mas é altura de ajudar o povo com quem Mia Couto brincou, espero que Mia Couto se alie aos movimentos de solidariedade do resto do mundo, matéria para mais reflexão palavrosa, provavelmente. E lucrativa, sem dúvida. Embora a fase das descolonizações já esteja fora da moda, outras se lhe seguiram, consequência daquela, no mundo sempre em mudança “que não se muda já como soía”.

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