sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Um poema de Alberto Caeiro


Enviado pela Paula, para o gmail, e só encontrado hoje, em dia de menos saúde, suponho que nada de muito grave, mas que me faz apiedar-me de mim, como o tal barco que partiu sem deixar saudades, coisa comum na poesia de Caeiro e de Pessoa em geral, a cada passo salientando um ego do tamanho do mundo, merecedor do espanto entusiástico que só muito posteriormente lhe será concedido, na pouca sorte que acompanha génios como Camões ou Pessoa, este último fabricador de conceitos malabarísticos no retorcer do sentimento e da razão executora daquele, através de uma imaginação que o recria, a esse sentimento, tal um “comboio de corda”, de pura ficção analítica. Apenas, pois, pieguice minha, no narcisismo de pessoa pouco habituada a adoecer, mau grado uma idade já provecta, vendo-me no lugar do tal navio desaparecido no espaço e na recordação.

Mas o poema de Pessoa, este “Navio que partes”, sem retorcidos de maior, em termos prosódicos, parece-me falhar, na racionalidade que se pede a um pensamento habitualmente coerente no seu rebuscamento, como encontramos em “Autopsicografia”, e tantos outros.

Vejamos:

“Quando te não vejo, deixaste de existir”. Uma falsa asserção, naturalmente, mesmo que tenhamos em mente o pensamento poético.

Os dois versos seguintesE se se tem saudades do que não existe, / Sinto-a em relação a cousa nenhuma;” parecendo obedecer a uma lógica plausível, pouco têm a ver, todavia, com o exposto no verso conclusivoNão é do navio, é de nós, que sentimos saudade “ não contido na premissa anterior, e para mim, uma chamada de atenção talvez, apenas, para o génio que ele próprio se considera, incompreendido na sua altura - a menos que, por outro lado, ele próprio se defina como “Cousa nenhuma” (embora o “não sou nada” de Tabacaria, tenha em si “todos os sonhos do mundo”, e se considere “génio” incompreendido. Daí que “a cousa nenhuma” de que sente saudade, mesmo que seja tomada em termos de modéstia pessoal, contrasta ilogicamente com o “nós” da saudade própria.

Navio que Partes

Navio que partes para longe,

Por que é que, ao contrário dos outros,

Não fico, depois de desapareceres, com saudades de ti?

Porque quando te não vejo, deixaste de existir.

E se se tem saudades do que não existe,

Sinto-a em relação a cousa nenhuma;

Não é do navio, é de nós, que sentimos saudade.

Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos

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