Que mais nos irá acontecer? Um explícito texto
de Bruno Filipe Costa, que dá para
entender, mesmo aos leigos.
Estagflação, um palavrão ou a verdadeira
crise económica que ninguém quer
“Pagar a dívida é uma ideia de
criança. As dívidas dos Estados são por definição eternas. As dívidas
gerem-se”. A frase é de José Sócrates, mas poderia, perfeitamente, ser de
Biden, Trump ou Obama.
BRUNO FILIPE COSTA
Fundador e CEO da FOC
OBSERVADOR, 08 nov 2021, 00:06
O fim dos
estímulos na economia americana
No
meio de uma semana onde em Portugal praticamente só se debateu a decisão de
Marcelo de dissolver ou não o parlamento, e quando seriam as eleições, um alarme às
economias (mais um) veio do outro lado do Atlântico e passou praticamente
despercebido: o início do fim dos estímulos à economia como resposta à Covid. Dito assim, parece algo normal quando estamos a
caminhar, queremos acreditar, para o fim da pandemia. Portugal, na
sua dimensão, iniciou o mesmo caminho, mas no caso dos Estados Unidos o impacto
poderá ser “ligeiramente diferente”. Comecemos
por uma ideia básica: a economia
americana vive (e cresce) à base da dívida. O final de
2021 poderá assistir ao atingir dos 30 triliões de dólares de dívida pública. Para ser mais visual, coloco este valor em numérico: 30.000.000.000.000
USD, cerca de 2 triliões acima da dívida em Setembro de 2020. São quase
90.000 dólares por cada cidadão americano – incluindo os que acabaram de
nascer. Olhando de forma relativa e face ao PIB, este valor representa cerca 126%
do PIB americano (a dívida portuguesa ronda os 135% do nosso PIB). Numa abordagem natural, diríamos que não é
sustentável e um risco enorme para a estabilidade da economia (e economias) mas
por enquanto vamos manter a versão de José
Sócrates e já voltaremos ao risco que está à vista de todos,
mas que parece não convencer ninguém (os recordes nos principais índices
acionistas não param de ser batidos e as avaliações de empresas – em especial
as tecnológicas – são cada vez mais irracionais e com muito pouca correlação
com o seu real valor contabilístico).
Voltando
ao tema do fim dos estímulos, importa salientar o que é e qual o impacto
pretendido, mas também, o impacto que pode realmente suceder. No início da
crise pandémica, os governos decidiram “apoiar” as economias com injecções
diretas de liquidez. O governo norte-americano não foi excepção e foi
definido um plano de apoio mensal de 120 mil milhões de dólares, através da
compra de dívida. Isto significa que em 2021, a FED injectou na economia
americana 1.200 mil milhões de dólares. Agora, e como os mercados já previam,
decidiram reduzir esse montante em 15 mil milhões por mês, até chegar a zero em
2022. A ideia era simples: garantir a necessária liquidez ao
mercado e que existisse capacidade de financiamento da economia e das empresas
durante um período em que o consumo e o normal funcionamento do sistema estava
extremamente constrangido pelas consequências da pandemia. Se em teoria temos uma solução perfeita, onde está o
risco e porque estou tão preocupado com a redução dos estímulos que agora se
anuncia? Vamos juntar esta questão ao tema da dívida norte americana e
vamos só analisar alguns conceitos e indicadores para depois podermos chegar à
conclusão.
Inflação, de pontual e normal a
permanente e perigosa
Tudo o que os governos não querem numa
situação destas é inflação. Num
cenário em que é importante dar liquidez aos mercados, uma política de taxas de
juro baixas é importante para dar consistência a esse objetivo e permitir um
acesso ao crédito barato e sustentável. A título de exemplo, aquando da
aprovação do plano de ajuda da FED, que abordei no parágrafo anterior, a projecção
de inflação para a economia americana era de “até 2%”. Neste momento está acima
dos 4% e continua a subir. Para quem detesta ler artigos demasiado técnicos
vamos simplificar o problema: inflação ocorre quando há mais dinheiro
para gastar que bens disponíveis, ou seja, a procura supera a oferta. Lembra-se da ajuda da FED? Pois bem, os
governos mundiais, simplesmente despejaram dinheiro nas economias (e nalguns
casos – incluindo o português – sem grande critério). Durante meses, a economia
acumulou reservas porque o consumo simplesmente não era possível: estávamos em
confinamento. De repente,
desenvolveu-se um novo paradigma: os rendimentos mantiveram-se (obviamente que
existiram milhares de situações em que tal não sucedeu, mas temos de olhar para
a economia como um todo e não particularizar) mas o consumo teve uma redução
significativa, ou seja, criou-se uma situação que permitiu a poupança. Como factor potenciador, o mercado recebeu ainda
moratórias e suspensões de pagamentos, que elevaram esse nível de poupança,
visto que, se existiram pessoas e empresas para quem esse apoio foi
fundamental, muitos outros usaram-no apenas por precaução ou simplesmente
porque a ele tinham acesso. Toda essa poupança está agora disponível para
consumir e os consumidores estão sedentos desse mesmo consumo, depois de meses
fechados em pandemia, ou seja, o mercado tem uma pressão compradora.
Este
cenário já era suficiente, mas vamos adicionar uma última variável: a crise nas cadeias de fornecimento. Com a paragem das economias, a produção mundial travou
e isso tem um impacto directo e devastador quando a economia volta a reanimar. Ao
contrário de uma barragem que pode parar o fluxo de um rio, mas que ao abrir as
suas comportas assiste ao rio a correr novamente à velocidade necessária, a
economia não tem essa capacidade. Imagine
uma fábrica que depende de inúmeros fornecedores. Com a pandemia, esses
fornecedores foram obrigados a mudar de profissão, deixaram de ter acesso às
matérias primas necessárias ou simplesmente têm ciclos de produção demorados.
Essa fábrica, por mais que queira dar resposta aos pedidos de consumidores
ávidos, agora que a economia reabriu, não tem a capacidade de fornecimento que
o mercado exige. Adicionalmente, as alterações nos mercados de trabalho dos
diversos blocos económicos, levaram a uma ausência de mão-de-obra necessária a
este arranque. Um bom exemplo disso foi a crise dos motoristas de camiões de
combustíveis no Reino Unido há umas semanas.
Ou seja, em resumo, temos um aumento
significativo da procura, alavancada numa liquidez em valores recorde, e um
forte constrangimento na oferta, prejudicada por consequências de uma pandemia
que, simplesmente, paralisou toda uma cadeia de produção. Como já vimos, este
cenário cria as condições perfeitas para um crescimento da inflação e à sua
manutenção nos próximos trimestres.
Aumento das taxas de juro. Combater a
inflação ou agravar um problema
Chegamos,
assim, à última variável deste puzzle: o combate natural à
subida da inflação. O modelo
habitual para pressionar a inflação e fazer com que a mesma recue para os
níveis desejados, é através de uma política
de subida das taxas de juro.
Já vimos, acima, que tal
não é desejável quando o que se pretende é estimular a economia e manter a
liquidez. No entanto,
o risco de uma inflação elevada é algo que os governos não podem ignorar face
ao impacto nefasto que pode ter no crescimento económico. Muitas economias já
colocam como provável o início do ciclo de subida das taxas directoras. Foi,
aliás, com surpresa que esta semana o Banco
Central inglês manteve as suas taxas,
quando todos os analistas apontavam para uma primeira subida. Não foi esta semana, mas será certamente num futuro
próximo, sendo que os EUA já sinalizaram este movimento para 2022. Apenas
a União Europeia afastou, para já, este cenário.
Vamos,
mais uma vez, tentar simplificar o conceito. O que
acontece (em teoria) numa subida de taxas de juro e porque é que isso “resolve”
um cenário de inflação? Para começar o custo do dinheiro fica mais alto. Os empréstimos
têm taxas de juro associadas, e com a subida dessas taxas, por consequência, os
empréstimos ficam mais caros. Isto leva
a que alguns agentes económicos possam restringir as suas decisões de
endividamento, investimento e consumo. Esta
primeira consequência tem impacto directo no consumo e como tal reduz a pressão
do lado da procura. Por outro
lado, temos o aumento da remuneração do dinheiro, ou seja, as taxas de juro
dos depósitos também sobem e as decisões de investimento e consumo podem ser
desviadas para poupança por via de uma maior atractividade do valor obtido com
esse instrumento financeiro. Mais uma vez, temos a
transferência de valores do consumo e a consequente redução da procura. Temos assim, uma menor pressão compradora que leva
à estabilização ou redução de preços, ou seja, menor inflação. Se em teoria resolve, então porque temo que possa ser
um problema? Está na altura de olharmos para todas as questões que ficaram em
suspenso e pintar todas as cores num quadro final.
Estagflação, um palavrão ou a verdadeira crise
económica que ninguém quer
Comecemos
por olhar para as variáveis: temos dívida em valores recorde, temos o final dos
estímulos à economia e ao final da liquidez artificial nos mercados, temos uma
subida acima do esperado (e desejado) da inflação na economia mundial e temos
um ciclo de subida de taxas de juro a bater na porta dos principais bancos
centrais. Como pode este cocktail de ingredientes resultar numa
tempestade perfeita? Bom,
considere que as economias terão menos liquidez num momento em que não estão
ainda robustas no pós pandemia, considere ainda que com a crise energética e a
crise na distribuição a pressão na inflação pode não abrandar e some-lhe que o
aumento nas taxas de juro têm um impacto direto nas dívidas soberanas, e estas
estão em recordes absolutos. Consegue imaginar uma dívida de 30 triliões a
sofrer o impacto do aumento do seu custo por via do aumento das taxas de juro?
Este
é um cenário que ninguém quer, mas que os indicadores não desmentem e que me
levam a introduzir o último
conceito: estagflação. Trata-se
de uma combinação entre uma elevada inflação e uma estagnação ou contração da
economia e resulta numa crise económica com consequências no emprego e no
aumento dos níveis de pobreza. Este é um
cenário raríssimo, porque não é natural existir inflação elevada num momento de
estagnação económica, mas já aconteceu e com uma curiosidade histórica: foi na crise dos
combustíveis da década de 70. Haverá na
crise energética em curso uma macabra coincidência e o mundo prepara-se para
ter de lidar com uma verdadeira crise económica quando ainda não saímos de uma
crise pandémica? Eu acredito que se as políticas dos principais actores
económicos não se alterarem, sim e pode fazer mais dano que a Covid.
2 comentários:
Desculpe, mas... é impressão minha, descuido meu, ou este blogue é anónimo? Nõ há informações sobre o autor?
Obrigado.
O blog não é anónimo. Assino-me Berta Brás, há muitos anos. O "anónimo" parece ser quem denuncia o anonimato deste blog.
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