sábado, 22 de outubro de 2022

Até a chuva é brejeira


Apesar das Tágides, como ponto de partida dos escritos do Dr. Salles, bem longe estamos do espírito que procedeu à glorificação dos heróis nacionais, segundo a pena daquele que se dispôs a engrandecê-los, confrontando-os mesmo com os heróis fictícios da exaltação clássica, superiorizando-os em tamanho heróico, suponho que merecidamente. Vivemos hoje numa época de luxos e mimos, na senda de um constante assalto aos poderes que, por artimanhas dos tempos, fizeram de nós, para mais, dependentes sem orgulho, por bisonho que fosse, de outros povos que progrediram em valores próprios, de esforço orientado. Por cá, ultimamente, tem sido um ver se te avias de lutas pelos poderes do mando, na autoestrada desanuviada pela ajuda externa, e ante a pasmaceira dos que se mantêm nos degraus inferiores do escadote a que os mais espertos se alcandoraram, não com o “peito ilustre lusitano a quem Neptuno e Marte obedeceram” mas movidos dos jeitos fatídicos com que os descreve o Dr. Salles – “Orgulho bisonho, inveja venenosa, jactância vaidosa.” Daí que seja amargurada a invocação às Tágides, e não, como a de Camões, confiante do resultado final – que foi, afinal, a sua obra épica. 

«...E VÓS, TÁGIDES MINHAS...» - 8

 HENRIQUE SALLES DA FONSECA

 A BEM DA NAÇÃO, 21.10.22

ou

O MUNDO VISTO A PARTIR DA MINHA VARANDA

 

Orgulho bisonho, inveja venenosa, jactância vaidosa.

* * *

Eis três dos defeitos mais comuns de que a política padece. E quem diz a política, diz a sociedade em geral. E se com o mal dos outros podemos nós bem, reste-nos a consolação de que o problema não é só nosso, mas também perturba outras sociedades que se dizem mais evoluídas.

Orgulho é a recusa de reconhecer os  erros cometidos; bisonho porque teimoso e envergonhado. A desculpa esfarrapada de que «na circunstância, foi a decisão correcta». Ficam amiúde por explicar as tais circunstâncias.

Inveja é, tendo ou não tendo o bom, querer que o outro o não tenha. E se o activo invejado é a fama, até a calúnia serve para a iconoclasia. Um veneno social que conduz ao aniquilamento dos méritos. Ao nivelamento por baixo, à mediocridade.

Jactância é a gabarolice mais ou menos inflamada conforme a clarividência ou a acefalia da audiência arrebanhada em comício. A sublimação do peso na consciência pelos erros cometidos no passado, a estratégia de apagamento dos adversários, a «fuga para a frente».

E se estas são realidades com que nos cruzamos com alguma frequência no teatro da patologia social, tudo o que é vaidade, veneno e recalcamento,   parece ser atraído pela política e assentar nas extremas. Que maçada!

Outubro de 2022

Henrique Salles da Fonseca

Tags: política

COMENTÁRIOS:

 Anónimo  21.10.2022  17:08

Não me parece, Henrique, que as caraterísticas (chamemos assim) atraídas pela Política (vaidade, veneno e recalcamento) assentem só nas extremas. Estão também no miolo. A isto, juntas o orgulho bisonho, a inveja venenosa e a jactância vaidosa, aspetos que atravessam, com maior ou menos profundidade, as Sociedades e os Políticos, independentemente das coordenadas geográficas e do Tempo. É comum ouvir-se que “Os Lusíadas” terminam com a palavra “inveja”. Mas o apelo que Camões faz a D. Sebastião para que este continue a glória dos Portugueses (“De sorte que Alexandro em vós se veja, /Sem à dita de Aquiles ter inveja.”) sabemos a que conduziu. Mesmo na Ilha dos Amores, podemos encontrar (pasme-se!) uma deusa, a Deusa Giganteia que, além de temerária, é jactante, mentirosa e verdadeira (canto IX, estrofe 44). Como se vê, ela reúne as várias caraterísticas. Ninguém está a salvo – nem os homens nem os deuses, sejam de que género for.
A problemática é muito profunda. Nós que desejaríamos que o melhor da Sociedade estivesse na Política, sentimo-nos desiludidos com o que se vê. Daí é fácil resvalarmos para um sentimento de decepção que poderá ter contornos perigosos. A História ensina-nos sobre esses perigos e não é preciso recuar para além do século XX. Procuro seguir a tua correcta “linha editorial” de não particularizar nem entrar em temas partidários. E fá-lo-ei, mas tenho que evocar um Partido que surgiu em Portugal, no século passado, com a bandeira da superioridade Ética em relação aos demais. A breve trecho, concluiu-se que, nesse âmbito, não se diferenciava dos demais. Desapareceu tão rapidamente como apareceu. A Política melhora, quanto a mim, quando houver condições para que os mais capazes, os mais conhecedores (
um País europeu está, neste momento, a viver uma situação delicada fruto da ignorância do responsável máximo governamental
), os mais honestos possam ocupar lugares políticos, que haja um escrutínio regular, profundo, atempado e próximo, por órgãos próprios, que exista uma proximidade eleito/eleitor e que, para além de se votar num Partido, se possa votar em pessoas individualizadas, de forma a que o nosso voto não se perca numa qualquer lista de nomes. Mas isso, Henrique, é pedir demasiado ao “establishment” partidário…É fundamental que as promessas eleitorais sejam confrontadas com a sua realização. Ficou clássica a promessa de Bush (pai) na campanha de 1988: “Read my lips. No new taxes”. Claro que houve. Também tivemos, já neste século, a nossa versão. Aqui, não só não baixaram os impostos, como prometido, com tiveram um enorme aumento, com o argumento de que a realidade era pior do que o estimado. Assim, vamos vivendo na doce ilusão, cada vez menos doce e, por vezes, até amarga, que os problemas são resolvidos apenas com a inserção de um voto numa urna, de tempos a tempos. Isso é muito importante, é imprescindível, é necessário, (ainda bem que o podemos fazer em liberdade e sem condicionamentos) mas não é suficiente. Se melhorarmos a qualidade da Democracia, da Educação, do Civismos, se incutirmos determinados Valores na Sociedade de forma a que ela elogie quem os segue e censure quem os desrespeite, as caraterísticas que apontas tenderão a desaparecer ou a esbater-se na Sociedade e na Política. Forte abraço. Carlos Traguelho

 Adriano Miranda Lima  22.10.2022  14:52: Sr. Dr. Salles da Fonseca, muito bem visto e reflectido. Infelizmente, os males que aponta encontram na política o campo propício para todo o seu esplendor. Isso acontece em toda a parte, convenhamos, sendo que o regime democrático é onde têm o terreno mais propício à sua infiltração e acomodação. A liberdade é o seu melhor fermento. Devia ser precisamente o contrário, porém não é assim. Pois, a liberdade do espírito devia servir para erradicar os males da natureza humana em vez de lhes dar guarida. Nas autocracias e ditaduras, os mesmos males existem, mas os seus efeitos ou são ocultados ou são disfarçados, conforme as conveniências do poder, quando não são fertilizados em seu proveito.

 


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