Há muito que nos apercebemos disso, de
resto. Um país de faz de conta, um país de marionetas, de assaltantes do poder,
com, por lema e escudo, um palavrão bonito – democracia – que não passou de
pretexto para o “salve-se quem puder” parasitário, de oligarquias palavrosas e
mandrionas, ora interapoiando-se, ora esgadanhando-se, em repelões convulsivos,
nas suas tentativas penetradoras, promovendo greves e instabilidade contínuas,
até ao estrebuchar final. É um triste retrato este, de foliões que somos. Rui Ramos descreve um aspecto, Manuel Villaverde Cabral um outro,
retratos sábios e inúteis do nosso alarido insensato, que já não há quem
corrija.
Perante o actual socratismo sem
Sócrates, agora apoiado pelo PCP, pelo BE e pelo PSD de Rio, cada vez
precisamos menos do populismo para a democracia estar em causa.
Quando
tudo isto acabar, muitos vão dizer que só então perceberam. É o costume. Mas
neste caso, não é necessário que o pássaro de Minerva voe ao anoitecer: quem
quiser, pode perceber já. E o que há para perceber, é fundamentalmente isto: este
governo é o socratismo, como é natural que fosse, uma vez que o pessoal
político é o mesmo. Não sabemos o que os actuais ministros sabiam
sobre os negócios que, segundo o Ministério Público, o antigo primeiro-ministro
fazia com o poder. Mas certamente que sabiam tudo sobre o projecto de controle
do Estado, da economia e da sociedade que foi, entre 2005 e 2011, a essência do
socratismo. José Sócrates saiu do retrato, mas o resto da família continua lá,
determinada fazer o mesmo. Não só porque é, cada vez mais, a única
maneira de se perpetuarem no poder, mas porque, sendo necessário, o projecto
até pode passar por “socialismo”, entendido como a lendária “submissão do poder
económico ao poder político”.
Sócrates
já não está, com o seu feitio brusco. Em contrapartida, estão o PCP, o BE e o
PSD de Rui Rio: de vez em
quando – só para o selfie – criticam António Costa, mas fundamentalmente todos
se renderam à estratégia socrática. Uns perceberam que nunca seriam o
Syriza, outros convenceram-se de que nunca mais venceriam eleições. Uns estarão
disponíveis para colaborar na sujeição do poder judicial,
outros para ajudar na conquista final da banca, e todos
para participar no esquartejamento do Estado, sob a forma da regionalização: um
dia, cada partido terá o seu quintal.
Resta dizer que uma Assembleia da República submetida
à super-geringonça PS, PCP, BE e PSD-Rio nunca será verdadeiramente um
órgão de escrutínio e limitação do executivo. Não é por acaso que cada vez
mais gente olha com ansiedade para o presidente da república.
Sim, estamos a falar da subversão da
democracia. Mas é isto o regime: uma camarilha de políticos sem ideias nem
programas, totalmente dependentes da política financeira do BCE e decididos a
aplicar o garrote governamental a uma sociedade enfraquecida e a instituições
desestruturadas. Aos dependentes do
Estado, assustam-nos com o fantasma do “neo-liberalismo”, como se o
reformismo fosse a causa da insegurança; aos mais novos, falam das desigualdades
no acesso ao emprego ou à habitação, como se a intervenção estatal fosse a
solução. Temos
aqui a medida do cinismo desta classe política. Porque a apreensão e até
a frustração de funcionários ou de pensionistas, perfeitamente justificadas, são
as de quem depende de sistemas sem viabilidade, e que todos sabem correr o
risco de ruir se a conjuntura de dinheiro fácil mudar. E porque a desigualdade que de facto confronta os mais jovens tem
causas várias, mas entre elas estão mercados de trabalho rígidos e políticas
financeiras que, desde a crise de 2008, inflacionam os preços das casas
nas cidades. Ou seja — e esta é a beleza da equação–, a
oligarquia vai gerando problemas, e com esses mesmos problemas vai tentando
gerar apoio para o seu poder. É quase perfeito.
Perguntarão:
e como saímos daqui? Mas a pergunta certa é: quem quer sair? Ou melhor ainda: quem tem força para sair? Existe,
na sociedade portuguesa, a independência e a confiança sem as quais qualquer
alternativa terá de ser um milagre? Entretanto, a oligarquia enche o ar com
gritos histéricos contra Trump e Bolsonaro. Vem aí o populismo, dizem-nos, a
democracia corre perigo. Não sei se o populismo vem aí ou não. Mas o que a
situação portuguesa sugere é que cada vez precisamos menos do populismo para a
democracia estar em causa.
MANUEL VILLAVERDE CABRAL OBSERVADOR, 13/3/2019
Quase
uma centena de agentes partidários actua regularmente nos ecrãs televisivos
como «comentadores», ou seja, como propagandistas das suas crenças, pois não
lhes cabe outra função que não seja essa. Não é de agora que se sabe que os
«media» em geral e a televisão em especial têm um papel cada vez mais relevante
na formação dos comportamentos eleitorais e, por conseguinte, na vida política
dos países em geral e de cada um em particular. Também já
se sabe que esta influência dos «media» deixou de se limitar aos conteúdos
informativos e eventualmente opinativos para se alargar e, finalmente, se
concentrar na pura acção mediática, nomeadamente televisiva. Os agentes políticos
funcionam cada vez mais – o que não quer dizer cada vez melhor – como «actores»
de televisão ou, melhor, como imagens televisivas.
Em
suma, seja em que papel for, é a imagem projectada pela TV que confere valor
mediático e, simultaneamente, político àquilo que eles façam ou digam. Há poucos dias, circulou uma informação segundo a
qual perto de uma centena de agentes partidários actuava regularmente nos ecrãs
televisivos como «comentadores», ou seja, como propagandistas das suas crenças,
pois não lhes cabe outra função que não seja essa. Presumo que algo semelhante
sucede em países comparáveis e é conhecido que este número extraordinário de
agentes partidários é geralmente remunerado, como se não fossem oficiais de
outro ofício, só não se sabe qual a tabela remuneratória, com a curiosa
desproporcionalidade de «um por partido» nas chamadas mesas-redondas. Numa
palavra, sem os inúmeros canais que enxameiam as nossas televisões, a grande
maioria desses agentes de propaganda política não existiria.
Os
melhores cientistas políticos têm analisado a difusão deste novo fenómeno,
começando por observar a influência exercida pelos agentes políticos
tradicionais, democráticos ou não, sobre os órgãos de comunicação social e
acabando por verificar que os «media», com a crescente «espectacularização» da
tecnologia televisiva, passaram a preponderar sobre eles e, finalmente, a
submetê-los aos ditames da imagem televisiva. Desde a emergência daquilo a que
Guy Debord chamou «a sociedade do espectáculo» (1967), precursora das «espirais»
do «silêncio» (E. Noelle-Neuman, 1974) e do «cinismo» (J. Cappella
& K. H. Jamieson, 1997), a TV fez dos agentes partidários figuras de
espectáculo, caracterizadas por aquilo a que hoje se dá o nome de «discursos de
ódio»: sem um modicum de ódio não há espectáculo e, sem
um quantum de espectáculo, não há política nem agentes do estado
vigente.
Dado
o baixo nível de literacia e, consequentemente, de informação fidedigna por
parte de grande parte da população portuguesa, sobretudo a mais idosa,
o império da televisão e o espectáculo dos agentes
políticos estão a tornar-se o prato de cada dia, presumivelmente com raros
picos de audiência como aqueles que trouxeram há pouco tempo o
primeiro-ministro a um programa matinal de alegado êxito conquistado a peso de
ouro pela SIC à TVI ou, num género diferente mas ininterrupto, as cenas de
encantamento mútuo entre o presidente da República e qualquer público que dele
se aproxime entusiasmado, seja em território português ou nas antigas colónias…
O
populismo encontrou assim em Portugal um duplo comportamento cujos efeitos
políticos não se comparam aos do populismo agressivo e militante das direitas e
esquerdas extremas, mas cujas consequências para a mudança da nossa sociedade
serão nefastas. Uma rápida análise dos dados da audiência que assistiu ao
espectáculo da cataplana cozinhada pelo primeiro-ministro e família no tal
programa matinal acaba por mostrar a natureza do público em questão, assim como
os seguimentos político-partidários que daí se podem esperar…
Com
efeito, se é exacto que o programa da SIC conquistou uma forte percentagem dos
espectadores que viram televisão naquele dia e o primeiro-ministro teve uma
elevada audiência para a sua exibição como cozinheiro, em compensação eram
relativamente poucos os consumidores habituais de propaganda política. Do ponto
de vista sócio-demográfico, tratava-se predominantemente de um público idoso,
sobretudo feminino e pertencente aos estratos sociais mais baixos da população,
ou seja, eram na sua maioria eleitores dos que se abstêm nas eleições e não
partilham as suas eventuais opiniões políticas e inclinações partidárias.
Os
dados que rodeiam esta operação mediática mostram, pois, como é grande a
distância entre o poder e as populações. Ao mesmo tempo, porém, os agentes
partidários precisam deste tipo de publicidade para combater, desde logo no
caso português, a tendência cada vez maior dos eleitores para a abstenção.
Simultaneamente, operações como esta, assim como a repetição ad
nauseam dos desfiles presidenciais em Angola, destituídos como são de
qualquer conteúdo político que não seja o puro espectáculo, tais operações não
fazem mais do que exibir a total dependência dos agentes partidários em relação
à televisão. Amanhã, outros agentes farão exactamente o mesmo com idêntico
inêxito, ou seja, sem qualquer conteúdo nem mudança real para a vida de um país
que se entregou completamente a uma conjuntura internacional demasiado
instável!
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