Patrícia Fernandes.
Também
passei por isso, em tempos de estágio, em tempos de mudança e passagens de ano
de cambulhada, em que o que estava a dar era a paridade entre os saberes – dos alunos
e do professor – e eu de facto não soube adaptar-me a uma imposição tenebrosa,
que invertia todos os valores para que a minha formação, e julgo que também
honestidade mental, me prepararam. Um estágio que desvalorizou as notas da
formação académica, que teve consequências graves sobre a minha vida familiar,
com a efectivação a distância, durante um ano, com cinco filhos em idade
escolar, entregues à empregada que se encarregava da casa, visto que o meu
marido também recolhia tarde dos seus trabalhos. Mas adaptei-me a uma
experiência que trouxe novos saberes, e mais tarde fui convidada para
acompanhar o estágio de uma religiosa - por professora da escola onde eu estagiara,
a quem, escrupulosamente, expliquei que fora a mais mal classificada no meu
estágio, por isso sem mérito para acompanhar os saberes de outrem. Mas foi-me
retorquido que isso de estágio era balela, e insistido nas minhas capacidades,
acabei por aceitar e gostar, em estudos que me deram novas competências… Mas a
paridade dos saberes de alunos e professores, sempre a considerei pura aleivosia
de um ensino que se pretende superficial e de impostura. Julgara que já fora
ultrapassado tal dislate – próprio de atraso mental, de modernismo pedante, ou
de ausência de escrúpulo moral - mas o artigo de Patrícia Fernandes, (além de outros mais “ruídos” comprovativos de uma
sociedade a resvalar nos preceitos), vem acentuar o desprezo democrático pelos
valores atribuídos ao “homo sapiens”, e tantas vezes focado, quer através de
entidades representativas, quer de especulações de ordem variada. Gostei do
artigo de PF.
A morte da democracia
Não só vivemos em tempos de morte da competência, desvalorização do
conhecimento e abandono das referências de hierarquia e ordem, como também nos
revemos em noções de pós-verdade e pós-factualidade.
PATRÍCIA FERNANDES Professora na Escola
de Economia e Gestão da Universidade do Minho
OBSERVADFOR, 10
out 2022, 00:1518
“Resta-nos analisar a mais
bela forma de governo, e o mais belo dos homens: a tirania e o tirano.” (Platão, A República,
Livro VIII)
1Trigger warning
Uma
das expressões a que não podemos escapar para compreender os nossos dias é a de
“trigger warning”, popularizada
em língua inglesa por decorrer da cultura de sensibilidade máxima que o mundo
anglo-americano tem exportado para todo o Ocidente. Em língua portuguesa,
não é fácil encontrar uma expressão tão sedutora para exprimir o sentido de aviso, advertência ou sinalização de
conteúdos possivelmente ofensivos ou capazes de despertar reações traumáticas.
Estamos
habituados a esses alertas quando, nos noticiários, o jornalista nos avisa de
que as próximas cenas – geralmente de guerra, terrorismo ou acidentes graves – podem
ferir a suscetibilidade das pessoas mais sensíveis. E as gerações mais
velhas recordarão a bolinha vermelha no canto superior da televisão para
indicar a desadequação dos programas ou filmes para os mais novos. Mas este
mecanismo popularizou-se agora no mundo académico para assinalar livros
potencialmente perigosos (como já aconteceu com Immanuel Kant)
ou temas potencialmente
traumatizantes – tudo para que as gerações mais novas não sejam
emocionalmente perturbadas na sua redoma de vidro.
É,
então, com o objetivo de não inquietar as almas mais sensíveis que importa
deixar um trigger warning ao livro publicado por Tom
Nichols, em 2017: A Morte da Competência: os
perigos da campanha contra o conhecimento estabelecido (que desenvolve o artigo inicial publicado
no The Federalist).
E
que choque pode provir deste livro? Com todo o atrevimento, Tom Nichols
afirma que, ao contrário do que está a acontecer nas nossas sociedades, uma
sociedade democrática não nos torna iguais em termos de conhecimento: há
pessoas que sabem mais do que outras em diferentes assuntos e não podemos
afirmar que todas as opiniões são igualmente válidas. Na verdade, as opiniões
dos especialistas são mais válidas do que as restantes e a maioria de nós é
ignorante em relação à maioria dos assuntos. A sua conclusão é a de que viver
numa sociedade democrática não pode ser desculpa para desvalorizarmos o
conhecimento especializado e não reconhecermos a nossa ignorância nos assuntos
em que não somos especialistas.
2A morte da competência
O
diagnóstico de Tom Nichols debruça-se sobre a sociedade norte-americana,
reconhecendo que o seu país tem uma longa história de desconfiança perante os
intelectuais (o que
justificaria, nomeadamente, a sua longa tradição conspirativa). Já Alexis
de Tocqueville tinha relacionado a desconfiança em relação à
autoridade intelectual com a natureza da democracia norte-americana, mas
Nichols considera que a situação se tem agravado:
“O
conhecimento de base do americano médio é tão baixo que este há muito deixou de
estar “desinformado”, passou a fase de estar “mal informado” e vai agora a
caminho de se afundar no “agressivamente errado”. As pessoas não se limitam a
acreditar em coisas parvas, mas resistem activamente a aprender só para não
terem de abdicar dessas crenças.”
O
livro parte de exemplos que lhe chegaram de outros especialistas e debruça-se
sobre o modo como as nossas sociedades têm destruído a noção e o valor
da competência, abordando diferentes dimensões, desde o ensino superior à
comunicação social e à internet – e cada uma delas merecendo um artigo próprio.
De
acordo com Nichols, o caminho percorrido pelas sociedades democráticas tem
defraudado as expectativas mais optimistas: “Pensava-se que anos de melhoria do
ensino, o acesso facilitado aos dados, a explosão das redes sociais e a remoção
dos obstáculos à participação no debate público iriam melhorar a nossa
capacidade de deliberar e decidir.” Em bom rigor, as coisas parecem ter ficado
piores e “qualquer discussão pública sobre qualquer assunto descamba numa
guerra de trincheiras, em que o objetivo mais importante é o de provar que a
outra pessoa está enganada”.
É fácil adivinhar que o autor escreve
a pensar nos fenómenos que têm marcado os últimos anos nos Estados Unidos,
relacionando a morte da competência com o crescimento dos movimentos
populistas, a gradual polarização política e social, a popularização das
teorias da conspiração, as ideias de fake news e pós-verdade e,
claro, a eleição de Donald Trump.
E, neste sentido, a sua posição aproxima-se do argumento apresentado por Jason
Brennan, em Contra a
Democracia, que já abordamos aqui.
Se Nichols reconhece que as
democracias são mais propensas à contestação de tudo o que está
estabelecido e que é isso mesmo que as torna democráticas, defende ainda
assim que elas não podem prescindir das elites intelectuais e do conhecimento
especializado que elas produzem. Na verdade, levar o princípio democrático da
igualdade até às últimas consequências significaria destruir a própria
democracia.
Concordemos
ou não com o valor absoluto do argumento de Nichols, não podemos deixar de
reconhecer o fenómeno que o autor identifica e a sua pertinência, na medida em
que ele nos confronta directamente com a natureza das sociedades democráticas: fará parte
da essência da democracia dar o mesmo valor à ignorância e ao conhecimento? (o que seria traduzido, na versão de democracia liberal,
pelo igual direito ao voto)
3A morte da
democracia
A ideia de autodestruição da
democracia não é uma novidade.
Naquela que foi a primeira grande crítica apresentada contra a democracia, o
ateniense Platão já tinha exposto esse argumento no Livro VIII de A República.
De acordo com a dinâmica cíclica dos regimes de poder, as próprias condições
democráticas conduzem à sua degradação:
“num
Estado assim, o professor teme e lisonjeia os discípulos, e estes têm os
mestres em pouca conta; outro
tanto se passa com os precetores. No conjunto, os jovens imitam os mais velhos,
e competem com eles em palavras e em acções; ao passo que os anciãos
condescendem com os novos, enchem-se de vivacidade e espírito, a imitar os
jovens, a fim de não parecerem aborrecidos e autoritários.”
Apesar
de encontrarmos naquele Livro uma análise mais materialista, a crítica
mais ampla de Platão à democracia tem um cariz essencialmente epistemológico: a
democracia é a forma de governo da maioria e a maioria é ignorante, pelo que
Platão não hesitaria em responder afirmativamente à pergunta com que terminamos
o ponto anterior. Um regime
político que, em vez de se basear no conhecimento dos mais sábios, conduz o seu
destino através das opiniões (doxa) das massas ignorantes não conseguirá
escapar ao caos. A crítica política de Platão à democracia corresponde, nesse
sentido, à crítica filosófica aos sofistas: encontramo-nos no domínio das
muitas verdades e não da Verdade-com-letra-maiúscula.
De
facto, foi essa cidade democrática que condenou Sócrates e é por isso que Hannah
Arendt diz, no delicioso ensaio com que
abre A Promessa da Política: “Foi ao longo
do seu processo de reflexão sobre as implicações do julgamento de Sócrates que
Platão chegou à sua conceção da verdade como o oposto exacto da opinião e, ao
mesmo tempo, à sua noção de uma forma de discurso especificamente filosófica
como oposto rigoroso da persuasão e da retórica.”
A
consequência pode aparecer como surpreendente aos olhos de muitos: de acordo
com Platão, a democracia degenera em tirania. O
grupo maioritário (o povo) acabará por escolher um protector e esse protector
tenderá a reforçar o seu poder até adoptar uma natureza tirânica. A tirania
será, por sua vez, alvo de deterioração, mas durante esse processo caberá ao
tirano repor a ordem social e impor, de alguma forma, uma só verdade. Isso
acalmará as massas até nova transformação social.
O
paralelo com a actualidade – com esta espécie de democracia tardia em que
vivemos – não é despiciendo: não só vivemos hoje em tempos de
morte da competência, desvalorização do conhecimento científico e abandono das
referências de hierarquia e ordem, como também nos revemos em noções de
pós-verdade e pós-factualidade. Mas estaremos condenados à morte da democracia
e ao apelo da tirania?
COMENTÁRIOS:
João Floriano: Habitualmente
tendo a concordar com os textos de Patrícia Fernandes. Hoje não é o caso. Mas
também pode ter acontecido que a culpa seja minha. Nada a dizer sobre a
democracia que contém em si mesma as sementes da sua destruição. Mas o reverso
também é verdade; a tirania (para os gregos não era um regime intrinsecamente
mau), também segue a regra. Afinal tudo neste mundo é composto de mudança e
atrás de tempos, tempos vêm, nada é eterno. Já sobre o papel dos
intelectuais na sociedade americana tendo a discordar. Tudo o que por lá
acontece não pode ser comparado em termos europeus ou clássicos. Um país
enorme, melting pot de nações, cujo grande desígnio nacional tem sido a
convivência e a integração das diferenças num espírito nacional, profundamente
inquieta, tudo é grande nos Estados Unidos. o espaço, as convulsões sociais, os
projectos. Os Estados Unidos desconfiam das elites intelectuais, porque
embora necessárias não foram elas que pegaram nas ferramentas que literalmente
construiram o país. Henry Ford e Vanderbilt não eram intelectuais no
entanto fizeram e muito pela união dos Estados Unidos. Um com os
carros e outro com o caminho de Ferro.
Os Estados Unidos mais do que o Saber apreciam o Saber Fazer, mais do que a
Teoria apreciam a Prática . Considerando o wokismo furioso que varre as
universidade americanas e as elites intelectuais, percebe-se a desconfiança dos
americanos típicos perante estas mentes brilhantes. A popularidade de Trump é
precisamente alimentada por esta desconfiança entre os que Sabem e os que Sabem
Fazer.
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