sexta-feira, 1 de março de 2019

Gratas surpresas


Gratas surpresas
Hoje, no nosso café da manhã, escrupulosamente seguido às quintas, tal como aos domingos, amigas que se revêem, de longa data, tão depressa assentes no dia-a-dia das coisas familiares, como no confronto com o passado de referências, ou no frisar de notícias dos tempos que correm, com a preocupação assente no pessimismo da idade. Mas de repente a minha irmã lembrou a alegria que sentiu ao ouvir na rádio a canção “Kiss of fire”, cujo título trazia escrito num papel, para eu procurar na internet, avessa que é às maçadas de trilhar ela própria os caminhos desse meio de aquisição extraordinário. Eu também me lembrava, entoámo-la as duas, a nossa amiga mais esquecida, porque mais virada para o “Ai quem me dera ter outra vez vinte anos”, com a voz que sempre admirei, de profundeza retorcida. Pude ouvir a canção, não só pela voz de Georgia Gibbs, mas por outras vozes, em traduções várias, e entre elas a de Ray Charles. Um festival. Por isso a transcrevo, com a letra fornecida pela Internet:
KISS OF FIRE
Georgia Gibbs - 1952
I touch your lips and all at once the sparks go flying
Those devil lips that know so well the art of lying
And though I see the danger, still the flame grows higher
I know I must surrender to your kiss of fire
Just like a torch, you set the soul within me burning
I must go on, I'm on this road of no returning
And though it burns me and it turns me into ashes
My whole world crashes without your kiss of fire
I can't resist you, what good is there in trying?
What good is there denying you're all that I desire?
Since first I kissed you my heart was yours completely
If I'm a slave, then it's a slave I want to be
Don't pity me, don't pity me (x2)
Give me your lips, the lips you only let me borrow
Love me tonight and let the devil take tomorrow
I know that I must have your kiss although it dooms me
Though it consumes me, the kiss of fire!
Mas outras mais coisas se passaram na tarde deste dia que me trouxe a recordação do belo tango e uma delas foi a leitura de uma crónica de Pavlo Klimki, Ministro dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia, sobre o seu país cristão, ao contrário da Rússia ortodoxa, e que historia a longa caminhada independente do seu país, que exalta na sua cultura, justificando a sua aproximação à Europa ocidental. Um texto enriquecedor, quer do ponto de vista histórico, quer do ponto de vista da sua nobreza nacionalista independentista, que mereceu iracúndia em alguns comentadores, naturalmente dos favorecedores da coesão imperialista russa, mas provocou também comentários de seriedade crítica. Um texto de apelo à responsabilidade dos valores cristãos europeus, que comove pelo desejo de libertação do jugo russo. Um bravo! ao Observador por o ter publicado.

A Ucrânia e os valores cristãos da Europa
PAVLO KLIMKIN, Ministro dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia
OBSERVADOR,  28/2/2019
Na Rússia ortodoxa nunca houve liberdade, democracia, abertura, nem tolerância como valores. Portanto, a Rússia não pertence à civilização da Europa, apesar de todas as semelhanças externas.
Em janeiro de 2019, a Ucrânia viveu um acontecimento histórico: a Igreja Ortodoxa da Ucrânia recebeu o Tomo de Autocefalia de Constantinopla e pôde renovar a sua igreja independente canónica, da qual foi desprovida por mais de 300 anos.
A Ucrânia é essencialmente um país cristão. Em 988 d.C, o Príncipe de Kyiv, Volodymyr, baptizou todos os habitantes de Kyiv no Rio Potchayna, trazendo-os para a luz da fé cristã. O baptismo iniciou a verdadeira vida da nossa nação e do nosso país. Como cristão fiel, estou convencido de que a adopção do cristianismo, antes de mais, trouxe a salvação ao nosso povo, mas a acção de Volodymyr, além de uma escolha de fé, foi a escolha de um caminho histórico, civilizacional, de valores morais e culturais, ou seja, de tudo o que realmente forma uma nação.
A introdução da fé num único Deus na Rus´, como era chamada a Ucrânia naquela época, uniu as tribos eslavas orientais e reafirmou a autoridade do Príncipe de Kyiv. Cerca de meio século depois, durante o principado do seu filho, Yaroslav, o Sábio, a Rus´ tinha um território mais alargado e tornou-se um dos novos estados mais desenvolvidos na Europa. Juntamente com a religião, a Rus´ foi enriquecida pela educação, pela arte e pela cultura de Bizâncio. Kyiv era um centro espiritual e cultural poderoso e influente, logo, em todo o país, construíam-se igrejas, escolas e novas cidades. O apogeu e o poder da então Rus´ de Kyiv continua a ser hoje uma base da nossa consciência estatal e orgulho nacional. A nossa adesão ao mundo cristão representa, ao mesmo tempo, um envolvimento significativo na civilização europeia. Podemos dizer que o primeiro passo rumo a uma família europeia, unida por valores cristãos comuns, foi feito justamente na altura do baptismo, em 988 d.C. Este passo determinou para sempre a essência europeia e o destino europeu da Ucrânia.
A Europa pré-cristã deu à humanidade os ideais da liberdade individual, da democracia grega e da república romana, e o cristianismo deu a determinação fundamental do amor (humanismo). A combinação da liberdade-democracia com o amor-humanismo forma a essência civilizacional da Europa, na qual se baseiam hoje todos os seus valores e princípios. Desta perspectiva, os ucranianos são pronunciadamente uma nação europeia, uma vez que a moralidade cristã e a busca da liberdade se tornaram, há muito, elementos fundamentais da nossa mentalidade.
A Ucrânia-Rus’ não só recebeu benefícios do cristianismo, mas também deu muito à Igreja de Cristo, à Europa e ao mundo inteiro. Após o baptismo de Kyiv, o cristianismo começou a espalhar-se pelas restantes tribos eslavas orientais, a norte e a leste da Rus’ de Kyiv, onde, após alguns séculos, surgiram as atuais Bielorrússia e Rússia. Por fim, a religião cristã espalhou-se pelo vasto território dos Cárpatos a Kamchatka. Concordem, sem isso, o mundo moderno seria completamente diferente.
Foi também a Rus’ de Kyiv, na fronteira da Europa Oriental, que enfrentou, em meados do século XIII, a horda tártaro-mongol, defendendo a Europa da invasão asiática. Mais tarde, os cossacos de Zaporizhzhya foram participantes activos na defesa da Europa e do cristianismo face à invasão do Império Otomano. Recordem-se, pelo menos, as batalhas de Khotyn (1621) e de Viena (1683) que salvaram a Europa Central da escravidão.
Hoje, os cossacos são muitas vezes considerados um fenómeno russo, selvagem e exótico, com um quê de pasquim romântico. Porém, foram os cossacos ucranianos que criaram a primeira república militar na nova Europa com uma liderança democraticamente eleita e proclamaram a fé cristã. Em 1054, depois da divisão entre católicos e ortodoxos, foi também na Ucrânia que se deu a reconciliação entre as duas denominações, com a instauração da Igreja Grego-Católica. Apesar disso, a Europa sabe pouco sobre esta contribuição da Ucrânia para a história da civilização europeia.
Actualmente, em termos de diversidade religiosa, a Ucrânia é um espaço único, reunindo praticamente todas as religiões da Europa Central num só país, as quais operam em paz e diálogo amigável. A tolerância, solidariedade e abertura dos ucranianos é um reflexo da Europa, dos seus valores fundamentais, dos quais nos podemos orgulhar e os quais devemos proteger.
Note-se que a situação religiosa na Ucrânia tem ainda outra característica — esta pós-traumática. A ideologia soviética agressivamente ateísta, esmagou a igreja em todos os sentidos, milhares de padres foram mortos durante a repressão stalinista e a Igreja foi, em geral, proibida. Assim, o renascimento da religião e da liberdade de religião, na consciência do nosso povo, estão intrinsecamente ligados à luta contra o totalitarismo comunista, à democracia e a todos os valores europeus.
A actual Ucrânia é, em grande parte, um país neófito. E a fé dos neófitos é muito mais sincera e apaixonada. Atrevo-me a dizer que, neste momento, o coração apaixonado da Europa bate na Ucrânia. Hoje, a velha Europa atravessa uma crise moral, duvida de si mesma e os seus habitantes já não estão preparados para proteger os valores europeus, se necessário. Os ucranianos não só estão prontos, como são os únicos que estão a defendê-los com armas em punho no campo de batalha. Parece claro que a Rússia de Putin está a travar uma guerra não só contra a Ucrânia, mas também contra a Europa e todo o mundo ocidental, e que esse conflito tem um caráter civilizacional.
Na Rússia ortodoxa nunca houve liberdade, democracia, abertura, nem tolerância como valores. Portanto, a Rússia não pertence à civilização da Europa, apesar de todas as semelhanças externas. A falta de liberdade distorce o princípio do amor cristão, muitas vezes transformando-o em ódio em nome da Ortodoxia e do Império Russo. Infelizmente, as diferenças civilizacionais são extrapoladas para a vida religiosa na Ucrânia e, paradoxalmente, com total harmonia inter-religiosa e interconfessional, temos uma divisão dentro da própria fé ortodoxa. A nossa Ortodoxia hoje é dividida entre uma Igreja Ortodoxa Autocéfala da Ucrânia, independente da Rússia, e a Igreja Ortodoxa Russa, que opera no nosso país sob o controlo directo de Moscovo.
Mas o principal é que esta divisão não é de religiosa por natureza, já que os dogmas e cânones das duas igrejas são quase idênticos. Trata-se, sim, do desejo da Rússia de manter o controlo sobre a Ucrânia, sua antiga colónia, a todo custo e por qualquer meio. Talvez seja difícil para os católicos entenderem esta questão, já que podem estar absolutamente certos de que o pontífice não cumpre ordens do presidente da Itália. Com a Igreja Ortodoxa Russa acontece exactamente o oposto: há muito que a igreja está firmemente ligada ao aparato estatal russo, e é hoje um líder activo do conceito imperialista-chauvinista chamado “mundo russo”.
Estou convencido de que a autocefalia, que segue plenamente a tradição ortodoxa (onde praticamente cada país tem a sua Igreja), abriu caminho para unir todos os ortodoxos ucranianos numa mesma família. Estou igualmente convicto da necessidade de reunir os povos da Europa em torno dos seus valores – cristãos e democráticos, que por mais de mil anos determinaram o sucesso da Europa e de toda a civilização ocidental. Hoje assistimos a uma operação especial em grande escala para a sua destruição. O nosso dever comum é protegê-los.
COMENTÁRIOS
Diego Maradona: Como é que deixam estes criminosos escrever artigos de opinião?
Chronos: Valeu a pena viver para assistir ao diálogo entre Milhazes e heterónimo.
José Milhazes: Uma opinião onde se deforma a história e escrita com vista a salvar o actual regime corrupto nas próximas eleições de Março. E, depois de Putin, mais um salvador da Europa. A Ucrânia está a perder mais uma oportunidade de se tornar num país moderno. E mais nada digo.
José Silva > José Milhazes: a leste sempre se fecharam os olhos, desde que se mantivesse a Rússia em problemas. Nada de novo, e sabe que mais ? o que aconteceu na Ucrânia, foi um template já usado noutros lados, quando não se espera que os regimes caiam por si mesmos ... crimes. Há bem pouco tempo um herói dos anos 80, quase 90 foi indiciado. Não passou nas noticias por cá ... pudera! Diga-nos se lhe traz algumas lembranças com o que aconteceu em 2014.
Luis Felipe Trotta: "Valores europeus e cristãos" - resta saber quais valores são esses. Fala-se em amor cristão, mas os homossexuais são perseguidos na Ucrânia e não têm direito a casar e a construírem uma família…
William Smith > Luis Felipe Trotta: Vê lá com o que é que tu te vais preocupar! Vocês realmente são diferentes das pessoas normais.
maria costa > Luis Felipe Trotta:  Amor cristão é agapé e não eros! O grego tem a diferença, o latim e o português não, mas saber isso é fundamental. Quanto aos homossexuais: a homossexualidade masculina é biblicamente abominação; a feminina não é mencionada. Daí que a homossexualidade seja tida como imprópria -e só acredita quem quer. Perseguidos ou contidos? É que alguns homossexuais desvairados querem que todos sejam homossexuais. Outros respeitam a vida dos outros de modo a, naturalmente, serem respeitados. Será que está a confundir Rússia com Ucrânia?
João João: Li o artigo. Mas se está à procura dessa democracia na Europa, prepare-se para receber uns milhões de migrantes do médio oriente e África.
Maria Machado: Uma religião baseada em algumas coisas da Bíblia dizendo que crê em Jesus Cristo, não é Cristianismo. Tal como o catolicismo romano faz, apodera-se do Evangelho em benefício próprio para obter poder e riquezas. A religião é uma praga que apenas afasta as pessoas do Senhor Jesus com os seus falsos credos, falsas teologias e filosofias vãs e enganosas que não se fundamentam em Cristo; muda a aparência das pessoas mas não muda o seu íntimo e é devido a isto que está escrito na Bíblia, várias vezes, que o Senhor conhece os corações das pessoas e não dá importância alguma à aparência delas.
Fly Man: Caro senhor Li atentamente o seu artigo e... tenho dificuldade em reconhecer na Europa (e no ocidente em geral) os tais valores cristãos de que fala. Pode até acontecer que venha do Leste a renovação de que o Ocidente tanto precisa. Mas, podendo ser pessimista, desconfio que a doença que nos atingiu está já demasiado funda para ser curável. Receio que a Europa de Leste se tenha de bastar a si mesma.


Nenhum comentário: